entrevista
Dino D’Santiago
“A música é onde tenho a coragem de dizer tudo o que sinto”
Dino D’Santiago é um cantor e compositor português de ascendência cabo-verdiana. Detentor de um estilo muito próprio, que funde a música eletrónica com as sonoridades cabo-verdianas, tem tido um percurso fulgurante. A 2 de abril sobe ao palco do Coliseu dos Recreios com o mais recente trabalho, Badiu, disco influenciado pela paternidade, e que é também uma homenagem aos badius de Santiago.
Músico, compositor, ativista, pai… como geres todas estas facetas?
Até determinada fase da minha vida não percebi que podia ter várias facetas, em vez de replicar o que me era transmitido – quer na educação muito católica que os meus pais me deram, quer pelos meus amigos. Muitas vezes tornamo-nos uma réplica de ideais que são melhores para outras pessoas. Quando comecei a encontrar a minha voz, comecei a perceber que tinha vários lados e que podia honrá-los, não tinha de escolher só um. Podia ser todos eles, dependendo do dia, do estado de espírito, da missão… quando percebi que era múltiplo e comecei a aceitar todas as minhas facetas, a minha vida tornou-se muito mais clara, mais objetiva.
Que relação tinhas com a religião?
Comecei a ir à missa muito novo e senti-me muitas vezes um peixe fora de água por não concordar com muitas das coisas que ensinavam na igreja. Na ‘palavra’ em si eu acredito. Não da forma literal, como algumas pessoas a absorvem, mas na minha interpretação dela. Quem a está a dizer também está a interpretar e percebi que eu também podia ter a minha própria interpretação. Isso fez com que tudo se tornasse mais justo, mas entrei em conflito, principalmente com o meu pai. Ele absorve literalmente a ‘palavra’ que lhe é transmitida e aceita-a. Não questiona, confia nela. Graças a isso criou-nos com toda a dedicação, foi uma ferramenta que o serviu, mas já não é a ferramenta que me serve. Acredito que eu também posso escrever palavras que um dia podem ser ditas – ou, pelo menos, sentidas – por outras pessoas.
Soubeste logo que querias seguir uma carreira na música?
Só percebi isso quando participei na Operação Triunfo [programa da RTP, em 2003]. Lidar com a Paula Oliveira, com a Maria João, com o Ruben Alves e com a cantora de ópera Helena Oliveira fez-me pensar que também gostaria de provocar aquelas sensações a alguém que me escutasse. Aquele bichinho manteve-se e, no ano seguinte, os Expensive Soul precisavam de uma voz. O Virgul falou com os meus pais, explicou que era uma grande banda que estava a começar e tranquilizou-os. Eles aceitaram bem, até porque confiavam muito no Virgul. É um irmão mais velho que me introduziu neste meio.
As tuas canções misturam crioulo e português. Porquê?
Sempre tive vergonha de falar crioulo, mas desafiei-me. Percebia a língua, mas tinha medo de ser gozado. Foi quando encontrei o meu espaço, o direito a ter a minha voz, que deixei de temer o meu crioulo ‘aportuguesado’. Quando aceitei essa minha fragilidade decidi, em 2010, ir para Cabo Verde com o meu pai. Aí encontrei a minha voz e um novo som. Sentia que, se quisesse transmitir amor ou desgosto, em crioulo soava mais verdadeiro. Depois, quando percebi que dominava as duas línguas, quis acabar com o preconceito que existe e que não faz sentido. Qualquer rádio portuguesa passa uma canção em espanhol, em inglês ou até francês, e não passa em crioulo porquê? Depois de Cabo Verde, Lisboa é a cidade onde mais se fala crioulo. Quis quebrar esse preconceito. Quando comecei a ouvir a minha música nas rádios nacionais senti que consegui desbravar esse caminho.
A tua música mistura o som cabo-verdiano com eletrónica. Como se casam estes estilos musicais?
Como em todos os casamentos há muitos atritos e muitas cedências. Neste caso foi preciso perceber para que lado estava a pender. Os meus produtores foram a Cabo Verde perceber os ritmos do funaná e do batuku, entender as claves, para não as desvirtuar. A minha missão era: se a minha avó escutar o meu som e perceber que isto é um batuku, mesmo com esta injeção de música eletrónica, já está ganho. E o feedback dela foi incrível.
O novo disco, Badiu, encerra um capítulo, uma trilogia iniciada com Mundu Nôbu (2019) e Kriola (2020). Que histórias conta este álbum?
É a conclusão de uma mensagem: o poder da ‘palavra’, que se torna eterna, a minha consciência enquanto cidadão e artista. As minhas várias facetas, as vulnerabilidades, os medos, as alegrias, fantasias, utopias, tive coragem de as assumir a todas nestes discos. O assumir claramente que faço parte de um sistema machista, mas que não quero perpetuar esse machismo, mesmo sabendo que ainda estou limitado nessa aprendizagem, mas estou em desconstrução. A minha aceitação da pele que visto, mas percebendo que não tenho de me responsabilizar por todas as peles que vestem a mesma cor, que tenho o meu caminho por fazer respeitando o legado que vem de trás, mas aceitando que tenho um mundo novo por construir. Este disco conclui tudo isso. Comecei com uma ideia de desbravar um Mundo Nôbu e agora já tenho a coragem de querer construir esse mundo. Estou curioso para ver o que se segue.
O título é uma homenagem aos badius de Santiago. Quem são os badius?
O povo badiu, na sua origem, não existia. Eram africanos que foram levados para serem usados de forma comercial como pessoas escravizadas (nem consigo usar a palavra ‘escravos’). Os badius foram os primeiros que conseguiram fugir para o interior de Santiago, eram fugitivos. Na altura, as pessoas que vieram povoar Cabo Verde vinham do norte de Portugal, e trocavam o ‘v’ pelo ‘b’, daí badiu, utilizado de forma pejorativa. A partir do século XX os próprios badius apropriaram-se da palavra como símbolo de resiliência e resistência na luta pela independência.
A capa de Badiu é um pano de terra. Que simbolismo tem?
O pano de terra era feito de algodão puro por pessoas escravizadas que vinham da Guiné. O pano era tingido com uma planta que se apanhava nos rochedos. Muitas pessoas morriam a tentar colhê-la, até que, a certa altura, a apanha dessa planta foi proibida e começou a usar-se linha sintética. As famílias portuguesas que tivessem mais panos de terra eram consideradas mais ricas. Servia inclusivamente para pagar dívidas no tribunal ou comprar pessoas escravizadas. Com o passar do tempo, o pano de terra tornou-se o símbolo de Cabo Verde.
Há alguém com quem gostasses muito de trabalhar?
Stromae, D’Angelo, e, sem dúvida, Frank Ocean. Nem digo que fosse gravar uma canção com eles, mas gostava de, pelo menos, os ver trabalhar.
És uma das grandes vozes nacionais da atualidade, com grande reconhecimento dos teus pares, da crítica e do público. É difícil não te deixares deslumbrar?
Seria muito difícil deslumbrar-me. O que procuro na música nem sequer está conectado com essa frequência. A música é uma oração para mim. É por isso que nunca serei bom intérprete de canções de outras pessoas. A música é onde tenho a coragem de dizer tudo o que sinto, de me libertar, de me expor, era incapaz de a prostituir. Mesmo para fazer uma colaboração com alguém, sinto que não consigo passar essa barreira. Estou ao serviço da arte, sinto isto genuinamente. Cada vez que faço uma canção, aquilo para mim é uma peça de arte. É por isso que gravo discos uns atrás dos outros, porque preciso mesmo de escrever música. Vai ser muito difícil esquecer-me de uma letra.
Essa exposição nunca é dolorosa?
É doloroso o processo de escrever. As músicas não são para mim, são sobre mim. A partir do momento em que esse processo de materializa numa canção, ela já é um corpo externo a mim, já não me pertence. O sofrimento desse processo é onde deixo toda a carga energética que aquela música precisa. Eu só vibro e só sou feliz quando as pessoas fazem das minhas as suas canções.
É bom ter o retorno do público?
É mais prazeroso e enriquecedor do que o próprio processo de composição. Já me aconteceram coisas incríveis: uma enfermeira que vive em Évora, mas tem a família toda no Algarve. Ela quer ir para lá, mas nunca teve coragem. Ouviu a minha canção Arriscar, e no mês seguinte mudou-se para o Hospital de Faro. Foi ela que partilhou isto comigo. Outra história: um rapaz, filho de pais cabo-verdianos, mas que nunca tinha ido a Cabo Verde. Quando ouviu a forma como me expresso sobre Cabo Verde assumiu o compromisso de ir. Também soube de uma rapariga portuguesa que, quando começou a ouvir a minha música, decidiu que tinha de ir a Santiago. Não sabia bem explicar porquê, mas sentiu essa necessidade e chegou a pedir-me recomendações.
A paternidade alterou a tua forma de compor?
Completamente. Existe um antes e um depois do nascimento do Lucas. Não quero transmitir os meus medos na forma como crio o meu filho. Quando ele nasceu, assumi o compromisso – que tenho conseguido manter porque ele só tem um ano e pouco – que é o de ser um observador do que ele vai ser. Sei que muitas das minhas limitações herdei dos meus pais e eu quero, com ele, começar uma nova página. Quero observá-lo a crescer, confiar nos ‘sins’ e nos ‘nãos’ e dialogar muito com ele. Vou-lhe tentando passar aquilo de que gosto, as minhas músicas, permitir que conviva com músicos e artistas, porque estão em constante diálogo com as emoções e têm muito pouco tempo para serem cordeiros.