entrevista
Natália Luiza e Miguel Seabra
Nos 30 anos do Teatro Meridional
Com mais de 60 produções no currículo, passagem por 21 países em cinco continentes e atuações em mais de 70 localidades de Portugal, o Teatro Meridional é uma das companhias mais consagradas do panorama teatral português. Numa sala do recentemente inaugurado Polo II do Meridional, em Chelas, a poucos dias de O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão regressar a cena (a partir de 6 de julho), os diretores artísticos Miguel Seabra e Natália Luiza partilharam memórias de três décadas, contaram sobre maneiras de fazer teatro e revelaram alguns dos projetos da companhia para o futuro imediato.
São “três décadas de projetos ao ritmo dos afetos”, lê-se no cartaz que assinala este aniversário do Teatro Meridional. Quem no meio teatral já trabalhou ou se cruzou com a companhia sabe que não se tratam de palavras de circunstância. Mesmo quem é espectador anónimo do teatro da Rua do Açúcar, também apelidado de “melhor sala de espetáculos do Poço do Bispo”, tem ciente de que no Meridional se preza uma relação diferente, especial e afetuosa, com o público. Afinal, o espetáculo começa à entrada, ainda no foyer, e só termina quando se cruza a porta para a rua, havendo sempre tempo para um café ou um chá e dois dedos de conversa com os artistas. Foi, precisamente, num registo de conversa que esta entrevista decorreu.
O primeiro espetáculo do Meridional, estreado em agosto de 1992, chamava-se Ki Fatxiamu noi Kui, ou seja, qualquer coisa como “que fazemos nós aqui”. Talvez fosse interessante, 30 anos depois, começar por fazer-vos essa pergunta…
Miguel Seabra (MS): Acho que todo o projeto do Meridional está assente, precisamente, nesse título. Essa é a pergunta que permanentemente nos colocamos, o desafio constante, aquilo que nos leva a continuar a sonhar e a criar novos projetos, a não nos conformar com formas ou modelos criativos ou conceptuais. Esse título, essa pergunta existencial, continua a ser colocada em cada projeto ou desafio que abraçamos. E é interessante que, quando estamos a celebrar três décadas de atividade criativa ininterrupta, estejamos ao mesmo tempo a preparar os próximos quatro anos [referência ao processo de apresentação de candidaturas aos apoios estatais para a atividade artística] e a perceber como é bonito continuarmos a ter ideias, projetos e inquietação mais do que suficiente para fazer do Meridional um projeto vivo e a crescer, que não se conforma.
Recuemos a 1992. Vocês estavam em patamares diferentes da carreira…
MS: Eu tinha terminado o curso de ator no Conservatório. Tinha já 27 anos. Antes, andei à procura de ser feliz, mas o espaço da felicidade é sempre efémero, como o teatro. Depois de ter passado por gestão de empresas e pela arquitetura, foi nesta área artística que me descobri. Antes, na sequência de ter andado dois meses a viajar pelo Brasil, quando voltei, decidi ser músico. Ainda estudei jazz, muito a sério… mas, depois, encontrei o teatro…
Natália Luiza (NL): Eu sempre soube, desde sempre… Quem me conhece desde miúda, criança nascida em Moçambique, conta que aos quatro anos eu já dizia que queria vir para Portugal ser artista. E ainda prometia tratar a cabeça das pessoas. O certo é que, entre a psicologia e o teatro, acabei por fazer as duas coisas.
Mas, em 1992, a Natália estava longe de ser uma atriz principiante.
NL: Sim. Quando conheci o Miguel e o Meridional levava já uns bons anos de atriz, sobretudo na televisão. Mas, gostaria de voltar àquela pergunta do primeiro espetáculo que está na base de toda a nossa inquietação porque, há 30 anos, eu não acreditava que iria ter uma companhia e que continuamente estaria a fazer essa pergunta. É que, todos os dias, coloco a mim mesma essa questão – o que estou aqui a fazer – e isso está na base de ser inquieta, de estar sempre à procura, de não me conformar com uma maneira de fazer. Necessito de estar sempre a começar.
E o Miguel? Também tem essa necessidade de estar sempre a começar?
MS: Digamos que nós somos opostos e, ao mesmo tempo, complementares. Para a Natália seria impensável estar há 10 anos a fazer o mesmo espetáculo, como eu com O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão. Para mim, fazê-lo há tanto tempo é uma maratona estimulante…
NL: Pois para mim, ao fim de uma semana, já quero estar a fazer outra coisa. Mesmo um texto em que me reveja, um projeto que me envolva. Não aguento a perspetiva do tédio, de estar no mesmo sítio. Para mim, a vida é um desafio a cada segundo. Isto não quer dizer que não seja estável e leal para com as coisas em que estou a trabalhar. Por exemplo, o Meridional tem o projeto Províncias ou os Contos em Viagem, que são linhas de trabalho desenvolvidas em continuidade pela companhia. Contudo, nunca me contento com uma fórmula, pelo que procuro sempre formas de os recriar ou revitalizar.
Como é que, com todas as vossas naturais diferenças, se casam as vontades no Teatro Meridional e se mantem a coerência artística?
NL: Acho que a dada altura do caminho, eu e o Miguel, com grande tranquilidade, autonomizámos projetos. Há o olhar de cada um sobre o trabalho do outro, ajudamos, observamos, refletimos, mas há autonomia artística. O mais interessante é que os projetos do Meridional têm uma linguagem comum. Isso tem a ver com o escutarmos, com a exigência que damos ao trabalho do ator, com objetivos conceptuais na área artística muito similares. Depois, cada um tem os seus projetos e, seja eu ou o Miguel a pegar, por exemplo, no Contos em Viagem, que tem uma matriz conceptual muito própria, sabemos que lá estará refletida a singularidade de cada um de nós, juntamente com a das pessoas que fazem parte da equipa artística daquele espetáculo.
MS: Reconheço que os desafios artísticos que nos motivam são distintos. Temos formas diferentes de trabalhar, eu gosto de itinerância ao contrário da Natália…
Mas, no meio teatral ouve-se muitas vezes a menção ao método de trabalho do Meridional. Há, de facto, uma forma diferente de fazer teatro nesta companhia?
MS: Acho que há um modo de trabalhar e um reconhecimento do espetáculo “Meridional” que passam por aquilo que considero três elementos basilares: o afeto, o rigor e exigência e a vontade do espanto. Isto é, no Meridional o espetáculo tem duas fases: o seu levantamento, até à estreia; e depois, a sua carreira, acompanhada de perto enquanto organismo vivo que é, logo necessariamente mutável. Essa mutabilidade deve corresponder, para nós, a um crescimento no sentido vertical, não a uma engorda, o que é, aliás, muito comum acontecer.
NL: É por isso que, quase diariamente, récita a récita, eu ou o Miguel estamos a acompanhar o espetáculo, corrigindo se preciso, não deixando que a rotina se instale. O encenador tem de cuidar, mas isso não tem a ver com o condicionamento do ator ou com o retirar-lhe liberdade…
MS: Por tudo isso é que quem trabalha connosco não tem descanso (no bom sentido do termo), sendo permanentemente estimulado e desafiado. É necessário manter o foco e a disciplina, até porque a disciplina para a liberdade dá muito trabalho.
Isso contribui para o reconhecimento do espetáculo “Meridional” como diferente de qualquer outro?
NL: Para nós, todos os espetáculos têm uma identidade. Procuramos sempre em equipa, durante a criação do objeto artístico, uma linguagem comum. Na base disso há, ao nível autoral, uma formação prévia dirigida ao trabalho do ator…
MS: Isso é identitário no Meridional. O espectador que cá vem vai ver trabalho de ator, assistir a atores a funcionar: emoção, técnica, gestão da palavra, noção de ritmo…
NL: É fundamental e penso que temos ambos grande noção de ritmo…
MS: Embora comigo, como se diz n’ O Senhor Ibrahim, “a lentidão é o segredo da felicidade.” [risos]
NL: Pois, comigo a rapidez é o segredo de anteontem…
Reconhecem haver, portanto, uma marca diferenciadora no vosso trabalho.
NL: Os espetáculos do Meridional comportam dimensões comunicacionais com níveis afetivos diretos, o que já nos valeu uns epítetos. Ora, isso não significa que os nossos espetáculos não comportem um nível de elaboração quase semiótico, o que permite grelhas de leitura consoante o espectador que se é. Um espetáculo como, por exemplo, O Senhor Ibrahim… é um objeto de acessibilidade transversal, mas depois contém níveis e dimensões que vão do religioso ao psicológico ou do espiritual ao alquímico, passíveis de incontáveis leituras.
MS: Aquilo que procuramos sempre a cada espetáculo é criar um fio invisível com o espectador que o deixe livre para sentir e inquieto para não se deixar prender no que possa ser ilustrativo ou descritivo.
Há pouco, o Miguel referia o “afeto” como um dos elementos basilares do modo de trabalhar da companhia. É interessante, mas o “afeto” estende-se também ao público do Meridional, sobretudo nos vossos espetáculos em casa, através do modo como recebem o espectador e logo o envolvem, mal se entra no teatro…
NL: Isso tem a ver com o procurarmos sempre dar ao público uma experiência que é afetiva, certamente, mas também estética…
MS: E é um modo subtil de poder influenciar a disponibilidade das pessoas para o espetáculo. É que, muitas vezes (e isso acontece porque o teatro é um sítio onde estamos uns como os outros), alguém entrar na sala com má cara, mesmo mantendo-se sentado no lugar e em silêncio, pode arruinar um espetáculo.
NL: Mas eu prezo muito esse lado estético, essa experiência que é indissociável da afetiva. Quando vou ao teatro, enquanto espectadora, quero ser levada para outro universo de coisas e como artista gosto de provocar isso no público. Quando um espectador entra no Meridional, aquilo que queremos é que deixe o mundo lá fora e que o espaço que o envolve lhe permita experienciar um outro estar. Por isso, a experiência deve começar logo no foyer.
Olhando retrospetivamente para estes 30 anos da companhia, desafio-vos a escolherem um ou dois espetáculos dirigidos pelo outro, do qual, ou dos quais, tenham particular orgulho em que tenha sido feito pelo Teatro Meridional.
MS: Lembro vários. Mas, muito objetivamente, escolheria dois: Anjos com Fome [2012] e este último, Vida Inversa. O primeiro, para o qual fiz o desenho de luz, porque era um espetáculo muito fora da caixa, como um sonho ou um poema em cena. O segundo, no qual não tive qualquer participação criativa, considero ser o resultado de um casamento muito feliz a todos os níveis, desde o texto do José Luís Peixoto à luz ou aos figurinos; contudo, o que fez realmente a diferença foi o conceito de encenação que a Natália deu ao conjunto, não se sobrepondo, mas evidenciando na medida exata cada elemento.
E a Natália? Que encenações do Miguel destacaria?
NL: Eu não tenho nenhuma dúvida em apontar o Contos em Viagem: Cabo Verde [2007] como o espetáculo de eleição do Teatro Meridional. É um trabalho de encenação notável, um sentido de ritmo raro, com a incrível capacidade de, durante cerca uma hora e meia, nos levar a Cabo Verde, nos fazer viajar por aquelas ilhas. É um dos espetáculos mais bonitos do Meridional. Mas há outro que o Miguel encenou que gostaria de destacar, e que é, precisamente, O Senhor Ibrahim… É curioso mas, da primeira vez que o vi, não me conectei com o espetáculo, possivelmente porque o fiz a partir de uma plateia à italiana e, cada vez mais, me agradam anfiteatros, porque tendo sempre em associar o corpo ao ato de ver. Mas, ao longo dos anos, sempre que repomos o espetáculo, vou espreitando e sentindo que há ali qualquer coisa que me transforma, que é sempre diferente. É um espetáculo que, depois de todos estes anos, parece continuar a escapar, logo sempre a convocar-me para o construir. Ainda não consegui perceber se é a encenação, se é o ator [o próprio Miguel Seabra] que me provocam isto… Mas, sei que irei continuar a vê-lo… [sorrisos]
E o Miguel a fazê-lo…
MS: Gostaria de chegar às 200 récitas. Até agora, fizemos 142.
Estamos a fazer esta entrevista no recentemente inaugurado Polo II do Teatro Meridional, em Chelas. Qual é a importância para a companhia um espaço como este, que não é vocacionado para a apresentação de espetáculos?
MS: Ter um espaço em Lisboa, como temos a sala do Poço do Bispo, é um privilégio. Mas o Teatro Meridional desenvolve todo um conjunto de atividades para além dos espetáculos, nomeadamente as formações, os laboratórios de dramaturgia, os lançamentos de livros e iniciativas junto da comunidade. Ora, tudo isto, a juntar aos ensaios e aos acolhimentos a outras companhias, tornavam cada vez mais difícil a gestão do espaço. Até que surgiu este grande contributo da Junta de Freguesia de Marvila a disponibilizar este espaço.
NL: Isto aconteceu na sequência das obras no Teatro Meridional e ganhou forma durante a pandemia. Solicitámos um escritório para que pudéssemos trabalhar e a junta de freguesia respondeu com este espaço, que tem várias salas e que, para nós, acabou por significar a transferência de várias atividades da companhia para aqui.
O Miguel já elencou várias atividades que estão agora aqui sediadas, mas sei que é a Natália que está a trabalhar mais de perto em tudo o que se vai passando por aqui…
NL: Há muita coisa, de facto. Agora em julho, temos o arranque das Férias Criativas, um programa destinado aos mais jovens. Mas tenho estado a preparar várias iniciativas que considero fundamentais. Por exemplo, em novembro vamos começar um curso de saúde mental que usa o teatro como ferramenta. Depois, há todo um conjunto de atividades que perseguem objetivos que considero vitais enquanto cidadã e artista, e que pretendem fazer deste Polo II, já de si um lugar de inclusão, um espaço privilegiado de educação pela arte.
Como vão ser as comemorações dos 30 anos?
MS: Já começaram, e muito bem, sempre com casa cheia, com Vida Inversa, de que já falámos, e prosseguem, a partir de 6 de julho, com o meu regresso a O Senhor Ibrahim… que, no dia 16, faz, precisamente, 10 anos que estreou no Festival de Almada. Uma coisa rara em Portugal, um espetáculo com tanta longevidade. Em outubro, vou estar outra vez em cena ao lado da Bárbara Branco e de um ator que anunciaremos em breve, com Do Deslumbramento, encenação minha de outro texto original de uma autora contemporânea portuguesa, a Ana Lázaro. Depois, já em 2023, vamos ter muita itinerância…
NL: E vou dirigir uma peça de que gosto muito, o Jardim Zoológico de Cristal de Tennessee Williams. É fechar esta celebração com um clássico, respondendo à nossa constante vontade de diversificar linguagens e de nunca nos fixarmos numa única maneira de fazer teatro.