teatro
A comédia de todos os enganos de amor
Ricardo Neves-Neves encena "Noite de Reis" no Teatro da Trindade INATEL
“Se a música é o alimento do amor, continuai a tocar”, ouve-se na abertura de Noite de Reis, porventura, a comédia romântica por excelência. Desafiado por Diogo Infante, diretor do Teatro da Trindade, Ricardo Neves-Neves adapta e encena, pela primeira vez na sua carreira, uma peça de Shakespeare, dirigindo um elenco inteiramente masculino em permanente diálogo com uma orquestra feminina.
A Noite de Reis, peça escrita por Shakespeare em 1601, supostamente para ser um entretenimento representado noite de Epifania (no original, Twelfth Night como menção à “décima segunda noite”, ou seja, aquela que encerra o ciclo festivo do Natal, a 6 de janeiro) chamou Jorge de Sena “comédia de enganos e travestis”.
Senão, atentemos à intriga principal (porque de outros enganos, está a peça cheia): um naufrágio deixa Violeta à deriva nas costas do imaginário reino de Ilíria, governado pelo duque de Orsino. Disfarçando-se de homem, Violeta torna-se Cesário, e encontra trabalho enquanto pajem de Orsino. Por ele, intercede junto de Olívia com propósitos matrimoniais, mas a donzela acaba por apaixonar-se por Violeta/Cesário e não por Orsino, como suposto. Para instalar a “tempestade amorosa”, Violeta cai de amores por Orsino; mas, como ser correspondida se o duque a julga Cesário?
Desafiado por Diogo Infante, diretor do Teatro da Trindade INATEL, Ricardo Neves-Neves volta ao repertório clássico, após ter dirigido recentemente a ópera Cortes de Júpiter de Gil Vicente, no Centro Cultural de Belém. “Este é um clássico perfeitamente ajustado ao trabalho que tenho vindo a desenvolver, já que se trata não só de uma comédia, como de um texto que tem muito presente a relação com a música”, sublinha o encenador, enfatizando mesmo que existe na peça “um pensamento sobre a música e a sua relação com as cenas e as personagens.”
Para além disso, Neves-Neves encontra neste Shakespeare o território perfeito para explorar os traços mais fulgurantes do seu próprio teatro, nomeadamente a relação entre a cultura popular e clássica ou o absurdo e o non sense. Exemplo disso surge, a exemplo, nos contrastes feitos entre “um figurino de época e uma maquilhagem à anos 80”, ou na interpretação e adaptação à ação de temas da música pop, como I Will Survive de Gloria Gaynor ou Eternal Flame das Bangles, que surgem inesperadamente entre peças “de influência italiana” que remetem para a identidade siciliana da imaginária Ilíria shakespeariana, com Nino Rota a evidenciar-se.
Para esta apropriação criativa e surpreendente que Neves-Neves faz do texto original, muito terá contribuído o recurso às traduções para português de Noite de Reis feitas por António M. Feijó, Beatriz Viégas-Faria (em português do Brasil) e Henrique Braga. “Não me quis limitar apenas a uma, porque as traduções são para mim material de estudo. Através delas percebe-se o que cada tradutor procura imprimir ao texto e, aqui particularmente, à comédia”, explica. “Eu próprio traduzi algumas partes, e tudo isso foi primordial para o processo criativo.”
Mas a Noite de Reis de Neves-Neves e Shakespeare traz consigo “uma provocação”: todos os papéis são entregues a um elenco inteiramente masculino, tal como se fazia no teatro isabelino “que considerava o palco lugar de pecado, impuro para as mulheres, seres geradores de vida”. A opção talvez possa ser vista como controversa nos dias que correm, mas Neves-Neves lembra que ela surgiu em contraponto ao trabalho que anteriormente fizera em Banda Sonora, espetáculo onde “o elenco e todas as personagens eram femininas.”
Ao mesmo tempo, a principal das três personagens femininas da peça (Violeta) debate-se com a questão de género para sobreviver no reino de Ilíria, fazendo-se passar por homem, sem que imaginasse poder vir a conquistar o coração de uma mulher. Ora, este “engano”, como refere o encenador, é uma demonstração de que “o amor, a paixão ou a atração sexual não correspondem necessariamente ao género, mas àquilo que somos. É uma temática que permanece atual, mais de 400 anos depois, esta de abordar questões de mulheres que sentem atração por mulheres e homens por homens, para lá de todos os códigos e convenções”. No fundo, nesta comédia, todos os enganos de amor são os equívocos que tudo revelam e devem continuar a ser alvo de reflexão e discussão.
Noite de Reis estreia a 26 de janeiro na Sala Carmen Dolores do Teatro da Trindade. O espetáculo conta com interpretações de Adriano Luz, António Ignês, Cristóvão Campos, Dennis Correia, Filipe Vargas, João Tempera, José Leite, Luís Aleluia, Manuel Marques, Marco Delgado, Rafael Gomes, Renato Godinho e Ruben Madureira, e do ensemble composto por Ana Cláudia Santos (flauta), Eliana Lima (trompa e acordeão), Filipa Portela (soprano e alaúde), Helena Silva (violino), Isabel Cruz Fernandes/Beatriz Ventura (soprano), Juliana Campos (fagote e canto), Madalena Rato (percussão), Rita Nunes/Nádia Anjos (saxofone), Sofia Gomes/Teresa Soares (violoncelo), Rita Carolina Silva (mezzo), dirigido pela compositora e teclista de origem kosovar Mrika Sefa.
Para além do ensemble de músicas, e longe de estarmos perante um clube de homens, é também no feminino que se conjugam o cenário de Ana Paula Rocha, os figurinos de Rafaela Mapril e a luz de Cristina Piedade.