entrevista
José Raposo
"A magia da arte do ator é surpreender"
No dia em que se cumpre um ano sobre o desaparecimento de Jorge Silva Melo, a 14 de março, estreia no Teatro da Politécnica Foi assim, texto do autor norueguês Jon Fosse. Solo protagonizado por um homem em final de vida, a peça – que, segundo nos conta o encenador António Simão, o próprio Silva Melo dizia, com a sua inconfundível ironia, estar a ensaiar durante o período em que permaneceu hospitalizado – marca o encontro entre os Artistas Unidos e o ator José Raposo.
Durante o intervalo num ensaio, junto de um ainda improvisado décor, composto por uma cama desfeita, um andarilho e uma cadeira de rodas, fomos conversar com o ator que, uma vez mais, volta a desafiar-se num registo a que o grande público estará certamente pouco habituado.
É curioso como dois dias antes de estrear aqui na Politécnica Foi assim, estares no Casino de Lisboa a fazer o papel da empregada doméstica Palmira, na comédia de Marcos Caruso Trair e coçar é só começar. Como é que um ator de teatro gere uma mudança aparentemente tão brusca?
Gere-a, precisamente, por ser ator e por ser essa a sua função. Ao longo dos anos tenho procurado sempre experimentar vários registos, vários géneros, trabalhar com grupos e com encenadores diferentes. Fazer teatro à noite, mas antes, durante o dia, estar a fazer televisão, cinema… É tudo isso que é maravilhoso na arte de ser ator.
Mas, os atores costumam considerar que o teatro exige que se vista a pele da personagem. Nunca temeste que as personagens começassem a coexistir?
Não, não. Há atores que dizem deixar a personagem ora aqui, ora ali. Eu sou daqueles que não a deixa em lado nenhum [risos]. Ainda há pouco falava com o Tó [António Simão] sobre isto e lembrávamos aquele ator americano, o Christopher Walken, que diz que nem a ele se conhece bem, quanto mais à personagem. O ator de teatro tem de vestir a pele, mas depois despe-a, e vai à sua vida. Neste momento, é impossível alguém imaginar o prazer que me dá estar aqui com o Tó a ensaiar Jon Fosse e, daqui a umas horas, estar a fazer uma comédia de “portas”, num registo bem mais ligeiro. De facto, só o ator pode sentir o que é estar numa e noutra pele de uma hora para a outra.
Gostava de voltar a essa ideia de vestir, e despir, a personagem nos vários registos. O personagem do teatro é mais intenso do que o da televisão ou do cinema?
O teatro exige um trabalho mais profundo, mas isso não quer dizer que seja mais ou menos sério do que aquele que o ator desenvolve na televisão ou no cinema. Somos profissionais e, com certeza, damos sempre o melhor em tudo. Claro que aqui no teatro, pelo tempo que se tem, há uma maior possibilidade de pesquisar, de ir procurar a personagem e, extremamente importante, aprofundar o texto. É como nós costumamos dizer: se o ator fosse um atleta, o teatro era uma maratona e a televisão eram os cem metros.
Precisamente por ser um trabalho mais profundo, quando se está a fazer teatro e televisão ao mesmo tempo, não surge alguma estranheza?
Não. Sempre fiz muita televisão e teatro ao mesmo tempo e convivi bem com isso. Contudo, reconheço que a televisão é o momento, é uma fábrica de produção. Já o cinema é diferente, pois apesar de tudo há mais tempo, embora se saiba que o ator está lá para que o realizador faça o seu trabalho. O teatro, esse sim, é diferenciado de todos os outros porque, sem desprimor para o encenador, é sempre o produto do trabalho do ator.
És, portanto e acima de tudo, um ator de teatro…
Sou um ator que gosta muito mais de teatro do que de qualquer outro meio. Sempre disse, e reafirmo, que o teatro é a minha casa. É prazeroso e muito mais gratificante porque temos o público à nossa frente, e é para ele, e só para ele, que fazemos este trabalho.
Centremo-nos então neste monólogo que, presumo, deva ser extremamente desafiante para o ator, tendo em consideração que Fosse é um autor que usa muito a repetição, a pausas e até o silêncios como matérias estruturais da sua escrita.
Não conhecia muito bem o Jon Fosse, embora soubesse que os Artistas Unidos já o tinham encenado várias vezes. Agora, ao trabalhar uma peça dele, estou a entender a real dimensão deste autor, não só poética, como até filosófica. Isso percebe-se através do modo como comunica, como escreve, como sente. Como dizes, os silêncios são fundamentais, mas acima de tudo, o mais importante é o valor da palavra e o seu peso linguístico. E nós estamos cá para, da melhor maneira, transmitir essa forma de sentir muito própria do autor.
Há alguma particularidade no texto que te esteja a surpreender especialmente?
Há algo muito curioso que tem vindo a acontecer nos ensaios: ao fazer a personagem e ao repetir, e repetir, vão surgindo coisas que parecem não existir à partida, quando se lê a peça pela primeira vez. E, ao dizê-lo, o texto vai mostrando que os silêncios também têm coisas para contar e que existe um significado concreto nas repetições. Estranhamente, aquilo que parece não ter sentido, de repente, ganha sentido…
Esse trabalho de descoberta constante sucede durante os ensaios?
Os ensaios são uma constante procura. Este texto é daqueles que exige ao ator esgravatar até encontrar o registo certo. O Tó vai-me dizendo “boa Zé, isso funciona, é fixe”, “não, isso não”… Estamos sempre como que a tatear no escuro até encontrar o caminho. Depois, tudo isto é muito musical, embora as notas surjam de modo surpreendente, ou seja, não é fácil perceber que ali é um dó ou acolá é um fá…
[António Simão entra na conversa para lembrar que Jon Fosse foi músico e que nos seus textos “não interessa propriamente a história ou a personagem, mas a musicalidade das palavras”, daí “ser tudo muito ao nível do que e de como se ouve. Como ele diz, ‘escrever é ouvir’”.]
Os últimos trabalhos de Fosse são marcados pela sua conversão ao catolicismo. Sendo esta peça de 2020, isso é percetível?
Ainda há pouco falávamos da religiosidade e dessa conversão ao catolicismo, que vem explicitada na ideia da “ressurreição da carne” ao longo da peça. E, é engraçado como ao dizer o texto se descobre aqui e ali uma musicalidade que lembra o padre a dizer a missa. Mas, atenção, não é uma peça religiosa.
Imagino que a experiência que tens na comédia e na revista seja importante…
Sim, claro. Ao longo da minha carreira fiz vários musicais e, como se costuma dizer, acho que tenho bom ouvido. Essa minha bagagem de ator traduz-se nas intuições que vou tendo para interpretar os silêncios e as pausas no Fosse como o ritmo da música que tenho que tocar. O Tó está sempre a dizer-me que “isto foi escrito como uma pauta”…
Já conseguiste descobrir quem é este homem à beira da morte que protagoniza a peça?
Diria que, na cabeça do Fosse, este homem contem os temas que lhe são caros enquanto autor, ou seja, a vida e a morte, a arte e a religião. É uma peça sobre a dúvida constante que é a morte, mas a morte enquanto parte da vida.
A peça chegou a ser pensada pelo Jorge Silva Melo para uma última aparição enquanto ator. Vais ser tu a fazê-la…
Há algo de simbólico em tudo isto. Era, de facto, a peça que o Jorge tinha escolhido para a despedida como ator e, por ser sobre a morte, ele dizia ser qualquer coisa que já estava a ensaiar. O que lamento profundamente foi não ter trabalhado com uma figura tão relevante como o Jorge…
Mas, ainda fizeste um pequeno trabalho com os Artistas Unidos há uns anos…
Foi uma pequena colaboração num espetáculo sobre a Assembleia da República [Cada dia a cada um a liberdade e o reino, 2003]. Fiz foi o Germânia 3 do Heiner Müller, encenado pelo Jean Jordheuil, que foi o Jorge que programou e me convidou. E fi-lo por ele, pela grande figura do teatro português e por saber que ele era um homem que gostava dos atores.
[António Simão enfatiza: “Do Zé, como de um ou de outro ator, o Jorge dizia ser daquela estirpe que a seguir ao espetáculo temos muita vontade de convidar para um café e conversar. Atores que atraem e que consideramos da família, ou seja, os atores que verdadeiramente o público acarinha.”]
Tens alguma lembrança especial do Jorge?
Lembro de uma noite no Parque Mayer, estarmos, eu e a Mariema com ele, nos snookers, a seguir a um espetáculo. Ficámos na conversa até às tantas da manhã, coisa rara para o Jorge que não era de todo um notívago. Ali estivemos a contar histórias da vida e do teatro. Era uma delícia ouvi-lo a ele e à Mariema, outro bicho do teatro. No final, prometemos que havíamos de repetir, mas nunca aconteceu.
Ao contrário do que muita gente pensa, tens feito coisas muito diferentes no teatro. Há pouco falavas, por exemplo, de Heiner Müller, autor que até fizeste várias vezes. Já algum fã te abordou porque sentiu ter ido ao engano?
Há sempre uma ou outra história com público que não está muito habituado a este tipo de teatro, e me vê sempre como ator de comédia e de Revista. Mas, o engraçado é ser no teatro ligeiro que surgem as situações mais curiosas. Ainda há uns tempos, estava eu a fazer uma comédia, vieram ter comigo, dão-me os parabéns e dizem: “ó Sr. Raposo, esta revista era gira, mas fazem falta as bailarinas!” [risos] Há muitos públicos, e mesmo o menos habituado a um teatro dito elitista pode sair daqui satisfeito, até porque veio ver algo que é fantástico e que lhe poderá abrir outros horizontes. No fundo, a magia da arte do ator é surpreender, e acho que um ator como eu, com o rótulo do tipo que faz rir, aparecer em cena com um Fosse é sempre uma surpresa.
E como já vimos, que útil têm sido as comédias e os musicais na composição da personagem…
Sobre isso, tenho uma história curiosa que me aconteceu há muitos anos, quando fiz uma peça de um surrealista, o Manuel de Lima, chamada Malaquias ou a história de um homem barbaramente agredido, com encenação do José Carretas. Estávamos a fazer aquilo em Massamá, e no final do espetáculo o Orlando Costa veio ter comigo e diz-me que eu era um gajo esperto porque trouxe da Revista as coisas positivas e usei-as ali. Para mim, aquelas palavras fizeram-me sentir que de todos os géneros podemos retirar coisas boas e aplicá-las sem preconceitos.
Para terminar, como é para o ator estar só em palco?
O monólogo é um exercício sem rede, estando a contracena entregue ao público. É de uma exposição total, onde tudo depende de nós mesmos e as falhas são só nossas. Mas eu tenho um truque…
Qual?
Vou ser pontuado pela Sara Barradas. Eu sei que para muita gente é uma inovação, mas eu ainda sou do tempo em que havia pontos no Parque Mayer. Habituei-me, porque nunca fui de “marrar” texto. E aquilo dá muito jeitinho porque me liberta para a criatividade e permite estar disponível para apreender tudo o que se passa em meu redor. O Fosse diz que escrever é ouvir, não é? Pois, para mim, representar é ouvir.