entrevista
Fernando Galrito
"No ano do centenário da animação portuguesa, não deixa de ser uma espécie de efeméride haver um filme português na corrida aos Óscares"
Na sua 22.ª edição, a MONSTRA - Festival de Animação de Lisboa comemora o centenário do primeiro filme de animação português e a nomeação, um século depois, da primeira produção nacional ao Óscar, com o filme Ice Merchants, de João Gonzalez. Mas, esta é também uma edição onde se celebra a riqueza da animação japonesa, numa homenagem muito especial ao país do "sol nascente". O diretor artístico do festival, Fernando Galrito, explica-nos tudo isto, e muito mais.
Pela primeira vez temos um filme português candidato aos Óscares e é um filme de animação. Como recebeu a notícia?
Foi bastante empolgante e uma grande emoção. Aliás, este ano comemoram-se os 100 anos do primeiro filme, que se conhece, da animação portuguesa. Nesse sentido a MONSTRA, juntamente com a Cinemateca e outras entidades, celebra a data. Não deixa de ser uma espécie de efeméride que, um século passado, haja um filme de animação português na corrida aos Óscares. Fico também muito contente, porque há uma certa “supremacia”, ou uma atenção especial dada ao cinema de imagem real em detrimento do cinema de animação.
É, também, a primeira vez que uma curta-metragem estreia comercialmente, num formato inédito. É raro os filmes de animação nacionais chegarem às exibição comercial. O que pensa disso?
Acho que há um desconhecimento em relação ao cinema de animação. Uma informação estatística que temos, e que diz respeito a um levantamento que fizemos dos últimos dez anos da Agência da Curta-Metragem – que é quem distribui uma grande parte das curtas, tanto de imagem real como de animação -, conclui que quase 70% dos prémios são para filmes de animação e não de imagem real. Por outro lado, olhando para o circuito dos festivais, que têm grande sucesso em Portugal, falamos da MONSTRA, mas também do Cinanima, do IndieLisboa, do DocLisboa, do Motelx, não faz muito sentido que ninguém pegue em quatro ou cinco curtas e faça uma sessão de uma hora ou hora-meia em que o público não vê um único filme, mas três ou quatro. Se calhar, não só do ponto de vista das histórias, mas também da emoção e da estética seria uma mais-valia. Depois há uma característica no cinema de animação português que, para mim, é ainda mais forte do que no cinema de imagem real de ficção: o facto de trabalhar muito a nossa cultura. Isso é uma mais-valia para o público e é um nicho de mercado pouco explorado dentro do circuito comercial dos cinemas. Era bom para todos, em particular para o público, mas também para realizadores e produtores verem as suas obras em sala a par dos frequentes blockbusters.
Coincidência ou não, este ano a programação tem a maior participação portuguesa de sempre na competição. São 70 filmes. Há cada vez uma maior aposta no cinema de animação nacional?
Por um lado, durante dois anos houve uma paragem do ritmo de trabalho e muitas obras terminaram mais tarde do que o previsto, levando a uma certa acumulação de filmes. Depois há algum dinheiro para apoiar a produção. No entanto, o investimento deveria ser ainda maior para que as produções não parassem. Por exemplo, terminam duas longas-metragens, formaram-se uma série de pessoas, entretanto há um hiato porque não há mais dinheiro para que outros filmes que estão na calha continuem. Essa força de trabalho, que nós formámos, em quem investimos, acaba por procurar trabalho fora de Portugal. Isso, até do ponto de vista comercial, é errado. Não devem existir apoios para filmes de dois em dois anos, mas sim todos os anos. Sabemos que não há muito dinheiro, mas os produtores portugueses também aprenderam a conseguir financiamento no estrangeiro. O filme do Nuno Beato, Os Demónios do Meu Avô, por exemplo, tem uma coprodução com a Espanha. Era importante que o financiamento europeu e nacional dessem uma maior tónica ao cinema de animação, porque este oferece um imaginário e ao mesmo tempo consegue tratar problemáticas difíceis de uma forma profunda. O filme Nayola, de José Miguel Ribeiro, fala da guerra de Angola de uma forma que para mim muitos filmes de imagem real ainda não conseguiram, porque utiliza metáforas que no cinema de animação são mais fáceis de conseguir. Visitamos Trás-os-Montes, o Minho, toda a nossa cultura tradicional no filme do Nuno Beato, Os Demónios do Meu Avô. Vamos ao encontro da nossa cultura de uma forma muito realista, mais realista até do que num filme de imagem real.
O Japão, um dos países com maior relevância no cinema de animação, é o país homenageado nesta edição. Como organizaram esta parte da programação e quais os maiores destaques?
O país que homenageamos está sempre ligado a um facto histórico e este ano celebram-se os 480 anos da chegada dos primeiros ocidentais, os portugueses, à costa do Japão. Partindo desse facto dividimos esta programação em três blocos: um mais histórico, que inclui uma grande retrospetiva de célebres realizadores que estiveram na origem do cinema de animação no Japão; outro que exibe os filmes menos conhecidos do Studio Ghibli e por fim, um bloco, dedicado aos realizadores independentes. A abertura do festival conta com uma obra de um desses realizadores, um filme em estreia mundial, com música de um grande compositor para cinema de animação, o canadiano Norman Roger, e que contará com interpretação ao vivo do Coro da Escola Superior de Música de Lisboa.
A MONSTRA é sempre um festival de animação do mundo. Este ano estão representados 50 países. Que exibições ou convidados internacionais destaca.
Vamos ter um convidado muito especial, o Michaël Dudok de Wit, que fará uma masterclass sobre criatividade e do qual vamos passar algumas curtas, uma delas também oscarizada, Father and Daughter, assim como a longa, A Tartaruga Vermelha, que foi a única que o Studio Ghibli fez com um ocidental. Haverá também outra masterclass com Joan Gratz, realizadora americana especialista em animação de tinta sobre vidro. Depois há um programa muito interessante que vai ligar a língua portuguesa. O ano passado fizemos um filme que teve como ponto de partida os 200 anos da Independência do Brasil intitulado A Língua é a Nossa Independência, um trabalho feito em Portugal, em pareceria com realizadores brasileiros que partiu do facto de a língua portuguesa estar presente em três continentes e neles se recriar. O filme foi uma espécie de mote para o projeto Anima CPLP, que tem como mentor o João Marcelo, representante brasileiro na CPLP e que nos impulsionou a pegar em filmes de países onde praticamente não existe cinema de animação, como Cabo Verde ou São Tomé e Príncipe. Vamos fazer uma sessão de curtas de seis dos nove países da CPLP e uma sessão de longas onde são exibidas maioritariamente obras de Portugal e do Brasil. Esta programação culmina com um concerto que reúne uma rapper angolana e um rapper brasileiro. Por fim, temos várias estreias mundiais de filmes portugueses, entre eles o mais recente trabalho da Joana Imaginário, A Casa Para Guardar o Tempo, centrado nos livros e na necessidade de os preservar e por isso feito exclusivamente em papel e O Casaco Rosa, de Mónica Santos, que fala do Rosa Casaco de uma forma infantil, sem deixar de expor a realidade de um PIDE.
Apesar de ser um festival de animação para adultos a MONSTRA exibe paralelamente a MONSTRINHA dirigida aos mais novos. Qual a recetividade das escolas e a importância da formação de públicos deste programa?
A MONSTRINHA é o programa de que mais nos orgulhamos no festival, não só pela quantidade de escolas e crianças que são abrangidas, mas porque é um trabalho que faz sair as crianças do seu conforto para uma sala de cinema, onde podem ver filmes numa dimensão e envolvência diferentes. Por outro lado, permite uma discussão e a participação efetiva, uma vez que também eles votam nos prémios MONSTRINHA. Temos muito público juvenil e adulto que assiste à MONSTRA porque já teve uma iniciação na MONSTRINHA. Há também várias pessoas que estão ligadas à animação porque participaram, em criança, nas nossas oficinas. Acima de tudo a MONSTRINHA cria futuros espectadores. Acredito que os festivais de animação são o futuro das salas de cinema, porque mesmo os blockbusters, com a questão do streaming, vão cada vez mais ter dificuldade em ser exibidos num cinema. O festival é aliciante porque é o local onde se vê o filme em sala, mas onde também se pode contactar com o realizador, com os atores… Há toda uma envolvência. Acredito que as salas de cinema vão perdurar mais, por causa dos festivais de cinema.