teatro
A mulher que dançou a liberdade
"Isadora, fala!", de Rita Lello, no Teatro São Luiz
Por entre a leveza e a transparência dos tules suspensos, Rita Lello, descalça e de vestido vermelho, entrega-se à personagem fascinante de Isadora Duncan, aquela que muitos apontam como a grande pioneira da dança contemporânea. Mais do que um encadeado de episódios biográficos, Isadora, fala! é uma viagem poética e emocional sobre o percurso invulgar de uma mulher excecional. Até 9 de junho, na Sala Mário Viegas do São Luiz Teatro Municipal.
Pode ter passado mais de um século sobre os tempos de Isadora Duncan (1877-1927), mas a memória da mulher e o seu pensamento permanecem absolutamente atuais. Essa é a convicção de Rita Lello que, com a cumplicidade de Eugénia Vasques, traçou as coordenadas para uma viagem “a partir do itinerário proposto na poesia de Graça Pires”, no livro Jogo Sensual no Chão do Peito, e “na prosa da própria Isadora recolhida de várias fontes.”
De Duncan poderíamos dizer que é a precursora da dança contemporânea. Nascida americana, mas cidadã soviética nos últimos anos de vida, era a bailarina que não queria ser assim chamada porque, tal como um escritor usa as palavras, Isadora usava o corpo. Um uso vincado pelo “seu caráter destemperado, pela sua crença inabalável na liberdade – a liberdade das mulheres, a liberdade das pessoas, a liberdade criativa”, enfatiza Rita Lello, lembrando que ela foi mais do que “a criadora revolucionária” a quem chamavam “dançarina dos pés descalços”. Duncan foi uma feminista implicada, “uma pensadora com enorme lucidez crítica, que lutou pela emancipação das mulheres e pelo direito a terem o seu próprio espaço.”
Indissociável do seu pensamento, está uma vida aventurosa e invulgar, repleta de contornos trágicos – como o afogamento no rio Sena de dois dos seus filhos, ou até o violento acidente de carro que lhe causou a morte na Riviera francesa – e de amores ardentes – entre eles, as relações que manteve com o cenógrafo Gordon Craig, pai dos seus primeiros dois filhos, ou com o poeta russo Sergei Yesenin, seu único casamento; no campo da especulação mantem-se o caráter do relacionamento com a atriz italiana Eleonora Duce após a morte dos filhos.
Todos estes episódios da vida de Isadora Duncan vão compondo a viagem que Rita Lello faz a solo ao longo de pouco mais de uma hora. “Quis que o espetáculo tivesse algo de onírico e diáfano, mas sem que necessitasse de o colocar na representação”, explica. Para isso, é essencial o desenho de luz de Vasco Letria a acentuar a leveza e a transparência dos tules suspensos por onde a atriz se move. “Todos os elementos que aqui estão fazem parte do universo de Isadora: os tules que remetem para os cenários de Gordon Craig ou o vestido vermelho [figurino de Dino Alves] que era uma das suas marcas. Ela era uma vanguardista”, salienta Rita Lello.
Mas o que leva uma atriz de teatro a arriscar vestir a pele de uma personalidade que marcou a história da dança? “Quando li aquela frase da Isadora a pedir que não lhe chamassem bailarina achei que eu, que não sou uma atleta nem nunca dancei senão ballet em criança, poderia ser Isadora”, conta com um sorriso. “Para isso, devo muito à Amélia Bentes [coreógrafa] que me pôs a mexer e esteve constantemente a meu lado para que chegasse aqui sem que o meu corpo sentisse restrições.”
Quanto à urgência de recuperar o percurso e o pensamento desta mulher excecional, Rita Lello deixa a resposta no último parágrafo do texto que escreveu para a Folha de Sala de Isadora, fala!, nele reivindicando “um espaço de memória e um espaço de intervenção onde se estabelece o diálogo entre o discurso em defesa da liberdade de ontem, de hoje e de sempre.”