teatro
O receituário canibal de Neves-Neves
"O livro de Pantagruel" estreia no Teatro São Luiz
Naquela que é a quarta colaboração artística com o músico e compositor Filipe Raposo, Ricardo Neves-Neves parte do universo do escritor renascentista francês François Rabelais e cruza-o com um conjunto de grandes e pequenos monstros, bem reconhecíveis na cultura popular. O livro de Pantagruel é, simultaneamente, uma comédia (muito) negra e um improvável musical antropofágico, para ver a partir de 6 de julho.
De saltos altos e cabelo armado, cheia de pose e sensualidade feminina, eis a intemporal Pantagruel, apresentadora televisiva de um popular programa de culinária, chef antropofagicamente requintada e bruxa vil, incestuosa e infanticida. A seu lado, o jovem Nosferatu, a cumprir uns meros três meses de estágio profissional, e um lobo cheio de estilo, após a fuga bem-sucedida ao desfecho conhecido do conto do Capuchinho Vermelho.
A doce vida de Pantagruel, repleta das melhores iguarias canibais, prepara-se para ficar ainda mais apaladada quando chegam os irmãos parricidas Hansel e Gretel. E nem mesmo a misteriosa presença de dois fetos de gémeos monozigóticos, responsáveis por caos q.b. nas taxas Euribor e confusões em redes sociais, poderão evitar que outros acontecimentos monstruosos estejam prestes a acontecer.
Para O livro de Pantagruel, a mais recente “loucura” de Ricardo Neves-Neves, o ponto de partida foi o humor “grotesco, escatológico e controverso” do escritor quinhentista francês François Rabelais. “Procurava fazer qualquer coisa que parecesse não jogar”, ou seja, “encenar um musical sobre canibalismo quando, por norma, ao musical se aplicam temáticas bem mais nobres”, explica Neves-Neves. Como parceiro criativo, e depois do sucesso dos espetáculos Banda Sonora (2018), A reconquista de Olivença (2020) e a ópera As Cortes de Júpiter (2022), Filipe Raposo, um compositor habituado a conceber música para acompanhar grandes clássicos do cinema mudo, como por exemplo Nosferatu, de Murnau, filme visivelmente citado na peça.
Um menu de influências
Se o conceito de musical antropofágico nos lembra imediatamente Sweeney Todd, the Demon Barber of Fleet Street de Stephen Sondheim e Hugh Wheeler, Neves-Neves continua fiel aos momentos mais empolgantes do seu percurso e reúne, em O livro de Pantagruel, um vasto cardápio de influências, que vai dos contos infantis ao cinema de terror, e não só (spoiler alert: contém cenas à Tarantino), passando pelo teatro do absurdo e pelo non sense, “condimentos” que lhe são sempre particularmente caros.
A ideia do canibalismo surgiu da leitura de Rabelais, e dos seus monstros Pantagruel e Gargantua. “Ele é um dos pais da comédia e há nos seus textos um lado agreste e de nojo ao qual acho muita piada”, sublinha. Mas, “se a comédia” tem o condão de ser. “muitas vezes, rasteira, pode ao mesmo tempo ser elevada”, e O livro de Pantagruel usa um humor muito negro e o canibalismo como “metáfora para o modo como usamos o outro, como nos nutrirmos através do outro.”
Associado ao canibalismo, abriu-se caminho para um pot-pourri de bestialidades que O livro de Pantagruel não deixa por mãos alheias. Pela peça desfilam enredos incestuosos, crimes de vingança, casos de parricídio, matricídio e infanticídio, e outras e demais perversidades, que a dotam de um caráter subversivo que parece em desuso nos tempos que vivemos. “Acho que andamos a fingir em demasia quando todos procuramos ser elegantes e bem-nascidos”, confessa o encenador. “Enquanto artista, discordo da ideia do palco ser um sítio de pureza, um sítio de pedagogia para ensinar o outro a viver. O palco é lugar do pecado e da observação da falha.”
Construir legos
“Há um conceito temático, uma ideia musical e sonora e… acontece”. É assim que Filipe Raposo sintetiza o modo como trabalha com Ricardo Neves-Neves, lembrando que o processo é como que “brincado”. “Abrimos uma caixa de legos onde, previamente, o Ricardo já escolheu as cores e as formas, e começamos a montar.”
Para a música de O livro de Pantagruel, o compositor recorreu às muitas memórias visuais e sonoras que guarda do cinema fantástico e de terror, e nem todas provenientes de obras-primas como o citado Nosferatu. “Quando era miúdo as minhas irmãs mais velhas pediam-me recorrentemente para ir ao clube de vídeo e escolher o pior filme de terror que encontrasse. Acabei por ver coisas muito más, as quais reconheço por vezes surgirem como influências no meu trabalho.”
E, das influências mais explícitas de Neves-Neves, refiram-se as personagens dos contos infantis como aquelas que parecem dominar a forma do lego de que nos fala Raposo. O autor e encenador assume que tenta vestir sempre a pele da criança que foi e dar a essas personagens “um discurso desviante”, como aliás “as crianças fazem quando brincam a partir da realidade.”
“Parto quase sempre da pergunta e se, colocando as personagens ou num contexto diferente ou até explorando a ideia de que aquilo que conhecemos da história onde elas são protagonistas é um equívoco”, partilha. Assim, na peça, e a exemplo, temos a dupla Hansel e Gretel errando pela floresta após um sanguinário ato de vingança. Mas, há outras revelações surpreendentes sobre personagens que tão nem conhecemos.
Protagonizado por Sandra Faleiro, no papel de Pantagruel, o espetáculo conta com interpretações de Andreia Valles, António Ignês, Célia Teixeira, Diogo Fernandes, Eliana Lima, Inês Cotrim, Juliana Campos, Rafael Gomes, Rita Carolina Silva, Ruben Madureira e Sissi Martins, e com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, dirigida pelo maestro Pedro Neves. A direção vocal é de João Henriques, o cenário de Henrique Ralheta e, como habitualmente no Teatro do Eléctrico, e mais especificamente nas criações de Neves-Neves, os figurinos são de Rafaela Mapril.
Com estreia agendada para 6 de julho no Teatro São Luiz, O livro de Pantagruel fica em cena até dia 16, apresentando-se em Loulé, no Cineteatro Louletano, a 22 e 23.