teatro
A mais louca encenação da vida em família
"O regresso de Ricardo III no comboio das 9h24" no Teatro Maria Matos
Ao saber que sofre de uma doença terminal, um bem-sucedido empresário contrata um grupo de atores para interpretar a sua família desaparecida. Contudo, a encenação da reunião familiar transforma-se num exercício caótico, com os atores a confundirem constantemente realidade e ficção. Ricardo Neves-Neves dirige O regresso de Ricardo III no comboio das 9h24, uma comédia de grande sucesso em França, da autoria de Gilles Dyrek, agora em cena no Teatro Maria Matos.
Com uma vida empresarial repleta de sucessos, Pedro Henrique (Adriano Luz) desprezou a família e perdeu-a. Literalmente, porque um acidente de avião vitimou-a por inteiro. Quando toma conhecimento de que padece de uma doença terminal, o empresário decide contratar vários atores durante uma semana, levando-os para a sua casa de campo e pedindo-lhes que interpretem cada membro da família desaparecida. Contudo, a decisão desesperada deste homem à procura de ajustar contas com o passado depressa se vai revelar caótica. Afinal, como assume Ricardo Neves-Neves, encenador deste O regresso de Ricardo III no comboio das 9h24, “trata-se de um grupo de atores muito desequilibrado, em que cada um deles tem um parafuso a menos.”
Senão, vejamos: para interpretar Isa (Susana Blazer), mulher de Pedro Henrique, a atriz é demasiado jovem e, talvez, excessivamente preciosista para as exigências de um papel que se quer secundário; a interpretação da irmã, Manuela (Ana Nave), cabe a uma atriz inconformada com o sentido descendente da carreira, estando constantemente a convencer-se a si e aos outros de que ainda será capaz de trocar os recitais de poesia em lares de idosos por um regresso apoteótico aos grandes palcos.
Depois, há os filhos. A mais nova, Elisabete (Jessica Athayde), é interpretada por uma atriz em crise de identidade, muito capaz de vir a perceber que a solução para a sua vida passará por mudar de profissão. O papel do filho pródigo, Ricardo (Samuel Alves), começa por ser interpretado por um ator que abandona o papel ao receber uma chamada a anunciar que foi selecionado para filmar um spot publicitário, em Nova Iorque, para uma conhecida marca de automóveis, ao lado de Leonardo Di Caprio. Em sua substituição chega um novo Ricardo (Rui Melo), desempenhado por um ator irrascível, pouco polido e abusivamente dado ao improviso.
A estes junta-se ainda o melhor amigo e sócio brasileiro de Pedro Henrique, William (Miguel Thiré), interpretado por alguém que crê que só faz sentido ser-se ator se se for um sedutor (com tudo o que isso pode implicar); e o papel da mulher de Ricardo, Maria Cristina (Raquel Tillo), é entregue a uma atriz decidida a dar, à semelhança daquilo que é na vida real, uma personalidade inabalável ao papel que lhe calhou em sorte.
Como se calcula, tudo isto acaba por fugir muito rapidamente ao controlo de Pedro Henrique que, tal encenador em desespero, vai-se tornando cada vez mais impotente para manter os atores nos seus papéis e evitar que a “sua” ficção tome conta da realidade. Até porque, como a dado momento se escuta, “no teatro é tudo verdade desde que estejamos dispostos a acreditar.”
Mas, será que estaremos dispostos a isso quando, em palco, se questionar a tragédia da família, ou a doença de Pedro Henrique? Ou o porquê de em cena estar presente um amigo e sócio de negócios? Ou até quando algum dos atores achar que, talvez, seja melhor trocar de papel com outro?
Nomeada para o prestigiado Prémio Molière na categoria de melhor comédia, a peça do ator e dramaturgo francês Gilles Dyrek chegou às mãos de Neves-Neves por intermédio de Sandra Faria, da Força de Produção. “A Sandra investiga peças contemporâneas que estão a fazer sucesso pelos palcos da Europa e um dia falou-me nesta. Li-a e gostei imediatamente desta coisa de colocar os atores a mostrarem-se por dentro, deste jogo entre o teatro e a vida. E, também, de uma certa melancolia que há nesta comédia”, assume Neves-Neves.
Garantido um turbilhão de riso e gargalhadas, mas também de alguma introspeção sobre os mecanismos de relação do teatro com o faz de conta e a realidade, O regresso de Ricardo III no comboio das 9h24 é a nova proposta da Força de Produção para o Teatro Maria Matos, com estreia marcada para 26 de outubro.