teatro
É perigoso ser-se mulher…
"Tom Vinagre", de Caryl Churchill, no Teatro do Bairro
Na Inglaterra do século XVII, um casal de agricultores é assolado por uma série de infortúnios. Crentes na sua condição incontestável de "pessoas de bem", lançam a suspeita de estarem a ser vítimas de bruxaria, e acusam as vizinhas, uma viúva e a sua filha. Carolina Serrão encena Tom Vinagre, peça da consagrada dramaturga britânica Caryl Churchill, com um elenco exclusivamente feminino.
Para uma peça com 14 personagens como Tom Vinagre, a jovem encenadora Carolina Serrão optou por colocar em palco apenas cinco atrizes, sendo que quatro delas interpretam as personagens que morrem enforcadas ou queimadas, sob acusação de bruxaria: “Joan por ser uma mulher viúva, Alice por ser uma mulher livre, Susan por ser uma mulher que fez um aborto e Ellen por ser uma mulher que conhece as ervas”. Sobra apenas Betty, filha de proprietários rurais, que, por não querer casar, “é diagnosticada com histeria”, enfermidade comummente apontada às “mulheres de classe alta que não cumpriam os códigos éticos e morais vigentes.”
São estas cinco mulheres que, invertendo o ponto de partida da peça de Caryl Churchill, como que “reencarnam e contam a sua história pessoal”, passada na Inglaterra do século XVII, como se fosse aqui e agora, no palco de um teatro, com as cenas a serem pontuadas pela eletrónica de um live act de DJ Salbany.
Escrita em 1976, Tom Vinagre, ou Vinegar Tom no original, nasceu de uma colaboração de Churchill com a Monstrous Regiment, uma companhia de teatro assumidamente feminista, fundada apenas um ano antes na cidade de Cardiff, no País de Gales.
A partir do tema da “caça às bruxas”, a dramaturga construiu um texto admirável sobre uma época histórica, porém, empregando-lhe uma perturbante atualidade a que nunca é estranha a denúncia da opressão exercida por uma estrutura social patriarcal sobre as mulheres ao longo dos tempos. Como a própria autora assumiu, é “uma peça sobre bruxas sem bruxas”, ou, nas palavras de Carolina Serrão, uma peça sobre mulheres que pagaram com a própria vida “o serem diferentes, o não quererem comportar-se como a sociedade desejaria que o fizessem ou, mesmo, o serem pobres.”
O perigo de se ser mulher… e diferente
Tom Vinagre começa com o encontro amoroso de Alice com um desconhecido sobre quem, mais tarde, caiem suspeitas de ser o diabo. A jovem é filha de Joan, mulher viúva e dona do gato Vinegar Tom, que dá título à peça. Os seus vizinhos são os abastados Jack e Margery, agricultores e donos de terras, a quem a vida começa a correr mal subitamente. Em causa, uma peste que vitima os animais e uma série de problemas na leitaria. A isso, somam-se as constantes dores que assolam Margery e a impotência de Jack, posta a nu quando tenta violar Alice.
Como Deus não castiga “pessoas de bem”, o casal depressa procura uma justificação para tanto infortúnio. Nada mais fácil do que acusar Joan e Alice de bruxaria. Afinal, aquela mãe viúva de língua afiada e a sua filha tida como promiscua pelos aldeões são vítimas perfeitas para arcar com culpas alheias. Até porque não há figura masculina que as defenda.
Mas, em tempos obscuros, ter apenas duas bruxas não pareceria suficiente. Por isso mesmo, a comunidade acolhe de braços abertos a chegada de um reputado caçador de bruxas. Através do terror e da tortura, depressa se descobrem outras mulheres cuja acusação de bruxaria se configura na fuga à norma, na prática do aborto ou no interesse pelo saber.
Tal como Churchill apontou na sinopse que assinou para a estreia da peça, há quase 50 anos, neste tempo e neste lugar “é perigoso ser-se mulher sem um marido; é perigoso ser-se mulher e diferente; é perigoso ser-se mulher e usar ervas medicinais (…)”
Assumindo o espetáculo não apenas como objeto artístico, mas também como parte do seu ativismo feminista militante, Carolina Serrão conta que, “para além da profunda admiração por Caryl Churchill, a escolha desta peça passou muito pela leitura de um estudo de Silvia Federici”. Em O Calibã e a Bruxa, a filósofa italiana radicada nos Estados Unidos sustenta que “a caça às bruxas foi um dos acontecimentos mais importantes para o desenvolvimento da sociedade capitalista”, uma vez que, na fase final do feudalismo, “as mulheres assumiam muitas vez a liderança na luta e na resistência do campesinato europeu contra a tomada de terras por parte da nobreza e do Estado, e que estão na origem do capitalismo moderno.”
“A campanha de terror contra as mulheres foi incomparavelmente maior do que qualquer outra perseguição”, sublinha a encenadora ao lembrar que, como observou a escritora portuguesa e fundadora do Movimento de Libertação das Mulheres, Madalena Barbosa, “o número de mulheres queimadas na Europa durante três séculos chega a ser avaliado em nove milhões.”
Nos dias de hoje, em pleno século XXI, é com preocupação que Carolina Serrão verifica “tantos sinais de retrocesso quanto aos direitos das mulheres, inclusive no mundo ocidental”, lembrando, a exemplo, a reintrodução de leis de criminalização do aborto em vários Estados norte-americanos. Por isso, sublinha ser em nome do “combate pela igualdade de género e pela denúncia desta sociedade patriarcal que continua a domesticar os corpos”, que encenar este “texto maravilhoso” de Caryl Churchill é também “dignificar o legado das feministas que vieram antes de mim.”
A partir da tradução de Vera Palos, Tom Vinagre é um espetáculo interpretado por Catarina Marques Lima, Diana Narciso, Lúcia Pires, Márcia Cardoso e Mariana Branco, com cenário de Fabíola Emendabili e Frederico Pauleta, desenho de luz de Rui Seabra e figurinos da própria Carolina Serrão. Estreia dia 8 no Teatro do Bairro, permanecendo em cena até 26 de novembro.