Aurora Negra

"O perigo da história (...) contada apenas de um ponto de vista é continuar a perpetuar uma narrativa sem culpa."

Aurora Negra

As “irmãs” (é assim que se consideram) Cleo Diára, Nádia Yracema e Isabél Zuaa são a Aurora Negra. O nome deu que falar em 2019, quando o projeto venceu a Bolsa de Criação Amélia Rey Colaço dando origem ao espetáculo homónimo, estreado no Teatro Nacional D. Maria II, no ano seguinte. Em 2022, as criadoras e atrizes voltaram a juntar-se e apresentaram Cosmos. Agora, desafiada pelo Teatro do Bairro Alto para revisitar um dos textos fundamentais do teatro pós-dramático, A MissãoRecordações de Uma Revolução de Heiner Müller, a Aurora Negra “traiu” o autor alemão e faz a “revolução” através das suas próprias palavras e histórias, ao lado de outras atrizes negras – Aisha Noir, Ana Valentim, Rita Cruz e Romi Anuel. A Missão da Missão estreia a 7 de dezembro.

O espetáculo que se preparam para apresentar partiu de um desafio do Teatro do Bairro Alto (TBA) no sentido de revisitar a única peça que a Cornucópia [primeira companhia residente naquele teatro] encenou por duas vezes…

Sim, foi um convite surgido no ano passado, quando estávamos a fazer o nosso Cosmos no Teatro Nacional D. Maria II. O propósito era trazer, por ocasião dos 50 anos do 25 de Abril, A Missão, de Heiner Müller, mas feita a partir das nossas histórias, biografias e referências…

Mas, de repente, na ficha do espetáculo notamos que o texto de Müller deu lugar a um texto da Aurora Negra, certo?

Certo [risos]. Acontece que nós tentámos, tentámos mesmo muito mergulhar nesse texto, mas com o avançar do processo fomos percebendo que aquelas palavras não reverberavam em nós, não cabiam nas nossas vivências, nas nossas corpas, nas nossas bocas. Queríamos contar outras histórias, histórias que se aproximassem daquilo que são as lutas, as crenças e as vontades das três enquanto criadoras. Com todo o respeito ao Heiner Müller, à sua escrita, à sua história e às suas pesquisas, prosseguir n’ A Missão seria desrespeitar-nos a nós mesmas, ao nosso tempo e às nossas escritas.

A peça do Müller aborda uma revolução falhada, e traída, que visava a instauração de uma república haitiana negra. Vocês não encontraram neste enredo nenhuma hipótese de se apropriarem do texto?

Como dissemos, nós tentámos, mas há desde logo algo irónico em tudo isto. Repare-se como, no Müller, entre os três emissários enviados para conduzir a revolução há apenas um negro. É demonstrativo da visão de um homem branco que, ao proclamar os seus ideais de igualdade e de fraternidade, coloca aquele que oprime a dizer ao oprimido como é que ele deve lutar para deixar de o ser. Mesmo a personagem do negro, o Sasportes, que pela cor da pele e pelo discurso seria a que mais nos representa, não cabe nos nossos ideais de mulheres, mais a mais, mulheres negras contemporâneas. Logo, o nosso ato consciente de trair Müller deve ser entendido como um ato de libertação de nós mesmas.

Mesmo assim, ficou alguma coisa do texto de Müller?

O texto dele foi importante no sentido de nos fazer pensar as nossas missões. De certo modo, aquilo que começámos por fazer é muito parecido com o que o Heiner Müller fez, ou seja, tal como ele se espelhou noutro texto [Das Licht auf dem Galgen (A luz na forca) de Anna Seghers] para criar A Missão, nós espelhámo-nos no dele para escrever A Missão da Missão. E é este o texto que faz sentido para nós e que cabe na nossa perspetiva de missões.

E de que missões falamos?

A de trazer as tão pouco conhecidas histórias das guerrilheiras da luta de libertação colonial, mas também a de continuar a missão que foi iniciada lá atrás e que vai sendo cumprida. Missão essa que gera outra e outra missão, na medida em que se vão conquistando mais liberdades e outros desafios vão surgindo. É um caminho que vai sendo percorrido e que podemos olhar recorrendo à metáfora da estafeta, onde sempre há qualquer coisa que nos vai sendo entregue, e que nós transportamos e passamos. E uma das nossas missões é procurar fazer arte como possibilidade de reparação histórica e de agitação de consciências.

“Acreditamos que nada somos sem o que ficou para trás, já que o futuro são as utopias de sonhos passados.”

Na sinopse do espetáculo fala-se na “construção” de uma “revolução negra e feminista”…

Nós somos alimentadas por outras mulheres negras que fizeram as suas revoluções. E nós, também, estamos aqui a fazer as nossas, e a alimentar a que outras mulheres negras venham a fazer no futuro. Voltamos à metáfora da estafeta, uma vez que a missão de hoje já parte de um ponto diferente daquela que foi a missão, por exemplo, das mulheres que combateram nos movimentos de libertação africana. Acreditamos que nada somos sem o que ficou para trás, já que o futuro são as utopias de sonhos passados.

Como é que este espetáculo dialoga com as vossas duas criações anteriores?

A predominância da figura feminina e a questão da relação passado/ presente/ futuro é comum, ou não trabalhássemos as nossas próprias histórias e narrativas. Tal como Aurora Negra e Cosmos, também aqui o tempo é espiralar. E é nesse tempo que surge ora um lugar nosso e das outras atrizes, ora o das mulheres que evocamos. Em palco, há uma ação que se espelha numa Deolinda Rodrigues [escritora e intelectual angolana, quadro do MPLA] ou numa Titina Silá [heroína independentista guineense], há outra ação numa de nós, outra ainda numa das atrizes, e assim por diante. Não é tanto a representação física das personagens, mas a representação ideológica delas.

Sentem, portanto, uma forte urgência em recuperar a história dessas mulheres.

Estas mulheres que trazemos deveriam ser do conhecimento de todos, deveriam inscrever-se na história política e social portuguesa. O 25 de Abril nasceu em África e foram os movimentos independentistas onde elas lutaram que determinaram muito do que se passou no futuro. Ao falar delas estamos a contar a nossa história, mas também a história deste país. Porque essa história não pode ser contada sem estas mulheres guerrilheiras que combateram aqueles que foram, que eram os objetivos de Portugal para os nossos territórios, para os nossos corpos, para as nossas matérias-primas…

E como é que através delas se chega ao presente?

O legado delas tem permitido, ao longo de todo este processo de pesquisa, um pensamento sobre a liberdade e a revolução nos dias de hoje. Com tudo o que acontece no mundo, é impossível este espetáculo não fazer o espelhamento do que se passa no Congo, no Sudão, no Haiti, na Palestina. As guerras continuam, e qual é o denominador comum a todas elas? É o Ocidente. O Ocidente com o capitalismo e o homem branco e o seu privilégio.

Aponte-se então um futuro…

A “missão da missão” é instigar à revolução, é inspirar uma liberdade real e concreta que se oponha aos sistemas que oprimem e que continuam a usurpar e a erigir-se em cima da matança e da exploração. Conhecer a nossa história faz com que possamos mudar alguma coisa, aqui no presente, para que o futuro não repita o passado de uma forma insana e displicente. O perigo da história única, da história contada apenas de um ponto de vista, é continuar a perpetuar uma narrativa sem culpa. Por isso, a nossa luta é herdar uma história que é nossa.

Apesar dos temas delicados, os vossos anteriores espetáculos tinham uma aura de celebração. E este?

O palco é sempre um lugar de celebração e é evidente que o orgulho nas mulheres que evocamos e naquilo que temos vindo a construir merece que se celebre a vida, as histórias, a existência. O povo africano, de um modo geral, tem a capacidade de ser resiliente e de conseguir celebrar, de se ritualizar, não só no quotidiano como nos ritos de passagem. Não é um passado marcado por tanta violência que nos impede de o fazer. Este espetáculo traz a herança de um povo conectado com a terra, com o sol, com a natureza. E a natureza regenera, volta mais forte e diferente.