entrevista
Marta Pessoa
"O racismo é uma questão de agora. (...) Qual o futuro de um país que não assume esta herança?"
No seu mais recente documentário, Rosinha e Outros Bichos do Mato, a realizadora Marta Pessoa revisita a primeira Exposição Colonial, que teve lugar no Porto, em 1934, a partir da figura de uma jovem nativa guineense que se tornou símbolo de uma ideia idílica de colonialismo. No intuito de entender como o Estado Novo sedimentou essa visão de império, assente nos pilares “possuir, colonizar, civilizar”, o filme reflete sobre a presença, ainda hoje, de um pretenso “racismo suave” dos portugueses. Em estreia a 18 de janeiro, no Cinema City Alvalade.
“Portugal não é um país racista”. O filme abre com esta frase, que ouvimos frequentemente. Foi o ponto de partida para o filme?
O crescendo, o começar a ouvir mais e mais esta frase foi o que me levou a avançar, a perceber que tinha de ser agora, mas não foi o ponto de partida. O ponto de partida surgiu de outros filmes que fiz sobre o Estado Novo e a Guerra Colonial, a invisibilidade da mulher, a perseguição da polícia política, toda essa temática onde encontro coisas escondidas, que não se conhecem e que vão servindo de mote de um filme para outro. Depois houve duas coisas que me influenciaram diretamente a fazer este documentário: o filme Vénus Negra (2010), de Abdellatif Kechiche, sobre uma mulher negra que veio para a Europa no século XIX e que foi exposta em circos e espetáculos de aberrações; e, em 2014, um pequeno artigo da [investigadora do Instituto de Ciências Sociais] Filipa Lowndes Vicente, no jornal Público, que falava sobre a primeira Exposição Colonial do ponto de vista da mulher. Foi quando comecei a ouvir com mais frequência um certo tipo de ideias ligadas ao racismo – o luso-tropicalismo, que erámos mais suaves, que não tratávamos mal as pessoas, que não eramos como os ingleses, que violentos eram os belgas, etc… Ou seja, o mesmo contexto onde surge a tal afirmação que “Portugal não é um país racista.”. Senti que este era o momento de fazer o filme.
No início do documentário, a Marta questiona-se sobre qual será a melhor forma de começar, a partir de quando e de que evento. Foi difícil escolher o acontecimento específico e uma época para começar a contar esta história?
A Exposição Colonial de 1934 esteve sempre no centro do filme. No início, a ideia era fazer um travelling sobre o Império, a começar no século XIX. A partir do momento em que descubro esta exposição, e percebo que muito pouca gente a conhece apesar de ter sido um acontecimento de uma extrema violência, começo a questionar o porquê desse desconhecimento. Eu sei o porquê. Apesar de ter nascido em 1974, ainda fui ensinada com base na narrativa dos Descobrimentos, dos nossos heróis, de quem está acima, de quem está abaixo, dos superiores e dos inferiores. Tenho a convicção de que nos ensinaram a ser racistas, ensinaram-nos com base nessa ideia de Império. Depois de ter visto tantas imagens da Exposição, falei com a Rita Palma [coargumentista e montadora do filme] sobre cada acontecimento, sobre cada discurso com que nos deparávamos e que eram de uma enorme violência. Percebemos que o filme tinha de ser um diálogo entre mim e a Rita, pois era a melhor forma para se perceber a história.
O discurso e as intenções da Exposição Colonial, as imagens das pessoas que foram expostas e que estavam a cargo de um “curador” dos indígenas, são chocantes. De facto, não se compreende porque não se fala disto nas escolas…
Tenho a certeza de que devíamos ser ensinados de outra forma. Uma das atrizes no filme relata que, quando veio estudar para Portugal, os colegas não sabiam quem era Amílcar Cabral. Para mim, é chocante que pessoas com cerca de 20 anos não saibam quem ele era. A importância que teve para a independência da Guiné e de Cabo-Verde e mesmo para história de outros movimentos de libertação de África. Não saber isto demonstra o afunilar de ideias. O saber enriquece, por isso não consigo compreender este desconhecimento. A Exposição também me interessou porque há muita material disponível sobre o evento. Esse tal curador dos indígenas foi algo que descobri no jornal Comércio do Porto Colonial, está relatado e alguém escreveu sobre isso. Como os discursos, nomeadamente o do diretor da exposição, Henrique Galvão, está tudo documentado. Há quem afirme que aquilo não foi bem assim. Não! Aquilo foi mesmo assim. Está escrito e está disponível para quem quiser consultar. Toda aquela ideologia está ali plasmada. No Comércio do Porto Colonial que dá um lado mais quotidiano, percebe-se, sem dúvida nenhuma, que aquelas pessoas eram tratadas como se não fossem pessoas. Percebe-se a violência…
Rosinha, uma das raparigas africanas que vivia numa das aldeias da Exposição, foi, inconscientemente, a imagem do evento. Ela é, também, a principal protagonista do documentário. Foi intencional?
Sim, foi intencional. Era impossível que não fosse assim. Há tantas, mas tantas imagens da Rosinha… Ela, inclusive, foi coroada rainha da exposição. Transmitia aquela ideia da mulher disponível, uma metáfora da exploração imperial colonista, o corpo disponível para ser olhado e explorado. No caso dela isso foi levado até ao extremo. Muitas das fotografias foram tiradas antes da Exposição pelo fotógrafo oficial Domingues Alvão. Podemos pensar que eram espontâneas, mas não, havia um propósito de passar uma mensagem que rebaixava aquelas pessoas. Domingues Alvão já o tinha feito anteriormente em 1910, 1920, com fotografias que caracterizam e tipificavam as mulheres portuguesas.
O livro Raças do Império catalogava as raças dos portugueses, tanto os das colónias como os da “metrópole”. “Um império multirracial idílico, do Minho a Timor”. A normalização de um discurso racista, como afirma no filme, moldou e enraizou-se na cultura e sociedade portuguesas, com ecos na atualidade. Concorda?
Estes regimes funcionam a pôr pessoas no seu lugar. Um lugar que é sempre de obediência. Controlar as pessoas era essencial. Os portugueses precisavam de aprender quem eram e como deviam olhar para os outros. Por exemplo, havia a necessidade de haver um modelo para a mulher: devia ser recatada, bonita, modesta de atitude. Quem melhor para servir esta ideia eram as minhotas, que representavam a cultura e a tradição. Viana do Castelo era o exemplo da tradição. É óbvio que, hoje, ainda há ecos dessa mensagem, dessa ideia de identidade, de tradição, de todos os chavões que vêm de regimes passados.
O filme coloca em espelho a Exposição de 1934 com um grupo de pessoas de hoje, jovens portugueses de origens diversas. Mas, também, com mulheres minhotas do Grupo Etnográfico de Areosa. Qual o objetivo de escolher estas pessoas?
O racismo é uma questão de agora. Quando questionamos sobre quem são as pessoas mais agredidas, penso sempre nos jovens. Como é que se vive, qual o futuro de um país que não assume esta herança, que não ensina na escola? Interessou-me perceber qual seria o olhar destes adolescentes ao terem conhecimento do zoo humano que existia na Exposição de 1934. Isto foi trabalhado em conjunto com a coreógrafa Joana Bergano, que era professora de dança destes jovens. A proposta era eles olharem para as muitas imagens e escolherem aquelas que mais lhes diziam, aquelas que os interpelavam a vários níveis. E, uma vez que pertencem a um grupo de dança, que os interpelavam ao nível gestual e da encenação. Tivemos também conversas e percebi que estes jovens continuam a ser vítimas de um outro olhar, a ser considerados o outro, a sofrer agressões diárias, que há quem desconfie e veja o diferente em pessoas iguais… Isso tudo ainda existe, ainda está presente.
A Marta trabalha sempre temas de grande relevância social e histórica. Para si o cinema é uma forma de mostrar aquilo de que não se fala? Dar a conhecer aqueles que ninguém vê?
Sim, mas não é intencional, foi acontecendo. Um filme tem levado a outro e surge muitas vezes da pergunta: porque é que não damos valor a isto, porque é desconhecido? Então decido que vou fazer alguma coisa, que vou expor o tema. De certo modo são o choque e a indignação que me impulsionam. E apesar de serem filmes sobre temas do passado, acabam sempre por ter ecos no presente. Gosto, especialmente, de fazer filmes onde posso ouvir e dar voz a outras pessoas. Embora use muito imagens de arquivo, gosto de ter o contraponto do diálogo com outras pessoas.