sugestão
Os livros de fevereiro
Sete livros para ler e partilhar
No mês de fevereiro, propomos a leitura de um belo conjunto de reedições ou reimpressões de obras clássicas de escritores com a dimensão de Honoré de Balzac, Joseph Roth, Ernest Hemingway, Nikos Kazantzakis e Marguerite Duras. Destacam-se ainda Longos Versos Longos, o novo livro de poesia de João de Melo, e Corpos Estranhos, de Simon Schama, um estudo que relaciona as pandemias de varíola, cólera e peste com o antissemitismo, o populismo e o triunfo da cooperação internacional sobre os egoísmos nacionais.
Nikos Kazantzakis
A Última Tentação
O grande escritor grego Nikos Kazantzakis (1883-1957) considerava a sequela moderna da Odisseia de Homero, epopeia de 33.333 versos, como a sua mais importante obra. No estrangeiro, porém, foram dois romances que lhe trouxeram a notoriedade: Vida e Andanças de Alexis Zorbás (Edições 70) e A Última Tentação, ora reeditado. Escreve o autor: “Este livro não é uma biografia, é a confissão do homem que luta”. E descreve esse conflito como “a luta incessante e impiedosa entre o espírito e a carne”. Kazantzakis dá-nos um Cristo atormentado pela dúvida, o medo e o desejo, dividido entre os anseios de uma existência normal, com os prazeres da vida familiar e da relação conjugal, e o chamamento divino que o conduz à via do sofrimento e da renúncia. Jovem carpinteiro, é odiado na sua aldeia por construir as cruzes com que os romanos crucificam os judeus rebeldes ao seu domínio. Só, parte para o deserto procurando iludir um destino inescapável. Esta obra profunda e notável valeu ao autor a excomunhão da Igreja Ortodoxa Grega e foi inscrita no Index da Igreja Católica. Aquando da sua morte, foi sepultado na muralha de Heraklion (na ilha de Creta, onde nasceu), pois a Igreja Ortodoxa não autorizou o seu enterro num cemitério. Lê-se no seu epitáfio: “Nada espero, nada temo. Sou livre.” Edições 70
João de Melo
Longos Versos Longos
“Sou dado às prosas, não às musas”, confessa o escritor João de Melo. Todavia, Longos Versos Longos assinala o regresso de João de Melo à poesia, quatro décadas após a publicação do seu primeiro e, até agora, único livro de poemas: Navegação da Terra (1980). A coletânea, dividida em cinco partes, reúne poemas de exaltação do tempo e da vida, derivas sobre a angústia e a metafísica, um roteiro sentimental de viagens e uma inevitável revisitação apaixonada das tão amadas ilhas dos Açores (“A ilha mãe com a amada / se confunde / carregada de incenso e louro”). Estamos perante uma “poética meditada sobre a escrita e a literatura, a efemeridade do ser, a espiritualidade da fé e a perda de Deus”. No final, as “Últimas Elegias” apresentam alguns poemas trágicos sobre o quotidiano coletivo, um deles em prosa, Poema às Portas de Bagdade, que reporta os horrores constantes das guerras. Num belo soneto sobre a própria “arte poética” (Soneto Absinto) lê-se: “Frustrou-se em mim o poeta, a voz que desdenha / a grosso o canto e bebe o verso com seu absinto. / Restam-me a areia, o cio, a raiz da criação islenha. / E cantar o fogo em brasa, mesmo se já extinto”. Dom Quixote
Ernest Hemingway
Fiesta – O Sol Nasce Sempre
“Toda a minha vida olhei para as palavras como se as estivesse a ver pela primeira vez”. Ernest Hemingway (1899/1961), alterou, provavelmente, mais do que qualquer outro romancista do século XX a forma como os escritores usam as palavras. Profundamente imitada, a sua prosa permanece, no entanto, inconfundível. Assenta numa escrita substantiva, económica e concisa, de aparente simplicidade mas de grande subtileza experimental, dotada de uma musicalidade poética de ritmos percutidos, apta a captar os diversos cambiantes da linguagem coloquial. A sua obra, longa autobiografia ficcionada, pontuada por descrições de extraordinário poder evocativo e encantatório, reflete de modo heroico a experiência íntima da derrota, da fugacidade da felicidade e da certeza da morte. O romance Fiesta – O Sol Nasce Sempre, uma das obras-primas do autor, narra a história de um americano, emasculado na I Guerra Mundial, que vive em Paris com um grupo internacional de expatriados. Um grupo exuberante, mas sem objetivos, arrancado ao sentido normal da vida pela experiência traumática da guerra. Foi este, justamente, o livro que tornou famosa a “geração perdida”, termo cunhado por Gertrude Stein em conversa com Hemingway. A obra evolui sem aparente finalidade num movimento circular que evoca o perpétuo nascimento do sol referido no título, numa citação de Eclesiastes. Livros do Brasil
Marguerite Duras
Hiroshima, Meu Amor
A vida e obra de Marguerite Duras (1914-1996) estão intimamente ligadas aos principais eventos do século XX: a dissolução do colonialismo, o genocídio nazi, a criação do Bloco de Leste, a revolução sexual e a predominância do cinema. O desejo ocupa o centro da sua reflexão sobre o fracasso das relações pessoais e políticas, primeiro na literatura, depois no cinema que mais tarde abraçou. Hiroshima, Meu Amor, filme realizado por Alain Resnais com um argumento muito literário de Marguerite Duras (que agora se publica) abalou, em 1959, todas as regras estéticas que regiam o cinema. A obra cruza a aventura passional entre uma jovem francesa e um arquiteto japonês com um intenso requisitório antinuclear. Hiroshima, coberta por cinzas e “pela morte atómica”, é “o terreno comum onde os dados universais do erotismo, do amor e da infelicidade” reúnem estes dois seres. Os amantes verbalizam a sua paixão física com uma audácia inusitada: “Como havia eu de imaginar que eras feito à medida do meu próprio corpo? (…) Devora-me. Devora-me até à fealdade.” Concebido como um amplo poema lírico, nos antípodas do realismo habitual, constituído por complexas memórias e justaposições, elíptico e não linear, o filme veio reclamar um novo espectador de cinema. Quetzal
Honoré de Balzac
Eugénie Grandet
Honoré de Balzac (1799/1850) concebeu uma obra monumental com perto de uma centena de volumes. A sua quase totalidade forma um conjunto a que deu o título de A Comédia Humana, através do qual cria um extraordinário retrato da sociedade francesa da primeira metade do séc. XIX. Visionário poderoso, dotado de uma imaginação e sentido de observação invulgares, debruça-se sobre as problemáticas da paixão e da tomada do poder pela burguesia endinheirada. Eugénie Grandet foi escrito em 1833 como parte do colossal projeto A Comédia Humana e é considerado a obra fundadora do romance balzaquiano. Eugénie vive com os pais em Saumur, nas margens do rio Loire, filha de um vinhateiro rico e avarento. A mão da jovem é disputada pelas famílias mais importantes da região, mas ela apaixona-se pelo seu elegante, indolente e arruinado primo. O livro narra a história de um amor não correspondido no seio de uma sociedade materialista. Brilhante descrição de costumes, protagonistas e espaços da vida provinciana, promove uma profunda reflexão sobre a futilidade pequeno-burguesa, o poder que o dinheiro exerce sobre a vida e o caráter das pessoas, a frustração amorosa e a natureza humana. Relógio D’Água
Simon Schama
Corpos Estranhos – Pandemias, vacinas e a saúde das nações
Corpos Estranhos recorda os negros tempos em que a varíola atacou Londres, a cólera atingiu Paris e a peste chegou à Índia nos séculos XVIII e XIX. Lembra, igualmente, que história das pandemias é frequente a atribuição de culpas pelos novos focos de infeção aos “outros estranhos”. No período vitoriano a cólera era designada como “perigo amarelo”; Donald Trump referiu-se ao coronavirus como “Kung-Flu” ou “virús chinês”. Um dos grupos historicamente mais afetados por tais calunias foram os judeus. Desde o seculo XIV, entre muitos outros casos, que se viram responsabilizados pela peste negra. Talvez, por esse facto, se tenham dedicado ao estudo da microbiologia e da vacinologia. Sir Simon Schama, nascido em Londres em 1945, professor universitário de História da Arte e de História na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, dedica a sua atenção a dois deles: Élie Metchnikoff, pioneiro do estudo da imunologia, e ao seu pupilo Waldemar Haffkine, um revoltado estudante judeu de Odessa que se tornou microbiólogo no Instituto Pasteur. Louvado em Inglaterra como “o salvador da humanidade” por ter vacinado milhões de pessoas contra a cólera e a peste bubónica na Índia britânica, apesar de menosprezado pelas autoridades médicas do Raj. Corpos Estranhos, cruza as fronteiras entre Este e Oeste, Ásia e Europa, os mundos de ricos e pobres, da política e da ciência. O livro reafirma a crença do autor na inseparabilidade dos seres humanos, afirmando que, ao enfrentarmos juntos os desafios do nosso tempo, “não há estranhos, mas apenas familiares.” Temas e Debates
Joseph Roth
Hotel Savoy
Joseph Roth (1894-1939) nasceu em Brody, cidade dominada pela cultura judaica no extremo do Império Austro-Húngaro (atual Ucrânia). Em 1920 dedica-se ao jornalismo em Berlim e torna-se num dos grandes cronistas da República de Weimar. Assiste à crise da velha capital prussiana e ao advento do nazismo, manifestando na sua obra de ficção uma crescente nostalgia pela vida e valores do antigo Império Austríaco. Um tema torna-se recorrente na sua obra a partir dos anos 20: as personagens são sobreviventes, soldados como ele que regressam da I Grande Mundial para se confrontarem com o facto de que já não existe lugar para voltar. Personagens imbuídos de um profundo sentido de desenraizamento. Hotel Savoy não é exceção: um jovem judeu vienense, prisioneiro de guerra num campo siberiano, regressa a casa no fim da guerra. No caminho, numa das paragens, fica hospedado no Hotel Savoy, microcosmos do mundo: “nos andares de baixo moram, em quartos amplos e bonitos, os ricos (…) e nos andares de cima os pobres diabos que não tem dinheiro para pagar os quartos”. É a partir de um andar de cima, que o protagonista assiste ao caos, à desigualdade social e ruína económica que a I Guerra Mundial provocou e ao desfecho apocalíptico que se avizinha. Dom Quixote