entrevista
Rodrigo Areias
"O objetivo com 'O Pior Homem de Londres' é que os espetadores cheguem ao fim a discordar do título"
Quando investigavam sobre a época vitoriana e a irmandade dos pré-Rafaelitas, o realizador Rodrigo Areias e o argumentista Eduardo Brito ficaram a saber mais sobre o luso-inglês Charles Augustus Howell, que se tornou figura dominante na história que haveriam de filmar. Agente dos grandes artistas daquele período, negociante de arte, agente secreto e mestre da chantagem, Howell era reconhecido pela capacidade de seduzir e pelo extremo bom gosto com que se apresentava. Entre factos e lenda, Areias optou por incluir ambos em O Pior Homem de Londres, filme que chega aos cinemas a 8 de fevereiro.
O projeto deste filme nasceu consigo ou juntou-se ao mesmo num momento posterior?
Há cerca de 15 anos que o Paulo Branco procurava convencer-me a fazermos um filme juntos e, como sempre tive uma boa relação com ele, achava que isso poderia estragar a nossa relação. Mais valia continuarmos a jantar e a ver filmes juntos e a conversar. Porém, a dada altura, ele traz-me este projeto específico. Respondi-lhe que o filme de um ponto de vista britânico me interessaria pouco, mas falei-lhe de um amigo, o Eduardo Brito, que lhe poderia apresentar, e que poderia trazer essa outra perspetiva de que sentia falta. O Brito é aficionado do universo do Sherlock Holmes, e tinha um conhecimento mais profundo dessa época do que eu na altura. Período que acabou por ser historiado pelo William Michael Rossetti, o autonomeado biógrafo dos pré-Rafaelitas. Só a visão dele tem prevalecido até hoje.
Que fontes serviram de referência para a construção da narrativa?
Há um livro muito interessante, que conseguimos comprar através da Internet, da autoria da filha do William Michael Rosetti, que discorda da visão do pai e conta histórias de um Charles Augustus Howell, amigo da família com o qual o pai tinha sido injusto. Daí passámos a analisar algo que me fascina pessoalmente: a correspondência entre todas estas personagens, que se encontra em livros diferentes. Depois, é claro, que sobre os pré-Rafaelitas existem muitos títulos publicados.
O filme é inteiramente dominado pela figura de Charles Howell (Albano Jerónimo). Procurou mostrá-lo mais como herói ou como vilão?
O meu grande objetivo com o filme é que os espectadores cheguem ao fim a discordar do título. Todos temos esses dois lados, de herói e vilão. As situações que filmámos, supostamente, existiram todas. Os negócios cruzados, a falsificação dos quadros pela Rosa Corder, ou o seu encontro com Felice Orsini, que terá de fugir após o atentado a Napoleão III, são factos. O Howell acaba por estar ligado a vários movimentos, e os acontecimentos da sua vida foram referidos pelo jornal jacobino da época.
O modo como Howell se apropria da arte de outros e lhes fornece o láudano, parece fazer dele uma figura vampiresca que rouba a vida das suas vítimas. Concorda com esta leitura?
Não concordo. Vejo-o como o amigo facilitador. Não instiga os outros a consumirem láudano. E ele próprio, que se saiba, nunca consumiu. É aquele que garante que tudo o que os seus amigos precisam, ele vai resolver. Há sempre nele o desejo de ser aceite e a vontade de agradar. Foi o que achei importante de ir deixando no filme. O comportamento dele é o de um anglo-português que se liga ao lado ítalo-inglês de Dante Gabriel Rossetti, de quem se torna amigo, também porque a nossa cultura consegue facilmente encontrar num italiano um par em qualquer ambiente.
Que elementos do cinema, da literatura e da pintura o inspiraram na criação da atmosfera de O Pior Homem de Londres?
A ideia foi que visualmente o filme partisse de quadros, uns mais facilmente reconhecíveis porque estão no filme. E necessariamente a luz e a cor que se ligam também aos pré-Rafaelitas. Também a questão do detalhe exterior, de filmarmos à hora em que pintavam. E, depois, ir desmontando. Uma série de cenas começam num quadro, facilmente identificável, e depois o filme continua. A ideia de dividir as cenas em poucos planos, optar por ter movimentos de câmara em detrimento de uma linguagem cinematográfica mais clássica, era para ter alguma fluidez e começar num quadro e terminar noutro sem que fosse muito forçado. O ponto de encontro nas minhas discussões com o Paulo Branco acerca deste filme foi o cinema de Raúl Ruiz. Até na utilização do Christian Vadim e do Jean-François Balmer que, para mim, são atores do Ruiz.
O seu filme não aprofunda o trabalho artístico dos elementos da irmandade dos pré-Rafaelitas. Essa opção foi assumida desde o início do projeto?
Sim, porque a questão dos pré-Rafaelitas tem para mim a ver com um contexto. O que me agrada neles é, essencialmente, a forma tribal como decidiram romper com o status quo. Cada um tem a sua função, mas em conjunto são capazes de criar algo que rompe, porque não deixa de ser um mistério ainda hoje a razão por que [o crítico de arte] John Ruskin decide apoiá-los daquela forma. Essa influência foi fundamental para a validação desse movimento artístico, mas deixámos isso para trás para nos concentrarmos na importância da personagem do Howell.
Quais foram os maiores obstáculos à produção de um filme cuja ação tem lugar em Londres na segunda metade do séc. XIX, e que não foi rodado na capital britânica?
Dir-lhe-ia para já que o que íamos fazer de exteriores também não seria em Londres. Era na Holanda, na verdade. Também vivíamos um período pandémico difícil de gerir, o filme foi adiado várias vezes até que fosse possível filmar, e o que decidi fazer foi filmá-lo perto. Num sítio em que pudesse controlar as coisas de alguma forma. O filme foi rodado integralmente em Portugal. Aquilo que interessante nesse processo foi descobrir que existem comunidades de ingleses, maioritariamente no Porto, onde o cemitério é inglês, o padre da igreja nem português fala, e as pessoas que nos abriam a porta, umas falavam português e outras não. É todo um submundo de upper class, das famílias do Vinho do Porto que mantêm costumes seculares. Fomos tendo algum acesso a palacetes ingleses e a casas vitorianas que existem em Portugal. Mas depois todo o papel de parede foi desenhado de propósito para o filme. O trabalho de guarda-roupa e de cenografia foi substancial e muito sério.
Já teve oportunidade de mostrar O Pior Homem de Londres a um historiador deste período? Preocupa-o o grau de verossimilhança que existe no filme?
Ainda não pensei nisso, mas irá inevitavelmente acontecer. O princípio da verosimilhança do filme está sempre salvaguardado: pela pesquisa que foi feita e pela forma como trabalhámos.
Considera-se acima de tudo um produtor que também realiza, ou antes um realizador que também produz?
Apesar de dedicar grande parte do meu tempo a produzir, sou um realizador que sentiu necessidade de produzir. Para viabilizar os meus próprios projetos e os de amigos, que é essencialmente o que produzo.
O que nos pode revelar sobre os seus trabalhos futuros, em concreto o filme que parte dos arquivos de William S. Burroughs e que será coproduzido por Jim Jarmusch?
O Jarmusch não é produtor, embora apareça várias vezes no filme. Ele era muito amigo do Howard Brookner, o realizador dos arquivos, que morreu de SIDA no início dos anos 1980. Eram da mesma turma na NYU, e o Jarmusch é o técnico de som de todo aquele arquivo. Esse projeto surge de um convite para eu fazer esse documentário pela produtora, a Paula Vaccaro da Pinball London, que foi quem coescreveu e coproduziu o Listen da Ana Rocha de Sousa. Aceitei o convite, mas disse que devia corealizar com o Aaron Brookner [sobrinho de Howard Brookner e marido de Paula Vaccaro], havendo assim um ponto de vista externo e um ponto de vista interno sobre o mesmo. Há um nova-iorquino dentro do processo e há um tipo de Guimarães fascinado com o processo. O filme chamar-se-á Cross Wounded Galaxies, que é uma expressão de Burroughs, como muitas que ele inventou.