Recordar ‘Casio Tone’ e a Sra. Domicília

A criação histórica de Sílvia Real e Sérgio Pelágio está de volta ao palco

Recordar ‘Casio Tone’ e a Sra. Domicília

A coreógrafa e bailarina Sílvia Real e o músico Sérgio Pelágio voltam a 1997, a Nova Iorque, e ao nascimento daquele que viria a ser um dos maiores sucessos da Real Pelágio, Casio Tone. No São Luiz Teatro Municipal, a heroína dessa criação histórica, a Senhora Domicília, renasce num espetáculo dedicado à memória de Marta Lapa. Casio Tone Reprise está em cena até 19 de maio.

Quando Sílvia Real recorda o processo de criação, junto com Sérgio Pelágio, de Casio Tone, as memórias atravessam um oceano. “Em 1997 as nossas referências eram os hotéis-cápsula do Japão, o espaço em que nós os dois vivemos em Nova Iorque, essa experiência de seis meses em que estivemos a conceber este espetáculo, e habitávamos um espaço minúsculo. Foi a experiência de como nos adaptar a esse espaço, como perceber o que é essencial, que deu origem ao cenário da peça.”

A dupla tinha partido para os Estados Unidos, já com a encomenda do festival Danças na Cidade, dirigido à época por Mónica Lapa e Mark Deputter, na bagagem. E foi também naquela cidade norte-americana que Sílvia veio a observar o modelo humano que inspirou um ser muito particular, a Senhora Domicília.

“A personagem foi construída na observação de uma colega que estudava comigo em Nova Iorque, no Lee Strasberg Institute. Ela não gostava dos sons, não gostava dos cheiros, fugia do toque das pessoas, juntava uma série de fobias numa cidade como Nova Iorque, e escrevi imenso sobre ela, sobre quem seria esta pessoa.”

A peça estreou em Frankfurt. Depois veio para o Danças na Cidade, dando lugar a mais de 200 apresentações. Em 2003 surgiu um segundo capítulo, Subtone, e uma década depois, a trilogia concluía-se com Tritone.

O cenário original fora guardado num armazém na província que, com o passar do tempo, urgia desimpedir do material mais antigo para arranjar espaço para o mais recente. “Há um conjunto enorme de trabalhos que fizemos após o Casio Tone e a trilogia de que faz parte, uns que resolvemos melhor, outros pior, que foram muito intensos para mim, e que são pouco reconhecidos. Aquilo correspondeu a um período, depois passámos a outra coisa. Evoluímos para outras coisas enquanto artistas.”

Mas, com a chegada da pandemia, Sílvia Real lembrou-se da insistência da então diretora artística do São Luiz, Aida Tavares, que sempre que recebia a proposta de um novo espetáculo, lhe perguntava pelo Casio Tone: “quando é que repões?”

“Na altura da pandemia, a questão da solidão que todos vivemos fez-nos pensar na Dona Domicilia, um bocado neurótica e muito só”. E acrescenta Sérgio Pelágio: “Desde 1997 que nos cruzamos com pessoas do público ou programadores, adultos que viram o Casio Tone em crianças e pediam para que fizéssemos o espetáculo outra vez. Essa ‘pressão’ sempre existiu.”

Faltava ainda uma coincidência, um sinal particular, para que Sílvia Real e Sérgio Pelágio partissem para a reposição de Casio Tone, quase três décadas decorridas da estreia, com a motivação certa. “Quando decidimos repor o Casio Tone, pensámos que, para pegar nisto tudo, era preciso qualquer outra coisa que nos animasse, que fosse um estímulo, e surgiu a ideia de fazer um livro em torno deste espetáculo e da trilogia. Algo que ficasse. Um objeto com uma relevância própria.”

Há cerca de ano e meio, Pedro Pinto, artista e investigador em Estudos Críticos sobre o Corpo e a Sexualidade, regressou a Portugal para estar presente na despedida a Gil Mendo [coreógrafo e professor,  falecido em 2022], e na homenagem organizada pela Real Pelágio com outras estruturas, que teve lugar na Culturgest. “Perguntámos se ele gostaria de escrever sobre o Casio Tone”, o que veio a dar origem a uma pesquisa profunda ao arquivo, sobre tudo o que diz respeito à trilogia. O resultado é um trabalho totalmente original que corresponde a uma motivação genuína para escrever um livro.

Casio Tone: Domicília dos dois lados do espelho, obra que será lançada na Sala Bernardo Sassetti do Teatro São Luiz, a 17 maio pelas 21h30 (logo depois do regresso de Casio Tone Reprise), dá o ponto de vista de Pedro Pinto sobre a personagem da Senhora Domicília, e é produto de um trabalho exaustivo, pormenorizado e rigoroso, “à la Domicília. Ele viu o espetáculo cinco ou seis vezes em vídeo antes de escrever.”

Ao tomarem contacto com o livro, tanto Sílvia Real como Sérgio Pelágio partiram para esta reposição com uma força muito diferente. Explica Sérgio Real que “o livro inclui uma parte que é arquivo, que também é forte porque reúne todo o trabalho que o Carlos Bártolo, enquanto gráfico, fez durante anos. E o resto é unicamente o texto de uma pessoa que esteve um ano focada a pesquisar as nossas coisas. Olhamos para a peça a partir de agora também com o olhar do Pedro Pinto.”

Com sessões para escolas a 15 e 16 de maio, e para o público em geral entre 17 e 19 deste mês, a Senhora Domicília pode ser vista no lugar que foi sempre o dela: um minúsculo apartamento onde original e réplica se confundem. Onde se mostra virtualmente capaz de reproduzir qualquer movimento, qualquer intenção, sem nunca nos dizer quem realmente é. “Reflexos da vida moderna”, remata-se na sinopse desta reprise.