reportagem
Marchantes do Século XXI
Uma homenagem às marchas de Lisboa
As marchas populares continuam a ser o ponto alto das Festas de Lisboa graças a um incontável número de "lisboetas" que procuram manter viva a tradição. Numa homenagem a todos eles, desafiámos seis marchantes da Marcha da Bica, a grande vencedora do concurso em 2023, a contarem o que é ser protagonista numa marcha popular de Lisboa no século XXI.
Nos bairros da cidade, os arcos alegóricos e as danças por alturas do Santo António eram costume intemporal quando, em 1932, o periódico Notícias Ilustrado, por iniciativa do seu diretor José Leitão de Barros, decidiu organizar no Parque Mayer o primeiro desfile das coletividades, evento na génese do atual concurso das marchas populares de Lisboa. Se, no início, é o folclore e as raízes rurais de parte da população lisboeta a marcar o tom da iniciativa, com o passar dos anos, pelo forte envolvimento das autoridades administrativas, sobretudo a autárquica, as marchas afirmaram-se no imaginário popular urbano, promovendo entre os bairros uma competição criativa, artística e, quase sempre, bastante salutar.
Depois de um período em que a “tradição” foi associada a um certo passadismo característico de tempos idos, as marchas populares ganharam novo fulgor e motivos de interesse nos anos 90 do século passado, independentemente de os bairros históricos da cidade estarem já a passar pelo processo de gentrificação, que haveria de agudizar-se com maior intensidade na última década.
Já não sendo esta a “Lisboa d’outras eras” como cantava Amália, nem estes “lisboetas” como aqueles que nos idos de 50 do século passado iniciaram o ritual de descer a Avenida da Liberdade em noite de Santo António, as marchas populares continuam a ser o ponto alto das Festas de Lisboa graças aos que procuram manter viva a tradição. Numa homenagem a todos eles, e às 20 marchas concorrentes este ano, desafiámos seis marchantes da Marcha da Bica, a grande vencedora do concurso em 2023, a contarem o que é ser protagonista numa marcha popular de Lisboa no século XXI.
Virgílio Barata
39 anos
Auxiliar administrativo
Terá sido pelos seus 20 anos, quando convidado por uma grande amiga a vir assistir a um ensaio da Marcha da Bica, que nasceu o contagiante amor de Virgílio “pelas festas da cidade e pelas marchas populares”. Fotógrafo amador, foi nessa condição que começou por se ligar ao mais pequeno dos bairros históricos de Lisboa, e acompanhar a marcha.
Em 2008, “o antigo presidente do Marítimo Lisboa Clube [coletividade organizadora da marcha e arraial popular], Fernando Duarte, vira-se para mim e diz: tens jeito, bates o pé, decoras as músicas rápido, portanto, apronta-te e vem ensaiar”. Assim foi. Desde então, “isto entrou no sangue e nunca mais parei.”
Tânia Fernandes
43 anos
Escriturária
Depois de conversarmos com Tânia, estamos certos de que no bilhete de identidade deveria estar inscrito: “nascida e criada na Bica”. Manifestação natural de todo o seu bairrismo são as quase três décadas de marchante. “Fiz apenas um pequeno interregno a dada altura por circunstâncias da vida”, explicita.
“Tudo isto começou com a minha mãe, marchante nos tempos áureos do Fernando Farinha [o fadista de O miúdo da Bica]. E o meu avô e o meu pai foram dirigentes do Marítimo”. Embora viva desde os 18 anos na margem sul do Tejo, Tânia nunca deixou de ter coração bicaense. Nem o corpo e a alma na marcha do bairro, onde a sua pequena filha é já “mascote”.
Tiago Correia
28 anos
Lojista
“Tudo se faz por amor”, declara Tiago, natural de uma família de marchantes do Monte da Caparica. “Somos sete irmãos e todos marchamos”, conta, lembrando que “isto é coisa que corre no sangue.”
O gosto pelas marchas populares é tal que Tiago ensaia simultaneamente em duas: na do seu bairro, no concelho de Almada, e na da Bica. “Isto é compatível porque em Lisboa celebra-se o Santo António, e, na margem sul, o São João”. A ligação ao bairro da Bica começou em 2016, quando amigos da outra marcha o desafiaram a vir para Lisboa. “Eles tinham contactos aqui e liguei-me à Bica. Sinto mesmo que encontrei uma família pela qual valem todos os sacrifícios.”
Rita Santos
36 anos
Gerente
2024 ficará para sempre na sua memória como o ano de estreia absoluta em marchas populares. Mas, atenção, apenas enquanto marchante! Desde pequena, acompanhada pela família, Rita habituou-se a assistir ao desfile na Avenida em véspera de Santo António, e pensar: “um dia, hei-de estar ali a marchar”. “A dada altura, o meu pai foi viver para a Bica e abriu um estabelecimento de restauração no bairro. Vinha muitas vezes ajudá-lo e isso levou-me a criar o gosto pelo bairro e pelas pessoas.”
Embora resida atualmente fora de Lisboa, em Santa Iria de Azóia, Loures, este ano tomou a decisão de se juntar a todos aqueles que sempre admirou “pela garra com que marcham”, e vestir as cores do bairro.
Jéssica Barradas
31 anos
Auxiliar
“Marchava desde miúda na marcha da Costa da Caparica até que, a dada altura, decidi que tinha de vir para Lisboa”, lembra Jéssica. Amigos deste lado do rio trouxeram-na à Bica e, em 2013, deu-se a primeira tentativa de ingresso na marcha do bairro típico lisboeta. “Acabei por não ser escolhida naquele ano, mas no seguinte voltei e, desde aí, aqui estou.”
Mas, o que é isto de ser marchante num bairro distante? “A maneira como nos acolhem faz-nos sentir em casa. Foi isso que sucedeu aqui, mesmo que este não seja o nosso bairro”. Até porque, acrescenta, “marchar é união, força e amor, ou seja, tudo aquilo que devemos encontrar numa família!”
Ismael Pereira
35 anos
Técnico de redes
“Há quem diga que os bebés começam por aprender a andar. No meu caso, comecei logo a marchar”. Ismael é já da terceira geração de marchantes de uma família da Bica, cujo avô chegou a ser o mais antigo participante em marchas populares de Lisboa. Campeão pela Bica em 1992, enquanto “mascote”, Ismael estreia-se apenas este ano na marcha.
“Durante 13 anos fui pela marcha adversária [a do Bairro Alto]”, confessa. Ainda para usar a gíria do futebol, esta transferência é “uma homenagem ao avô e será aqui, na Bica, que pretendo acabar a carreira.”
A viver em Quinta do Conde, Sesimbra, todos os dias vence mais de 50 quilómetros, ida e volta, porque se hoje os bairros típicos de Lisboa já não são o que eram, “restam as marchas para mantermos como nosso o bairro onde nascemos e fomos criados.”