Quero ser uma espécie-de-artista-popular

'Popular' é "uma autoficção" de Sara Inês Gigante

Quero ser uma espécie-de-artista-popular

Vencedora da Bolsa Amélia Rey Colaço, atribuída pelo Teatro Nacional D. Maria II, Popular é a terceira criação de Sara Inês Gigante. Com humor, sarcasmo e muita argúcia, a jovem atriz parte à procura do que é isto de se ser uma artista popular, sem perder de vista aquela entidade múltipla a quem os espetáculos se destinam: o público. Depois da estreia em Guimarães, Popular chega a Lisboa a 20 de junho.

Embora já tenha trabalhado com nomes tão distintos do teatro português como Tiago Rodrigues, Pedro Gil, Bruno Bravo ou o malogrado Jorge Silva Melo, ou ter assinado duas criações em nome próprio (Yolo, em 2022, e Massa Mãe, no ano seguinte), Sara Inês está longe de se sentir “popular”. Talvez por isso, desta vez, a atriz decidiu distribuir pipocas e entrar em palco com muito espalhafato, decibéis ao alto e um jogo de luzes a clamar pelas emoções mais epidérmicas da plateia. Nem sequer um (“pequeno”) camião TIR falta à chamada, nem a voz épica de “um anúncio semelhante a um trailer de um filme de Hollywood” deixará passar em claro a chegada de Sara Inês ao palco do Coliseu. Ou, em bom rigor neste caso concreto, ao do Teatro Meridional, que isto da popularidade tem muito que se lhe diga.

Nesta nova criação, Sara Inês tem alguns minutos para experimentar a sensação de ser “uma espécie-de-artista-popular”, antes de começar por desafiar as convenções e os estereótipos em que se enredam os artistas e o público, essa entidade tão abstrata que tanto pode ficar “ao rubro a ver o César Mourão”, como dar “o dedo mindinho para estar agora num espetáculo da Angélica Liddell.”

Porque as vontades e as ansiedade do público podem ir do mais “acessível” ao mais erudito, Popular é um exercício de reflexão sobre qual é “o lugar do artista e o lugar do público” nesta coisa tão intrincada do duelo entre alta cultura e baixa cultura. Dito de outro modo, Popular é um espetáculo onde uma atriz trajada de cor-de-rosa aponta ao cânone do mundo da cultura, promovendo paralelamente a auto-reflexão e a análise sobre o que é ser espectador de um objeto artístico, ou como se diz no léxico do capitalismo, de um “produto” cultural.

Por um lado, a atriz Sara Inês procura perceber como é que, enquanto artista, se pode “ser popular e agradar ao grande público” e, ao mesmo tempo, não prescindir da “verdade artística”, restando a dúvida sobre como catalogar o ator ou o músico em questão. A dado momento do espetáculo, ouve-se constatar que “a Cláudia Pascoal [que aqui assina os momentos musicais do espetáculo] dá concertos nas Festas de Chaves e também vai ao MEO Kalorama. O Bruno Nogueira apresenta o seu stand up no Altice Arena, mas também o apresenta no Dona Maria. O Marante dá concertos em camiões nas aldeias mas também toca nos Maus Hábitos [sala de “vanguarda” na cidade do Porto]”. Terão estes artistas traído a sua “verdade artística”, pergunta-se.

Por outro lado, a mesma Sara Inês, que também é espectadora, enceta um olhar sobre si mesma e sobre a plateia que tem à frente. Entre conjeturas sobre “o espectador que habita em nós”, desfilam perguntas como que tipo de espectadora é, afinal, a artista que tanto gosta de um passinho de dança num arraial popular como se comove numa ida à ópera? Ou, virando-se para o público, a que “grupo ou grupinho das artes” pertencerá o lado direito da plateia? Será que a maioria dos espectadores deste Popular se inscreve no “público especializado” segundo os critérios da Direção-Geral das Artes?

Talvez Sara Inês não consiga ter respostas concretas sobre tudo isto, nem sequer importa dá-las ao público. O que interessa verdadeiramente, em Popular, é a atriz e o público serem convidados a enfrentar e debaterem em conjunto os seus papéis perante os objetos artísticos ou os locais onde estes ocorrem, como se isso definisse cada um de nós, sejamos artistas ou apenas espectadores. Objetivamente, a atriz está em palco para nos confrontar com os dilemas da “validação” do gosto ou com “a síndrome de impostor” que, num número de ventriloquismo com um alter-ego chamado Gigantona, a atriz expõe sem deixar pedra sobre pedra.

Construído de um modo divertido e arguto, Popular dialoga diretamente com cada um de nós, sejamos frequentadores habituais de teatros ou museus, ou meros espectadores acidentais de um espetáculo. No fundo, lembra Sara Inês Gigante, “o público é uma metáfora de todos nós em sociedade” e o artista, mesmo desejando granjear popularidade, talvez só procure mesmo “o amor do público.”

Estreado nos Festivais Gil Vicente, em Guimarães, no início do mês, Popular chega ao Teatro Meridional a 20 de junho, permanecendo em cena, de quarta a domingo, até dia 30. O espetáculo tem cenário de Fernando Ribeiro, desenho de luz de Manuel Abrantes, apoio à criação e dramaturgia de Malu Vilas Boas, sonoplastia de FOQUE e colaboração musical de Cláudia Pascoal.

[as fotografias de ensaio são de Filipe Ferreira]