Os livros do verão

Leituras para dias quentes

Os livros do verão

Para a leitura nos dois principais meses de verão selecionámos dez livros de diferentes géneros literários. A grande maioria dos autores escolhidos, com uma vasta representação feminina, partilha, além da consagração literária, o facto terem abraçado algumas das causas cívicas e políticas mais relevantes dos últimos 100 anos: a luta pela emancipação das mulheres, pelo fim do fascismo e da censura, pela liberdade sexual e religiosa, pelo termo da discriminação racial, pela integração solidária dos emigrantes e refugiados ou pela abolição do colonialismo e da mentalidade colonial. Arte e cidadania de mãos dadas, com boas leituras de férias.

Lawrence Ferlinghetti

Uma Coney Island da Mente

“Continuamos as mesmas pessoas / só que mais longe de casa / em auto-estradas de cinquenta faixas / num continente cimentado / aspergido de letreiros mansos /a ilustrar ilusões imbecis de felicidade”. O volume de poesia Uma Coney Island da Mente é uma obra fundamental da Geração Beat, a mais célebre de Lawrence Ferlinghetti, e constitui uma espantosa manifestação de vitalidade criativa. Patrono anarquista dos poetas norte-americanos, fundou em 1953 a Livraria City Lights, em São Francisco, palco da contracultura beat e de leituras acompanhadas de jazz e álcool noite dentro, onde Kerouac e Burroughs marcaram presença. Ferlinghetti esclarece que o título do livro, retirado de um conto de Henry Miller, expressa o modo como se sentia em relação a estes poemas quando os escreveu, “como se em conjunto formassem uma espécie de Coney Island da mente, uma espécie de circo da alma”. O poeta cria uma obra torrencial, estimulante, libertária e irreverente que integra, simultaneamente, fragmentos de memória, crítica a uma América transformada em grotesco parque de diversões, reflexão sobre o sentido da existência, sonho, profecia… Um testemunho notável de um autor para quem a escrita consistia na “hesitante construção das palavras entre o sono e a vigília”. Antígona

Alba de Céspedes

O Caderno Proibido

“A minha vida sempre me pareceu insignificante, sem acontecimentos notáveis, fora o meu casamento e o nascimento dos meus filhos. Pelo contrário, desde que comecei por acaso a ter um diário, parece-me descobrir que uma palavra, uma entoação, podem ser tão importantes como os factos que estamos habituados a considerar importantes, ou até mais”. Alba de Céspedes (1911-1997), escritora italiana presa e censurada pelas suas atividades antifascistas, dedica este romance notável à vida doméstica de uma mulher comum que um dia, ao comprar cigarros para o marido, sai da tabacaria com um caderno que passará a usar como diário secreto. Numa sociedade em que, “para uma mulher, ter alguma satisfação pessoal além das da casa e da cozinha é uma culpa”, e numa casa “sem um recanto que seja seu”, a escrita adquire um profundo efeito transformador e subversivo (“Queria estar sozinha para escrever; e quem quer fechar-se na própria solidão, numa família, leva sempre consigo o gérmen do pecado”.) No diário questiona os limites da moral e das convenções estabelecidas, dos deveres conjugais e familiares, dos seus valores de pequeno-burguesa “mais familiarizada com o pecado do que com a coragem e a liberdade.” Alfaguara

António Borges Coelho

Crónicas e Discursos

Por ocasião dos 90 anos de António Borges Coelho, a Biblioteca Nacional de Portugal organizou uma mostra de homenagem intitulada Dar voz aos que em baixo fazem andar a História. Efetivamente, um traço unificador do conjunto da obra do ilustre historiador é o de transformar os estratos médios, os trabalhadores rurais ou os escravos, em atores sociais e coletivos. O autor, pioneiro no estudo dos vestígios da cultura árabe, dos processos da Inquisição ou das raízes da expansão portuguesa, entre nós, reúne em livro crónicas originalmente publicadas em diferentes órgãos de comunicação e discursos proferidos e, locais como a Assembleia da República, o Museu do Aljube ou o Tribunal da Boa Hora. Nestes belíssimos textos, ora expressa o seu pensamento sobre a atualidade política (magnifica série sobre a Invasão do Iraque), ora evoca lugares (Trás-os-Montes, o Alentejo, a Foz do Arade) ou figuras (Fernando Lopes Graça, Aquilino Ribeiro, Álvaro Cunhal, José Saramago, Cláudio Torres), ora exerce uma reflexão histórica e crítica sobre Portugal e o mundo. Borges Coelho, que alia sabedoria, cultura e uma profunda humanidade, está consciente, aos 95 anos, de que “as segregações explodem”, mas conserva a esperança “porque somos cada vez mais mestiços, mais humanos.” Caminho

Salman Rushdie

Faca

A 12 de agosto de 2022, Salman Rushdie dirigiu-se à Instituição de Chautauqua, no norte de Nova Iorque, para falar sobre a criação na América de espaços seguros para escritores de outros lugares e do seu envolvimento no projeto. Mal subiu ao palco do anfiteatro foi atacado por um jovem que desferiu 15 golpes com uma faca. Decididamente, nesse dia, o anfiteatro de Chautauqua não foi um lugar seguro para Rushdie. O assaltante reconheceu, posteriormente, ter “escassamente lido duas páginas do escritor” e visto apenas “um par de vídeos” seus no YouTube. Deduzindo destas declarações que Os Versículos Satânicos não estiveram na origem do ataque, Rushdie procura neste livro descobrir a que razão se deveu o ato de violência. Faca é uma obra catártica que aborda em pormenor os traumáticos acontecimentos desse dia e o lento e doloroso processo de recuperação a foi sujeito. Uma narrativa em que “o ódio – a faca como metáfora do ódio – é respondido, e finalmente derrotado, pelo amor” e que “responde à violência com a arte” (“A arte não é um luxo. Está na essência da nossa humanidade (…) Aceita a discussão a critica e até a rejeição. Não aceita a violência.”). Uma celebração da vitoria do “Anjo da Vida” sobre o “Anjo da Morte”. Dom Quixote

Willa Cather

Um dos Nossos

“Quando fico na cama a pensar, pergunto-me se a minha vida está a acontecer-me a mim ou a outra pessoa. É que não me parece que a minha vida tenha uma grande relação comigo”. Claude Wheeler, jovem criado numa grande propriedade agrícola do Nebraska, anseia completar o curso de História e conhecer o mundo, mas é contrariado pela vontade paterna. Procura então a felicidade no casamento, mas a desilusão amorosa leva-o a alistar-se como combatente na Primeira Guerra Mundial. O romance Um dos Nossos, distinguido com o Prémio Pulitzer em 1923, desenvolve os temas do idealismo da juventude e o forte contraste cultural entre a América e a Velha Europa, num mundo assolado pela epidemia da gripe e pela guerra. Alex Ross descreve-o como “uma exploração cética e perspicaz sobre a masculinidade americana”, ideia reforçada por Inês Pedrosa, sua tradutora para português, ao considerar que o livro “faz da guerra a grande metáfora da impotência do mundo da masculinidade”. A obra Willa Cather (1873-1947) revela, de forma elegíaca, a vida dos pioneiros e emigrantes no estado do Nebraska, um mundo onde as esperanças se limitam à sobrevivência e as emoções à nostalgia de fragmentos do passado ou a pressentimentos de vidas não vividas. Sibila

Margarita Cardoso de Meneses

Canábis – Maldita e Maravilhosa

As chamadas questões fraturantes são-no, justamente, porque o debate e os processos de decisão que lhes estão associados são frequentemente inquinados por desinformação, crendice e mesmo interesses económicos, sociais ou religiosos. O debate sobre o estatuto legal da canábis é um destes casos e um número crescente de setores da sociedade têm vindo a apelar à urgência da revisão do atual contexto jurídico e penal. Neste contexto, a leitura do livro de Margarita Cardoso de Menezes Canábis, Maldita e Maravilhosa, é francamente aconselhável, já que apresenta praticamente tudo o que se deve saber sobre esta surpreendente planta e a sua relação de milénios com a humanidade. Todas as facetas são apresentadas pela autora de maneira factual e informada, desde as estirpes psicotrópicas e os seus efeitos, às utilizações medicinais da planta e à miríade de usos que lhe são dados, como a produção de vestuário e a agricultura, entre outros. O mundo da Canábis tem vindo a sofrer uma grande evolução e é hoje uma indústria com um peso de milhares de milhões de euros, um facto que não deve ser alheio à crescente onda de descriminalização em todo o mundo. TCP Oficina do Livro

Toni Morrison

Love

Toni Morrison, nascida em 1931 no Estado do Ohio, foi a primeira escritora afro-americana e a oitava mulher a receber o Prémio Nobel de Literatura. A sua obra conjuga realismo, história, mito, narrativa de tradição popular e fantasia poética, e explora as relações entre negros e brancos, homens e mulheres, passado e presente. No seu livro de estreia, The Bluest Eyes (1970), sobre uma jovem negra que ambiciona ter olhos azuis, inicia uma meditação sobre os temas da raça, género e beleza, que desenvolve nos seus romances mais recentes. Love gira à volta de Bill Cosey, famoso milionário, dono do Cosey Hotel and Resort. Passados 25 anos sobre a sua morte, continua a ser uma presença real para as mulheres que partilharam a sua vida: Heed, a segunda mulher; Christine, a neta; May, a nora; Vida, a antiga empregada; Celestial, a sua amante; Júnior, a sua “secretária”; e L, a antiga cozinheira do hotel, figura insondável e misteriosa que abre e fecha a narrativa. Analisando em profundidade a emoção humana mais complicada – o amor -, Morrison reflete como o amor sexual e as outras formas de amor conduzem à traição e como aquele que ama acaba por destruir aquilo que mais quer proteger. Presença

Françoise Vérges

Decolonizar o Museu

Françoise Vergès, politóloga, historiadora, e especialista em estudos pós-coloniais, propõe nesta sua obra radical, mas profundamente interessante, uma leitura crítica do “museu universal” ocidental que “ecoa as desigualdades estruturais globais criadas pela escravatura, pela colonização, pelo capitalismo racial e pelo imperialismo”. A autora recorda a narrativa de uma história da arte centrada na Europa fundada na apropriação de riquezas, pilhagens e roubos sistemáticos (o saque do Palácio de Verão, em Pequim; os roubos dos frisos do Pártenon; e dos bronzes do reino do Benin, como exemplos mais famosos) que dotaram os museus de recursos e prestígio sem precedentes. De uma Europa guardiã do património da humanidade, acumuladora dos objetos e saberes dos povos dominados. Segundo Françoise Vergès, “nenhuma instituição pode ser decolonial enquanto a sociedade não for decolonizada” por isso defende “reanimar o legado de resistência aprendido nos processos históricos de descolonização (…) traçando um horizonte radical: decolonizar verdadeiramente o museu é pôr em prática um ‘programa de desordem absoluta’, é fazer um esforço de imaginação e criar outras formas de narrar e compreender o mundo, que nutram a criatividade coletiva e tragam justiça e dignidade às populações que delas foram desapossadas.” Orfeu Negro

Maria do Carmo Vieira

Memórias de um Felino

A presença do gato nas nossas vidas é fenómeno que em muito transcende o número de tutores no planeta e os felinos que têm em casa. A sua popularidade nas redes sociais – há quem defenda que estas foram criadas para a exibição destes seres aristocráticos e bigodudos – está diretamente ligada à atenção do mundo editorial, onde proliferam livros de todo os géneros sobre este animal. O gato vende, e quem gato compra não é lebre que procura. Memórias de um Felino é um livro singelo que surge discreto pelo meio de tudo o que se vem sendo publicando sobre gatos. Tem uma natureza de fábula, pois é pela voz de um gato que o livro de Maria do Carmo Vieira nos fala da coabitação entre sete felinos e seis humanos, com apontamentos de carácter e histórias das vidas de uns e de outros. Livro muito breve que pode facilmente ser lido do início ao fim, sugere também a possibilidade de ser lido para alguém. Um tutor sério e observador perceberá que a autora sabe do que fala, e que a vivência na companhia do animal gato fez parte do seu quotidiano. Como obra que se quer singela e feliz, é destituída de conflito, e o próprio desaparecimento de outros felinos que passaram pela mesma casa é interpretado como fazendo parte do ciclo da vida, que para uns é mais longo e para outros nem tanto. RG Minotauro

Francisca Gorjão Henriques

Mulheres Refugiadas em Portugal

A palavra “escolha” não combina com o estatuto de refugiado. Sandra do Zimbabué, Maryam do Afeganistão e Olena da Ucrânia não queriam deixar os seus países, mas não tiveram outra opção: acabaram em Portugal, por acaso. O processo de inclusão social é um desafio para todos, porém, para o grupo bastante heterogéneo das mulheres migrantes as barreiras são ainda mais difíceis de ultrapassar. A sua experiência insere-se necessariamente numa narrativa marcada por algum tipo de violência, da qual elas são muitas vezes as primeiras vítimas. Por mais de um ano, Sandra, Mayam e Olena abriram a porta de casa para este retrato. Apresentaram família e amigos, narraram circunstâncias e episódios, confessaram angústias e comemoraram sucessos pontuais. Muito do que viveram e relataram é comum não só entre si, como a esse grupo não homogéneo a que se convencionou chamar “mulheres refugiadas”. As múltiplas conversas que tiveram com a autora, ex-jornalista do Público e fundadora da Associação Pão a Pão, uma ONGD (Organizações Não-Governamentais para o Desenvolvimento) para a inclusão de pessoas refugiadas que tem desenvolvido projetos na área da empregabilidade de migrantes, ajudam-nos a perceber como se reconstrói tudo a partir de um novo lugar, que barreiras é preciso ultrapassar ou como se concilia a cultura de origem com a cultura do novo país. Fundação Francisco Manuel dos Santos