Marco Mendonça

"Acredito que o humor pode servir para combater lugares-comuns numa sociedade tendencialmente racista, conservadora e luso-tropicalista."

Marco Mendonça

Marco Mendonça regressa no início do mês ao espaço do Teatro do Bairro Alto para trazer consigo o mesmo espetáculo que apresentou o ano passado, Blackface. Recebido com grande entusiasmo quando da estreia, o criador descreve-o como sendo uma “conferência musical — entre o stand-up e a fantasia, entre a sátira e o teatro físico, entre o burlesco e o documental”.

A reposição de Blackface deve-se ao êxito das anteriores apresentações. Introduziu alterações ou respeitou a máxima de em espetáculo de sucesso não se mexe?

Fiquei surpreendido com o bom feedback que o espetáculo teve, o que me fez deixar de lado todas as possíveis inseguranças sobre se estaria ou não finalizado. As pequenas alterações que introduzo decorrem do sítio aonde eu estiver a fazer o espetáculo. Em Guimarães houve imagens que alterei para que se adequasse mais ao contexto da cidade (no caso, associado a uma claque de futebol).

Quem são os substitutos na atualidade da prática do “blackface” e do que esta representa?

Qualquer representação caricatural de uma cultura, ou de uma etnia, corre o risco de ser ofensiva. Às vezes não é por existir “blackface” (a pessoa pintar o rosto de preto) que passa a ser mais ofensivo. É ofensivo quando alguém veste uma roupa e faz um sotaque. Ou veste uma peruca e diz ser uma mãe africana que se dirige à escola para bater nos filhos. Estes estereótipos existem na cabeça de muitas pessoas. Mesmo que nessas representações não se note nada de muito grave, é possível perceber na intenção das pessoas que existe o gozo da caricatura.

As fotos de promoção, em que surge pintado de azul e coberto de purpurinas, que significado têm para si?

Se essas imagens podem lembrar a algumas pessoas os seres do filme Avatar (2009), de James Cameron, a mim remetem-me para o génio da lâmpada interpretado pelo Will Smith no Alladin, que tem quatro ou cinco anos. Mas sobretudo para aquela mítica frase que as pessoas usam para se defenderem no seu antirracismo, dizendo que têm amigos de várias cores: amigos brancos, negros, amarelos, azuis… Na mesma frase elencam tons de pele que existem e não existem. São amigas de pessoas reais e imaginárias. A ideia original era estar pintado de várias cores, mas optei somente pelo azul pelo poder de gerar curiosidade. Isto serve igualmente um momento de redenção no espetáculo, em que se assiste em vídeo a essa tinta ser removida da pele com água.

Existe um estereótipo promovido pelo cinema de Hollywood que é a figura do “negro mágico”, o coadjuvante que vem em auxílio do protagonista branco. Este tema interessa-o ao ponto de poder pegar nele numa futura criação?

Uma coisa em que reparo muito quando estou a ver filmes, não só americanos, mas também portugueses, é a forma como aparecem as pessoas negras. Tenho sempre esta espécie de radar ligado e embora atualmente seja maior a probabilidade de vermos atores negros em papéis de relevo ou mesmo papéis principais, isto acontece mais fora de Portugal do que cá. Nós nem tivemos sequer abertura para que surgisse a figura do “negro mágico” ou mesmo não mágico, não havendo espaço para a crítica, dado que personagens negras no audiovisual português são inexistentes. Existem atores cheios de talento e vontade de trabalhar, mas não os vemos surgir.

As ferramentas a usar no combate ao humor alarve podem ser igualmente eficazes contra os discursos de ódio?

Acho que é mais ou menos isso que tento fazer neste espetáculo, servindo-me da questão do humor étnico ou humor racial e do quão perigoso pode ser no perpetuar de estereótipos, de ideias únicas sobre uma determinada comunidade, cultura ou etnia. Tento inverter o objeto dessas piadas. Colocando as pessoas brancas nesse lugar. Tento brincar com isso e explorar os níveis de perigo que existem, o mais longe que posso ir, ao colocar pessoas brancas numa gaveta única. Como se todas elas fossem iguais, algo que é bastante comum no humor de pessoas brancas sobre pessoas negras, asiáticas, etc. Acredito que o humor pode servir para combater os lugares-comuns que se formam numa sociedade tendencialmente racista, conservadora e luso-tropicalista. Mas o humor não resolve. Os problemas estruturais continuam.

A questão da discriminação positiva também está presente neste espetáculo? Nomeadamente a hipocrisia de quem se cola à representação de causas e minorias com o intuito de obter subsídios ou outros apoios?

Essa nova alínea nos concursos da DGArtes, um convite a que as pessoas contemplassem ou considerassem ter afrodescendentes nas equipas, preocupou muitas pessoas. E não de uma forma preconceituosa. Era mais numa lógica de “espera aí, eu não conheço ninguém”, e o meu pensamento nessa altura foi que a iniciativa da DGArtes funcionava para que se procurassem estas pessoas que estão dispostas e prontas a trabalhar. Muitas pessoas não conhecendo profissionais negros da área, procuraram obter referências ou recomendações apenas e só para o efeito da candidatura; não para que estas pessoas entrassem nos projetos ou que estes fossem sobre questões raciais ou de discriminação. Isto levanta algumas questões.

Já teve espectadores a saírem a meio do espetáculo? Lida bem com a situação?

Este espetáculo teve cinco apresentações, contando com a antestreia. Não me lembro de que alguém tenha saído. Caso venha a acontecer lido bastante bem com isso porque não parto do princípio de que a pessoa possa sair por não estar a gostar. Os espectadores são livres de sair, sejam essas saídas mais discretas ou notórias. Respeito muito a liberdade dos espectadores. Tenho tido a oportunidade de fazer outros espetáculos fora de Portugal, em França, Bélgica, Itália, onde não existe qualquer pudor em sair da sala quando aquilo a que assistimos não nos enche as medidas.

É importante terminar cada atuação com uma nota mais positiva, ou prefere que o público saia a processar os estímulos a que esteve sujeito?

Interessa-me que as pessoas saiam estimuladas e com a sensação de que assistiram a um objeto que também pretende ser entretenimento. Acredito muito na qualidade do teatro enquanto puro entretenimento, embora as coisas que eu faço, que escrevo e penso para a cena nunca sirvam exclusivamente esse propósito. Não sou ninguém para ter a pretensão de que vou ensinar às pessoas o que é o “blackface”, onde começou e tudo mais, e a última coisa que quero é que elas saiam do espetáculo sentindo-se culpadas. Eu próprio aprendi muito no processo de pesquisa do espetáculo; sou de certa forma eu ali a rir-me da minha ignorância sobre o tema, enquanto estou a abrir espaço a que as pessoas se riam de uma falta de conhecimento que é coletiva.

Com que tipo de manifestações de racismo mais se confronta no quotidiano?

Pensa-se muitas vezes que os episódios de racismo que as pessoas sofrem passam por frases como “ó preto vai para a tua terra”. Nunca testemunhei esta frase a ser dita. Sei que existe e que aparece quando a discussão já escalou do sítio que conheço melhor que é o das micro-agressões. As que provêm de um sítio benevolente, até carinhoso, de uma ingenuidade que as pessoas manifestam quando falam, acerca do tom de pele ou do cabelo de alguém, ou do sotaque. Perguntam-me muitas vezes de onde sou, e respondo por que sentem necessidade de saber de onde sou. Ou de onde virá a necessidade de alguém de tocar no meu cabelo. É fácil sentir-me observado nessas situações. É este o racismo mais importante de desconstruir no nosso território, o racismo sem maldade.

No filme Não Dês Bronca (1989), de Spike Lee, durante uma discussão entre afro e italo-americanos, um dos irmãos brancos reconhece que entre os seus ídolos estão Prince e Michael Jordan. O Marco tem ídolos de raça branca?

Tenho muitos ídolos de raça branca. Uma das grandes referências para a criação deste espetáculo foi o Bo Burnham, um humorista de stand-up da minha idade que começou como youtuber aos 16 anos, que mostra um pensamento progressista e autocrítico relativamente às questões de estereotipar as pessoas de etnia diferente; e que a partir de um lugar de privilégio, assume e desconstrói essa condição com humor. Na música tenho o Eminem, um dos meus ídolos na adolescência. E atores, como o Daniel Day-Lewis e o Joaquin Phoenix.

Os seus primeiros trabalhos como profissional aconteceram ainda durante a licenciatura na Escola Superior de Teatro e Cinema ou depois? Que circunstâncias levaram a essa passagem?

Tive a sorte de conhecer pessoas na Escola com quem me dei muito bem; com quem criei antes de uma relação profissional uma relação de amizade, alunos que estavam mais avançados na licenciatura e que já trabalhavam. Casos do João Pedro Mamede e do Nuno Gonçalo Rodrigues, que na altura estavam a formar a companhia Os Possessos, e que me convidaram para o primeiro grande espetáculo deles, a Rapsódia Batman. O espetáculo fez-me pensar que era realmente aquilo o que queria fazer o resto da vida; e marcou também a minha entrada no meio profissional, tendo sido apresentado no Teatro da Politécnica, que neste momento passará a ser somente um teatro na memória das pessoas. Infelizmente.