Herman José

"Este espetáculo é mais um ato de amor do que propriamente um negócio"

Herman José

Herman José está de volta aos espetáculos ao vivo para celebrar 50 anos de carreira. O mestre do humor português sobe ao palco do Campo Pequeno, a 4 e 5 de outubro, para reviver as suas personagens mais marcantes e recordar os êxitos musicais que percorreram gerações. Para o efeito, conta com uma big band dirigida pelo maestro Pedro Duarte, seu parceiro musical há mais de 30 anos.

50 anos de carreira é um número imponente…

É um número muito imponente e é interessantíssimo porque, quando era mais novo e via alguém comemorar 50 anos de qualquer coisa, achava completamente patético. Pensava sempre “coitado, estás com os pés para a cova, nem sei porque é que estás a comemorar. Vai lá dar uma voltinha ao jardim, jogar damas com os outros velhotes”. Foi sempre essa perceção que tive dos 50 anos de carreira e das pessoas de 70. Fui jovem numa altura em que 70 anos era geralmente o final de vida da maior parte das pessoas. O que nunca imaginei foi que, quando chegasse a esta realidade, ela fosse tão fresca e tão útil, como se de repente vivêssemos 200 anos e isto fosse só um primeiro ato de qualquer coisa que ainda se está a desenvolver.

Celebra a data com dois espetáculos no Campo Pequeno. Em que consistem?

A estrutura é muito simples, até porque não vou fazer nada de experimentalismo. Vou fazer o repertório que tenho feito ao longo destes anos todos e que foi evoluindo. O que faço é pegar nessas coisas, às quais junto as músicas habituais que me acompanharam pela carreira fora. O que vamos ter fora do comum é uma orquestra alargada, uma big band de 20 elementos, que é uma coisa imponente, e um layout audiovisual. É também muito ambicioso no sentido em que é diferente. Vai ser uma espécie de comício político, e não é por acaso que resolvemos investir tanto no espetáculo, que é tecnologicamente muito caro e a orquestra muito grande. É mais um ato de amor do que propriamente um negócio.

Os seus 50 anos de carreira cruzam-se também com os 50 anos do 25 de Abril. É uma feliz coincidência…

Eu nasci por causa do 25 de Abril, porque eu era para ter de sair do país. Na altura, havia a hipótese de optar pela nacionalidade alemã, e eu fi-lo porque o meu pai era alemão. A PIDE, como represália, retirava-nos a autorização de residência, por isso tinha de sair do país. Já estava inscrito numa escola de imagem e cinema de Munique, onde iria entrar precisamente nos finais de 1974. A minha primeira grande preocupação a seguir ao 25 de Abril foi cancelar a inscrição e o apartamento que ia alugar. Sou verdadeiramente um produto daquele momento.

A sua vida teria sido com certeza muito diferente se tivesse ido para Munique…

Muito diferente. Dava um belo exercício imaginar o que seria a minha vida. Ia ser boa, com certeza, porque eu adoro televisão e cinema e aquela é das melhores escolas, de onde saíram realizadores como Paul Verhoeven. Não tenho nenhuma dúvida que ia sair de lá um grande profissional da área, não como artista, mas como técnico.

Há algum momento da sua carreira de que se orgulhe mais?

Os momentos que me ficam são os da adrenalina completamente orgástica, aqueles em que a gente percebe que tem um sucesso na mão. Lembro-me que o primeiro orgasmo desse género que senti foi no Porto (onde vou atuar também com este espetáculo). Tinha começado a fazer o Sr. Feliz e Sr. Contente, com o Nicolau Breyner, em 1975. Percebíamos que estava a correr muito bem, que era um êxito, mas a nossa vida era, sobretudo, teatro e televisão, portanto, não tínhamos ainda tido um julgamento popular do acontecimento. Nesse ano, fomos contratados para uma apresentação no Palácio de Cristal. A concentração de pessoas e o histerismo foi de tal maneira, que tiveram de chamar a polícia de choque para nos tirar lá de dentro. O que senti não tem explicação, porque eu punha-me muito em causa. Sentia que tinha jeito, sabia o que queria fazer, mas não me sentia um grande talento. Quando, de repente, percebi que o sonho era possível, foi inacreditável. Depois voltei a sentir isso em 1977, com o êxito do Saca-Rolhas, que esteve no top nacional uma quantidade de semanas, lutando com monstros da altura, como o Marco Paulo ou o José Cid. Depois tive outro momento, absolutamente glorioso, quase indescritível, que foi o impacto avassalador tido pelo Tal Canal, em 1983. Uma coisa completamente unânime que me deixou de boca aberta. Sucederam-se outras alegrias, mas aí já sabia como era tê-las, portanto, já não foi tão espantoso.

Há alguma coisa de que se arrependa ou que teria feito de outra forma?

Para lhe explicar os arrependimentos, teria de juntar a esta entrevista uma adenda comprada à parte, do tamanho de uma lista telefónica [risos]. Todos os dias fazemos coisas de que nos arrependemos. Umas completamente insignificantes, outras que são completamente decisivas e que trouxeram dificuldades e chatices gigantescas e que podiam perfeitamente ser evitadas. A mesma coisa com as pessoas. Há pessoas que entram na nossa vida para complicar, inquinar, destruir. E o contrário também, só que as boas pessoas ficavam todas, não é? Limitava-me só a centrifugar as más pessoas [mais risos].

“Vou até onde acho que devo e quero, e, portanto, sou um privilegiado nesse aspeto”

Das personagens todas que criou, houve alguma que tenha pensado que não ia funcionar e que, depois, tivesse sido um êxito estrondoso?

Houve uma que achei que ia ser uma coisa muito localizada, até porque tratava só de um único assunto, que era o José Esteves. Comecei a fazer na rádio, a pedido de um jornalista do Porto chamado António Tavares Teles. Isto começou talvez em 1980 ou 81, e eu tinha o sotaque do Porto muito presente porque o meu agente artístico era de lá e eu passava tanto tempo naquela cidade que ganhei o sotaque. Portanto, o boneco era muito verdadeiro, mas estava longe de imaginar que fosse um sucesso que se manteve até hoje, sobretudo através daquela cantiga Vamos lá Cambada. Depois houve outras coisas que tive a certeza que seriam êxitos totais e que desapareceram nos primeiros tempos. Mas, dessas já nem me lembro.

Há muitas personagens suas que ficaram para a história e cujas expressões as pessoas ainda hoje utilizam. Isso surpreende-o?

É verdade, é muito raro acontecer. Há mundialmente alguns casos, como os Monty Python ou o Benny Hill, mas contam-se pelos dedos… Não é nada comum. Isso é verdadeiramente um fenómeno. E isso é uma das coisas que me espantam mais do que me orgulham, devo dizer. Acho verdadeiramente notável quando oiço um miúdo de seis anos a dizer “eu é mais bolos”. Recentemente fiz um repost com 34 anos, do Felisberto Lalande, que não diz os ‘l’s’, e tenho milhões de putos a dizer que faziam aquilo já na escola. Isso é verdadeiramente notável!

Há ou não há limites para o humor?

Há. Não são é universais pois cada situação tem o seu limite. Para fazer um espetáculo ao lado do Santuário de Fátima no dia 15 de agosto (Dia da Nossa Senhora da Assunção), talvez seja interessante burilar as coisas muito agressivas que às duas da manhã numa Queima das Fitas são essenciais. Portanto, com certeza que há limites para o humor. E se formos jantar a casa de alguém e a decoração tiver elementos ridículos, não é a altura própria para fazer humor.

A destruição do cenário do concurso Roda da Sorte (1994) seria impensável nos dias de hoje. Tem saudades dessa liberdade?

Era impensável, mas há uma coisa de que nunca se fala, mas que é importante frisar. As peças que destruí eram de armazéns de velharias, ou seja, não destruí nada novo. Não quis ofender as pessoas destruindo coisas que elas gostariam de ter em casa e não podiam. Foi também uma aprendizagem, porque um dia, no [concurso] 1, 2, 3, resolvi fazer uma guerra de ovos com o público. O grande choque das pessoas foi ser numa altura onde parte das famílias não tinha dinheiro para comprar ovos. Portanto, não é obrigatório ter essas sensibilidades, mas pode perfeitamente meter-se essa equação no meio e não faz mal a ninguém…

Mas tem saudades de poder fazer essas loucuras sem se preocupar com o que as pessoas vão pensar?

Sinto-me tão livre hoje também, sabe? Uma pessoa quando tem 30 anos tem um tipo de energia e de convicção que depois não tem aos 40, e depois não tem aos 50. E, neste momento, este artista de 70 anos sente-se tão confortável e ao mesmo tempo tão livre. Estou há sete anos a fazer um programa na RTP que não tem qualquer interferência. Faço que quero, não preciso de mandar os textos para apreciação… Há maior privilégio que este? Vou até onde acho que devo e quero, portanto, sou um privilegiado nesse aspeto.

Em janeiro deste ano, recebeu a Medalha de Honra da Câmara Municipal de Lisboa. Que importância atribui a esse tipo de distinção?

Esta, por várias razões, é muito mais importante que os outros prémios todos. Há uns anos estava num conhecido restaurante de Lisboa e o Luís Campos Ferreira veio ter comigo e disse “está ali uma pessoa, o eurodeputado Carlos Moedas, que adorava conhecer-te”. Tinha ali um fã confesso do meu trabalho que se tornaria Presidente da Câmara de Lisboa. Quando esse fã me atribuiu a Medalha de Honra da cidade, foi muito mais do que um Presidente de Câmara a fazer um ato de justiça oficializado no momento. Era uma pessoa que estava a ter genuíno prazer em criar aquela situação e, portanto, ganhou tudo muito mais valor, até porque o voto tinha sido deliciosamente unânime. Mandei fazer uma caixinha muito bonita e lá está na parede, juntamente com a Grã Cruz da Ordem do Infante, a propósito dos 40 anos do Tal Canal, e outra maravilhosa que é a Medalha de Mérito do Governo, também espoletada por um fã que era ministro da Cultura, o Pedro Adão e Silva. São três momentos que culminaram com outra coisa extraordinária, que foi uma homenagem pela vida e carreira da Sociedade Portuguesa de Autores, o que também é muito interessante, porque uma das coisas de que me orgulho é de ser autor do meu material. Há uma parte que é escrita em colaboração com as Produções Fictícias – que nasceram por causa de mim – mas 80% do trabalho é meu.

É o maior humorista português. O que é que o faz rir a si?

Tenho sempre uma terrível dificuldade em responder a essa pergunta. Ainda voltando ao passado, há, dos grandes humoristas americanos e ingleses, dos anos 1950, 60, 70, 80, uma arte e uma riqueza que ainda hoje me espantam. Nomes como Lucille Ball, que fazia a Lucy Show, como o Benny Hill, ou os Monty Python, que para mim continuam a ser os maiores. Dos portugueses, não há uma única vez que eu não veja o António Silva e o Vasco Santana no seu auge, ou a deliciosa Maria Matos, que eu não fique babado e espantado. Com os contemporâneos não me rio por razões muito estranhas: estou muito mais preocupado em analisar o trabalho deles. Muitas vezes há piadas extraordinárias e coisas muito bem feitas e a minha reação é pensar, “olha que bem construído que isto foi”. Parece que não tenho capacidade para usufruir desse momento, estou sempre com o olhar técnico. Exceção feita a certos momentos do Ricardo Araújo Pereira a gozar com a atualidade, que me dão a mesma vontade de rir que ele me dava quando foi meu autor. Íamos juntos para a rádio, ele lia-me os textos e já na altura eu chorava a rir com ele. Ele é uma criatura especial.