O Alkantara não desiste da esperança

Festival de artes performativas decorre entre 15 de novembro e 1 de dezembro

O Alkantara não desiste da esperança

Em novembro, vários locais de Lisboa (e um em Almada) são palco para mais de uma dezena de espetáculos de excelência, dois programas com curadorias convidadas, conversas, filmes e “músicas de Gal Costa”. O Alkantara Festival inicia-se a 15 de novembro, na Culturgest, com o espetáculo-sensação da artista brasileira Carolina Bianchi, A Noiva e o Boa Noite Cinderela.

“Danças e histórias entre a vida e a morte, a morte e a vida”, anunciam os atuais diretores artísticos do Alkantara Festival, Carla Nobre Sousa e David Cabecinha, no texto de abertura do programa deste ano. O histórico festival de artes performativas de Lisboa, fundado há mais de 30 anos por Mónica Lapa enquanto Danças na Cidade, e desde 2005 com a atual denominação, percorre uma dezena de palcos, dos institucionais CCB, Culturgest, Gulbenkian e São Luiz aos alternativos Casa Independente e Espaço Alkantara, passando pela Biblioteca Palácio Galveias, Casa da América Latina, Teatro do Bairro Alto e um antigo escritório em Marvila, agora nomeado Winter Garden.

Chegam da América do Sul, da Europa, de África ou do Médio Oriente, e são mais de uma dezena de manifestações artísticas onde “as vidas carregam o peso da violência, do luto, da injustiça”, mas também “a possibilidade de versões mais otimistas do futuro”. Enquanto programadores, Carla e David acreditam que, “quando as propostas dialogam entre si no conjunto do festival, apesar de tantas histórias de cansaço e desilusão, há uma possibilidade para a esperança”.

Assinadas por artistas originários da Amazónia colombiana, como Waira Nina, do inóspito e maravilhoso noroeste argentino, como Tiziano Cruz, ou de África, como Mamela Nyamza e os seus 10 intérpretes de diferentes origens étnicas, o festival compreende mais de uma dezena de espetáculos de excelência, dois programas com curadorias convidadas, conversas, filmes e “outros encontros”, onde se destaca um concerto dedicado à música de Gal Costa por Àkila a.k.a Puta da Silva, a 30 de novembro, na Casa Independente, no Intendente.

Alguns destaques

O festival começa quinze dias antes, na Culturgest, com A Noiva e o Boa Noite Cinderela, da artista brasileira radicada em Amesterdão Carolina Bianchi. Quando, em 2023, o espetáculo estreou, no Festival de Avignon, enquanto “capítulo primeiro” da Trilogia Cadela Força (que terá sequência em 2025 e conclusão no ano seguinte), o debate sobre violência de género e abuso sexual de mulheres ganhou forte protagonismo em eventos paralelos ao certame. Em causa, um objeto artístico perturbador, desconcertante e inovador que, partindo da história de Pippa Bacca – violada e assassinada durante a Bride on Tour, uma performance em que a artista e feminista italiana viajava, vestida de noiva, entre Milão e Jerusalém – começa por percorrer a história da arte, no formato de uma palestra onde se abordam representações e histórias verídicas de mulheres brutalmente violadas e assassinadas.

Se, na primeira parte do espetáculo, se instala o desconforto pela crueza das narrativas, na segunda, Bianchi desafia diretamente o público a descer ao inferno da violência sexual e do feminicídio, tomando uma mistura de “boa noite Cinderela”, também conhecida como “droga da violação”, e deixando o seu corpo vulnerável à mercê de oito performers.

“A Noiva e o Boa Noite Cinderela”, de Carolina Bianchi e coletivo Cara de Cavalo ©Christophe Raynaud de Lage

 

Se Carolina Bianchi e a sua companhia Cara de Cavalo prometem marcar esta edição do Alkantara Festival, é com o martirizado Médio Oriente em pano de fundo que chegam dois pequenos tesouros a descobrir: O corpo está aqui, fora de campo, de Alia Hamdan (Espaço Alkantara, 19 e 20), e Querida Laila, de Basel Zaraa (Biblioteca Palácio Galveias, de 22 a 30).

À hora em que escrevemos estas linhas as bombas continuam a cair sobre o Líbano. Quando Alia Hamdan apresentar esta performance em Lisboa, não o sabemos, mas tememos que as bombas continuem a cair na sua cidade natal, Beirute, e noutras do seu país. O corpo está aqui, fora de campo não é sobre os ataques israelitas à capital libanesa, mas será impossível não pensar neles quando, à nossa frente, estiver uma mulher de pé, próxima do seu duplo, enquanto uma voz narra a estranha experiência de um tempo em coma. O estado profundo de inconsciência em que mergulhou começou a 4 de agosto de 2020, quando uma fortíssima explosão na zona portuária “afetou a cidade como um todo, num único instante”. Segundo a autora, “esta performance é uma tentativa de retratar uma temporalidade congelada, gerada por aquele acontecimento”, refletindo sobre a ausência de responsáveis e de consequências políticas decorrentes desse acontecimento que varreu largas zonas da cidade, matou mais de duas centenas de pessoas e feriu milhares.

Quanto a Basel Zaraa, nasceu e foi criado num campo de refugiados palestinianos na Síria. Os seus avós foram expulsos da Palestina em 1948 e, desde então, a família de Zaraa nunca recebeu cidadania de qualquer outro país. Em 2010, este músico e artista de rua conseguiu chegar ao Reino Unido onde se fixou e foi pai de uma menina, a Laila. Certo dia, a filha perguntou-lhe onde cresceu e porque é que não podiam ir lá. Basel decidiu então construir uma maqueta da sua casa de infância em Yarmouk, perto de Damasco, naquele que chegou a ser o maior campo de refugiados palestinianos, hoje praticamente destruído. Querida Laila desafia-nos a pensar como “a guerra e o exílio definem espaços públicos e domésticos”, colocando cada um de nós no lugar da filha de Basel, sentados em frente à maqueta da casa, com os auscultadores de um velho walkman, descobrindo “objetos, fotos, sons e cheiros da história” de resistência e migração forçada da família da pequena Laila.

“Hatched Ensemble”, de Mamela Nyamza ©Mark Wessels

 

Outro dos destaques desta edição é Nigamon/Tunai (dias 16 e 17, no Teatro do Bairro Alto), espetáculo nascido da colaboração artística entre comunidades indígenas do Canadá e da Colômbia. As palavras que dão título a este “manifesto poético” significam, ambas, “canção” em anishinaabemowin e inga, respetivamente. A primeira, uma língua indígena do Canadá, de onde é natural a encenadora, escritora e atriz Émilie Monnet. A segunda, a língua de um povo homónimo que habita a Amazónia colombiana, terra natal de Waira Ninga, artista interdisciplinar que coassina, com a amiga canadense uma “peça performativa” onde os territórios de ambas – o norte e o sul – se entrelaçam num “valioso intercâmbio alimentado pelos conhecimentos vivos, as cosmogonias e as lutas que as unem”. Entre essas lutas, o facto de, no território do povo Inga, as empresas petrolíferas e mineradoras estarem a destruir ecossistemas inteiros para saquear recursos. Nomeadamente, o cobre, minério fundamental para a cultura Anishinaabe no Canadá, onde essas mesmas empresas depredadoras prosperam.

Incontornável, mais a mais quando o tema da imigração continua a marcar a agenda mediática, a mais recente criação de Keli Freitas Volta para a tua terra (21 a 23, no São Luiz Teatro Municipal). Nesta peça biográfica, a artista brasileira partilha o processo de autodescoberta desencadeado quando partiu em busca do rasto da sua bisavó Virgínia, portuguesa, natural de Torres Vedras. Estando há sete anos em Portugal, Keli assume a sua condição de imigrante para questionar o que é isso de ser cidadã de um país, como se exercem direitos de cidadania, como se define se uma terra é deste ou daquele. Ladeada em palco por Ana Gigi, amiga que conheceu já em Portugal e que também tem na sua genealogia uma história de migração, o espetáculo oferece uma reflexão sobre essa condição, desafiando conceitos estabelecidos de pertença e de identidade.

Dois programas convidados

Cartas do Fogo, pela plataforma Terra Batida, e Transmissão, pela BRABA.plataforma, são duas curadorias convidadas pelo Alkantara Festival para esta edição de 2024.

Na Casa da América Latina, a 29 e 30 de novembro, a Terra Batida, dirigida por Ritó Natálio, propõe “um diálogo com o pensamento indígena contemporâneo”, através de uma sessão onde pontuam Cartas do Fogo, leitura-performance de Ellen Pirá Wassu, poeta indígena do povo Wassu Cocal, e Ritó Natálio, escritor e performer, e a performance da artista indígena travesti amazónica Uýra Sodoma, O interesse da Amazónia não é na porra da árvore.

“O interesse da Amazónia não é na porra da árvore”, de Uýra Sodoma

 

A BRABA.plataforma, dirigida por Gaya de Medeiros, apresenta a sua terceira mostra, intitulada Transmissão, com três criações que “olham para as memórias através de perspetivas bem distintas, mas [que] desenham no presente narrativas que deslocam a nossa perceção sobre a identidade e a história dessas pessoas que vemos em cena”: Breves Notas sobre a Digestão, de dai ida, Ovos Crus, de Artemis Chrysostomidou, e o já referido concerto de Àkila a.k.a Puta Da Silva, Da Maior Importância.

Até 1 de dezembro, há ainda para ver Wayqeycuna, de Tiziano Cruz, “um olhar cru sobre o mercado de arte e o privilégio de classe” (CCB, 16 e 17); Hatched Ensemble, de Mamela Nyamza, uma desconstrução da dança clássica, que conjuga o ballet, as danças africanas e a contemporânea (Teatro São Luiz, 16 e 17); o jantar-performance com utopias no menu de Sonya Lindfors e Maryan Abdulkarim, Deveríamos estar a sonhar (CAM Gulbenkian, 23 e 24); o aclamado A Vida Secreta dos Velhos, de Mohamed El Khatib, onde um elenco com mais de 80 anos assume como é viver o desejo sexual na velhice (Culturgest, 23 e 24); 52 Blue, performance de Francisco Thiago Cavalcanti inspirada no comportamento das baleias (TBA, 23 a 26); e Mike, uma performance duracional sobre um dia de trabalho num escritório pela consagrada performer Dana Michel (29, 30 de novembro e 1 de dezembro, em Marvila). Menção ainda para a exibição dos filmes Side Trip, do coletivo japonês Chim↑Pom from Smappa!Group, filmado em Marvila há um ano (CAM Gulbenkian, 27 e 30), e Blackface, o documentário, de Heverton Harieno sobre o espetáculo homónimo de Marco Mendonça (Espaço Alkantara, 1 de dezembro). Fora de portas, na Casa da Dança, em Almada, a bailarina e coreógrafa Vânia Doutel Vaz abre portas ao processo de criação de Violetas, espetáculo a ser apresentado na edição de 2025 do festival (30 de novembro).

Em suma, fazendo jus ao significado do seu nome, o Alkantara anda há mais de três décadas a “construir pontes entre artistas e públicos, entre geografias, culturas e expressões artísticas”, e este ano não será diferente. Sobretudo porque, olhando ao estado do mundo, elas nunca terão sido tão indispensáveis e urgentes.