entrevista
David Fonseca
“Tem sido incrível, o que me leva a achar que ainda quero fazer isto mais 25 anos”
A celebrar 25 anos de carreira, David Fonseca atua no Coliseu dos Recreios em dose dupla, a 16 e 17 de novembro. Still'25 é o nome da digressão que viaja pelos seus maiores sucessos, trazendo para cima do palco um conceito que junta música, performance e cinema. Pela primeira vez, o músico irá partilhar as ideias que deram origem às canções, levantando o véu sobre o seu processo criativo.
25 anos de carreira é um número bastante respeitável. Como é que isso te faz sentir?
É muito raro olhar para trás, acho que não faz parte da minha personalidade. Portanto, quando penso que faço isto há 25 anos, isso é uma coisa meio abstrata, não sei exatamente o que isso quer dizer. De facto, são muitos anos a fazer uma coisa específica, mas mesmo assim acho que o meu pai foi mais tempo bancário do que eu músico, o que eu acho muito mais difícil [risos]. Tem sido uma viagem incrível de conhecer muitas pessoas e de fazer muitas loucuras, o que me leva a achar que ainda quero fazer isto, pelo menos, mais 25 anos…
Portanto, não és uma pessoa nostálgica?
Não, muito pouco. A maioria das pessoas da minha idade, ou ainda mais novas, ainda ouvem a mesma música que ouviam quando tinham 20 e tal anos. É muito raro eu ouvir uma canção que tenha 20 e tal anos. Diria que 90% da música que ouço hoje foi feita na semana passada. Portanto, não tenho mesmo dentro de mim aquela ideia de relembrar uma coisa antiga. Interessa-me muito mais o que vai acontecer. E por isso é que eu tenho sempre dez planos, dos quais não cumpro nem oito porque não tenho tempo, mas gosto muito de olhar para a frente e perceber o que ainda posso fazer que seja interessante. Vivo muito no momento do presente.
Still ’25 é o nome da digressão atual. Se voltasses a ter 25 anos, farias tudo igual?
Faria melhor, espero eu, porque demorei muito tempo até entender o que é que efetivamente queria fazer no mundo da música. Nos primeiros dois anos de concertos dos Silence 4, lembro-me que subia ao palco, dizia boa noite, tocava, dizia obrigado no meio das canções e no final dizia “boa noite e até à próxima”. Não tinha mais nada para dizer, não fazia ideia do que era suposto fazer, o que é que as pessoas esperavam. Também acho que tem a ver com o facto de nunca ter sonhado ser músico, não era isso que queria fazer, foi um acidente na minha vida. Ao longo dos anos comecei a gostar mais de estar em palco, percebi que era uma oportunidade que tinha de extravasar o meu pensamento e começou a surgir a ideia de montar, não necessariamente um personagem, mas um espetáculo de duas horas e meia fabulosas, de sonhos, de loucuras. Isso atraiu-me, fez com que eu começasse a trabalhar cada vez mais na forma da apresentação, depois nos vídeos, e isso demorou uns bons sete, oito anos para arrancar, para chegar até aí. Por isso, se voltasse atrás, começava logo assim.
O que vai acontecer no palco do Coliseu nos dias 16 e 17 de novembro?
Vai ser uma espécie de súmula de uma coisa que andamos a fazer há algum tempo na estrada, uma abordagem mais multimédia de um espetáculo. Não é só uma pessoa a tocar canções ou a contar histórias. Engloba tudo isso e ainda algumas coisas inusitadas que já entram no campo da performance. Gosto muito da ideia de fazer um espetáculo que não pareça necessariamente um concerto de música pop. Quero fazer uma coisa que vai um bocadinho mais para um território das artes, que é, na realidade, o meu background. E isso foi uma das coisas com que lutei muito tempo. Porque é que eu queria fugir tanto do meu background, se era daí que vinha? Estive em Belas Artes e em Cinema, portanto é natural que, quando subo ao palco, queira trazer essas experiências também. Por isso é que o espetáculo acaba por ser uma surpresa para as pessoas, porque não é uma coisa muito normal. Às vezes não quer dizer que seja melhor, honestamente. Faço estas coisas porque estão mais próximas de quem sou, e acho que é isso que as pessoas querem ver: a personalidade de quem está em palco…
Até porque é tudo feito com muito rigor, desde as letras, à música, à parte visual, guarda-roupa, fotografia… controlar tudo isso deve ser muito cansativo…
É muito cansativo, concordo totalmente [risos]. Controlo tudo, mas não queria nada. É um traço da minha personalidade, há muito tempo que é assim; já tentei que não fosse, mas depois não corre tão bem. Se eu fizer o jantar em casa, é como se estivesse num restaurante. Cada coisa tem a sua tacinha, que tem uma cor… sujo muita louça, mas quando chegar à mesa quero que seja bonito, mesmo que me dê muito trabalho. Por exemplo, podia fazer um vídeo onde só apontasse a câmara e tocasse. Mas, não vejo interesse em fazê-lo. Para isso prefiro não fazer. Quando me lanço numa coisa, ela acaba sempre por ser um bocadinho mais difícil do que esperava. Posso pensar numa ideia relativamente fácil de concretizar, mas depois acabo por estar, às vezes, três semanas à volta de um pormenor que nem tem assim tanta importância. Penso que as pessoas entendem o que estou a fazer, mas depois esperam que faça sempre assim, o que não é bom [risos]. Às vezes, sinto que estou sempre a tentar tirar um coelho da cartola, o coelho está cada vez mais gordo, a minha cartola mais pequenina, e ele já não consegue sair tão facilmente. É o que sinto quando inicio tournées, ou tenho um disco novo. Mas isso é o que me faz ter ainda mais foco. Já fiz muitas coisas diferentes e tento sempre manter o nível de imaginação, de conceção. Não tem de ser necessariamente uma coisa muito complicada, mas tem de ser algo que eu acho que tenha a ver com esse projeto, com uma espécie de universo que criei e quero que continue assim.
Sendo um perfecionista, é-te difícil lidar com a falha?
Não, muito pelo contrário. Diria que em cada dez coisas, falho nove, mas acho que a grande vantagem – que talvez seja geracional – é que as gerações mais novas não conseguem lidar bem com isso e eu consigo. Até consigo lidar melhor com isso do que se algo correr muito bem. É uma coisa meio sueca. Quando corre muito bem, fico quase embaraçado. Mas quando corre mal, acho ser normal. Quando estou com a minha banda, seja a fazer uma fotografia ou um vídeo, tudo está a falhar quase sempre. De vez em quando, aquilo acerta e é essa parte que eu agarro. E por isso é que às vezes parece que está tão bem feito. E não é porque eu seja particularmente bom a fazer o que quer que seja, nem a tocar instrumentos, eu escolho é muito bem e não tenho problemas com a ideia de falhar. Inúmeras foram as vezes que passei dias no estúdio a gravar uma coisa que não coloquei na mistura final porque não me pareceu boa o suficiente.
Isso não é frustrante?
Não, porque acho que o que faz uma música boa não é o tempo que uma pessoa gastou nela. Já fiz canções que adoro em cinco minutos e outras que demoraram três meses. Não acho que uma seja melhor do que a outra por ter demorado mais tempo. As pessoas dão muita importância a essa ideia de subir a montanha e depois não beber água. Às vezes subo a montanha toda e só vejo a vista. Não bebo água nenhuma, não há nada. A expectativa é uma coisa terrível. Prefiro não ter expectativa nenhuma e depois o que acontecer pode ser que seja surpreendente. Não sou médico, não sou professor, portanto, não acho que seja assim tão importante. E isso é de uma liberdade gigantesca, porque assim faço as minhas maluquices e não tem problema nenhum, se correr mal, corre mal, pronto.
Já há material para o próximo disco?
Tenho muitas maquetes. Costumo fazer quatro vezes mais músicas do que aquelas que um disco tem. Isso é um truque que aprendi há muitos anos. Se eu tiver dez canções, são as dez canções que tenho no disco. Se eu tiver 40, as dez que estão no disco são as dez melhores. E esse ponto de comparação é muito positivo. Porque, para já, me põe logo num sítio muito crítico. Estou na fase de fazer canções, odiar umas e gostar mais ou menos de outras. Também acontece gostar muito de uma canção e no dia seguinte achá-la horrível, ou achá-la horrível e no dia seguinte achar mais ou menos. Há umas que vão e vêm assim a vida toda, e algumas nunca saem da prateleira por causa disso. Estou a tentar perceber qual é o caminho a seguir e como é que elas todas se juntam e que história é que contam.
É importante que cada disco tenha um conceito?
Gosto muito da ideia do conceito do disco e consigo identificá-lo em todos os que faço. Para chegar aí é preciso atirar muito barro à parede e a maior parte dele não cola. Mas é um processo um bocado caótico, não há uma receita. Acho que as músicas vêm do mesmo sítio que basicamente toda a arte vem, que é de nenhures. Vêm de um sítio meio secreto que tem a ver com um certo tipo de emoções. Depois tento traduzir isso para algo que outra pessoa consiga entender. A única coisa que faço com método é o tempo que uso no meu trabalho, como se estivesse num escritório. Isto foi um conselho que um professor me deu. Na faculdade tive uma disciplina de escrita de argumento, a que eu era péssimo, e um dos primeiros trabalhos era fazer uma curta-metragem. Na aula seguinte disse que não tinha tido ideia nenhuma e perguntei o que havia de fazer. Ele disse-me que eu tinha de arranjar um horário para escrever. E eu perguntei “o que é que acontece se eu não tiver ideia nenhuma na mesma?”, ao que ele respondeu “então ficas lá sentado”. Foi o melhor conselho que já ouvi porque ele tinha razão. Se eu estiver lá sentado, há uma grande probabilidade de, se acontecer alguma coisa, estar preparado. Se durante esse período eu estiver a fazer outra coisa, mesmo que a ideia chegue, não vou ter capacidade nenhuma para a agarrar. Portanto é um conselho que sigo à letra há muitos anos e que me tem ajudado a escrever muitos discos. Tudo o resto é um caos total, não faço ideia do que estou a fazer [risos]. Passo muito tempo em frente aos instrumentos, às vezes só a olhar para eles.
E deves ter muitos, não é?
Por acaso não tenho. Quando vou a casa de músicos amigos meus, a conclusão a que chego é que todos eles têm pelo menos cinco vezes mais instrumentos do que eu. Todos os músicos são loucos, adoram instrumentos. Cheguei a um ponto em que acho que já os tenho todos. Se tenho uma guitarra acústica, uma guitarra de nylon, uma elétrica, um baixo e dois sintetizadores, do que preciso mais? É que depois a casa parece um museu. Atualmente tenho a seguinte regra: se comprar um instrumento dou logo outro.
Em 2015 lançaste Futuro eu, um disco em português. É um processo criativo muito diferente do que estás habituado?
Na realidade, de vez em quando volto lá, mas não é assim tão fácil. Quando fiz esse disco não tinha prática nenhuma em escrever músicas em português, o que fez com que tivesse uma preparação muito melhor para esse disco do que para os outros, porque não tinha a mesma agilidade. Na altura passei três meses a escrever à máquina letras em português, textos, prosas e pequenas histórias, porque queria habituar-me à ideia de escrever na minha língua e saber como é que isso soava cantado, porque é completamente diferente. Passei meses a escrever, gostava do som da máquina, então escrevia, depois punha na parede, depois lia, depois tentava fazer pequenas músicas e odiava tudo. Portanto, levou um bocadinho de tempo até entender o meu lugar nessas canções. Mas, foi dos discos que mais gostei de fazer. Honestamente gostava de voltar a repetir essa experiência, mas tinha de ter um conjunto de canções que eu olhasse e pensasse que faz sentido. Gostava de fazer tudo em português, não queria misturar, no mesmo disco, músicas em português e inglês. Quero que sejam universos específicos. Talvez o próximo seja assim, ainda não sei.
Se pudesses escolher qualquer pessoa, com quem farias uma colaboração?
O Tom Waits. É um dos meus músicos favoritos, que ouço muito, adoro. Também gosto muito da PJ Harvey e da Roisin Murphy. Sou mesmo fã, adoro-a. Vou ver os concertos e grito muito. Ela tem um sentido de humor muito parecido com o meu, meio autodepreciativo, acho isso muito curioso. Em Portugal já trabalhei com muita gente com quem queria muito trabalhar, mas ainda falta gente de certeza… Talvez gostasse de participar em coisas com pessoas mais novas do que eu. No início da carreira, as pessoas têm uma vontade maior de fazer coisas um bocadinho mais fora da caixa e eu identifico-me mais com essa ideia do que com uma coisa um bocadinho mais confortável.
Até conseguiste convencer o Bruno Nogueira a entrar num vídeo…
Foi muito giro, porque quando o convidei para o concerto no Coliseu, disse-lhe que era para cantar e ele ficou um bocado nervoso. Eu disse-lhe que não podia ser só chalaças, que as pessoas iam adorar e adoraram, porque foi maravilhoso. O Bruno também sabe muito bem brincar com a persona dele. Quando fizemos o vídeo, uma das coisas mais impressionantes foi o quão bem ele fazia o playback. Fazia melhor do que eu [risos]. Havia pessoas que estavam completamente convencidas que era ele a cantar.
No próximo ano, os Silence 4 regressam aos palcos, com alguns concertos já esgotados. É apenas para matar saudades ou há alguma possibilidade de um regresso?
Os Silence 4 existiram num momento muito específico. Nem consigo imaginar o que seria agora juntarmo-nos todos outra vez, porque aquilo que nos levou a criar aquelas músicas tem a ver com uma fase em que nenhum de nós está. O que fizemos naquela altura foi uma coisa muito rara de acontecer, nem eu sabia o quão rara era enquanto acontecia. Foi um daqueles momentos onde se cria algo que vem de um sítio muito pessoal e muito emocional e nunca na vida se pensa se vai chegar a alguém ou não, e depois torna-se um verdadeiro caso de sucesso. E de repente aquelas canções já não nos pertencem, nada daquilo tem a ver connosco. As pessoas partilharam aquelas canções porque se lembravam da namorada ou de um encontro quando eram miúdos nos escoteiros ou num acampamento… e o número de histórias absurdamente bonitas que ouvi ao longo dos anos que têm a ver com os temas dos Silence 4 fazem com que eu ache que as canções ultrapassaram muito aquilo que levou à sua criação. Nem acho que a reunião seja muito acerca de nós. Acho que vamos lá tocar e as pessoas estão-se a borrifar para nós. O que mais querem é estar lá junto daquelas canções e relembrarem-se de um tempo, de uma coisa específica, de uma pessoa, de uma sensação. Acho que é isso que faz com que aquelas canções sejam tão absolutamente mágicas.
Como é que lidas com o impacto que as tuas músicas têm nos outros?
Honestamente, não acho que tenha muita responsabilidade nisso. No caso dos Silence 4, estávamos no sítio certo no momento certo e naqueles dois anos tivemos a sorte de as pessoas agarrarem aquelas canções como se fossem suas. Isso é algo que para mim ainda hoje parece absurdo. Há uma música no primeiro disco que se chama Angel’s Song, que escrevi por causa de um desamor qualquer. Na altura escreviam muitas cartas à banda, não havia emails nem redes sociais. Uma das cartas que me mandaram falava exatamente sobre essa música específica. Era de uma mãe cujo filho tinha tido um acidente de automóvel e tinha ficado em coma. A banda favorita dele eram os Silence 4. Então, os médicos, a certa altura, deixaram a mãe pôr a música a tocar ao pé dele baixinho, e ela punha sempre o nosso disco. O miúdo acordou do coma enquanto tocava essa canção. Então, a mãe atribuía o facto de ele ter acordado àquela canção. E eu lembro-me de pensar que aquela história era incrível. No fundo, as pessoas é que deram uma oportunidade para que tudo acontecesse dessa maneira nas suas vidas. Não acho que tenha sido eu, especificamente, ou a banda. E eu acho que isso talvez seja o mais bonito de tudo. Espero sinceramente que toquem estas músicas daqui a 30 anos e que ninguém saiba muito bem quem é que as fez. Isso é de longe a melhor coisa que pode acontecer a uma música, é o melhor elogio que se pode dar a alguém que fez uma canção: é o artista desaparecer e a música ficar para sempre. Isso é algo raríssimo de acontecer, mas quando acontece é absolutamente mágico. Era algo que tinha de ser, não acho que seja possível perseguir esse tipo de sucesso. Lançámos o disco em junho de 1998 e em dezembro estávamos no Pavilhão Multiusos [atual MEO Arena]. Isso não faz sentido nenhum, uma banda totalmente desconhecida de repente estar a tocar numa sala dessa dimensão. Isso faz perceber que era um fenómeno um bocado descontrolado. Confesso que só percebi o sucesso que tínhamos nesse concerto. Até aí, achava que havia uma data de miúdos malucos atrás de nós nos concertos, mas que eram sempre os mesmos. Quando se marcou o Pavilhão Multiusos eu disse que era melhor não porque era muito grande e que não ia aparecer ninguém. Foi aí que percebi que realmente a nossa música tinha chegado a muita gente.
Foi difícil para vocês, tão novos, gerir esse sucesso repentino?
Não é fácil gerir o sucesso e ninguém está habilitado para lidar com isso de forma repentina. Lembro-me de uma vez, no supermercado, só haver uma caixa aberta e quando chegou a minha vez as empregadas correram para a caixa para me atenderem. Tive momentos assim deste género, muito absurdos, de pensar, “mas porquê?”. Na minha cabeça, não fazia sentido aquele tipo de comportamento. De facto, passado dois ou três anos, deixamos de ser novidade e as pessoas já não ligavam tanto. Faço uma vida perfeitamente normal. Ando muito de metro e não sinto sequer as pessoas a olharem para mim. Acho que em Portugal as pessoas estão-se a borrifar para essa ideia da fama. A não ser os miúdos mais novos que gostam de outros miúdos famosos. Acho isso normal. Mas até acho ridículo que uma pessoa em Portugal – que é um país tão pequeno – se sinta importante. Sempre achei muita graça às pessoas que se acham muito importantes porque têm uma profissão que as torna conhecidas. Acho genuinamente piada porque não vejo onde está essa importância.