A lenda que só queria ser amada

"Marilyn, por trás do espelho" no Teatro da Trindade

A lenda que só queria ser amada

O premiado solo da atriz brasileira Anna Sant’Ana sobre a vida de Marilyn Monroe, uma das maiores lendas do cinema do século XX, chega a 14 de novembro a Lisboa. Com encenação de Ana Isabel Augusto, Marilyn, por trás do espelho é um olhar emotivo e íntimo acerca do lado mais trágico da fama.

Anna Sant’Ana parece andar numa relação com Marilyn desde 2010. Nesse ano, a atriz brasileira interpretou “uma faceta” da sua congénere Leila Diniz, símbolo da emancipação feminina no Brasil durante os anos 1960 e 1970, que se identificava explicitamente com aquela que terá sido a estrela maior de Hollywood na década de 50 do século passado. Pouco tempo depois, a iconografia de Marilyn volta a cruzar-se com Anna, quando em palco veste a pele de uma mulher que partilha com o marido uma fantasia sexual que consiste em reproduzir a famosa cena do vestido esvoaçante de O pecado mora ao lado. 

Estas aparentes “coincidências” motivaram a atriz a tentar saber mais sobre quem foi Marilyn Monroe. Um aturado trabalho de pesquisa preencheu a década seguinte, revelando a Anna facetas da lenda que desconhecia por completo. “Fui-me deparando com a mulher que havia por trás da imagem do ícone sexual. O outro lado do mito era, afinal, uma mulher como tantas outras, que tentava enfrentar seus momentos de depressão, sua baixa autoestima e a imensa solidão. Ela só queria mesmo ser amada. Tudo isso me fez identificar com Marilyn, perceber que partilhávamos muitas feridas, muitos traumas”, explica a atriz.

Ao longo do trabalho de pesquisa, para além dos filmes que interpretou e inspirou, das entrevistas que se podem encontrar na internet e de uma vasta bibliografia em torno de Marilyn, Anna destaca como essencial para aquilo que haveria de ser o espetáculo o livro de Keith Badman The Final Years of Marilyn Monroe. “Nessa biografia muito detalhada, [o autor] desmonta muitas mentiras que se contam sobre Marilyn, sobretudo sobre a relação dela com os Kennedy.” Esse livro acabou por ser muito importante na construção do “documento de umas 70 páginas onde resumi os 36 anos da vida muito preenchida de Marilyn”, afirma a atriz. Será esse “documento” que Anna acabará por entregar a Daniel Dias da Silva para ser transformado num texto dramatúrgico.

De Norma Jeane a Marilyn

Na sequência de uma passagem de Anna Sant’Ana por Lisboa, a encenadora portuguesa Ana Isabel Augusto entra no projeto ao dirigir a atriz numa leitura de parte do texto de Daniel Dias da Silva. “No fundo, a Anna queria experimentar colocar o texto em cena para ver no que dava e, sem qualquer tipo de compromisso, pediu-me que dirigisse a leitura”, conta.

Mesmo sem o texto terminado, a entrega de Anna à personagem e o esboço do trabalho de desenho de luz de Renato Machado faziam perceber que havia “um espetáculo a ganhar forma”. Embora o objetivo fosse fazê-lo no Brasil, o contributo de Ana Isabel Augusto foi tido por Anna como essencial. “Era a pessoa perfeita para conduzir o carrossel de emoções que vivo a fazer a Marilyn”, sublinha a atriz.

O espetáculo acompanha as derradeiras horas de Marilyn, entre álcool e barbitúricos, naquele que acabará por ser o seu leito de morte. Na mais profunda solidão, temendo o esquecimento, lutando contra todas as frustrações e abusos sofridos, a atriz revive episódios da sua vida, desde o tempo em que era apenas a incógnita Norma Jeane até se tornar Marilyn Monroe, a mais popular das estrelas de Hollywood da década de 1950.

No dito “carrocel de emoções” que caracteriza Marilyn, por trás do espelho, Anna Sant’Anna desdobra-se entre os múltiplos papéis de Norma Jeane/Marilyn. Da criança abandonada e abusada à estrela em declínio, passando pelos papéis de dumb blonde com que conquistou as telas, ao mesmo tempo que a tornavam no símbolo sexual de uma América a antecipar a revolução sexual vindoura, na sua composição da lenda de Hollywood, Anna oferece não “a imagem da ‘loira burra’, mas a da mulher que lutou muito para sair desse estigma e ser vista como inteligente e como excelente atriz”.

Embora a imagem da sex symbol continue muito presente no imaginário de várias gerações, a Marilyn para lá do mito continua a ser um enigma por decifrar. Se, é certo, isso interessou a Anna Sant’Ana ao longo de tantos anos de pesquisa, a atriz não deixa de sublinhar a importância que ela teve na subversão de vários estereótipos sobre o papel da mulher, ao mesmo tempo que os estúdios lhe impunham outros. Algo bastante sublinhado no espetáculo é “a questão de, ao assumir a sua liberdade sexual, Marilyn ser extremamente objetificada” e vítima constante de relações abusivas, “como se essa liberdade sexual desse direito a ser usada e manipulada como um objeto pelos homens”.

Depois de dois anos de digressão por Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza e Brasília, e ter sido distinguido, em 2022, como melhor monólogo e melhor texto original nos Prémios Cenym, atribuídos pela Academia de Artes no Teatro do Brasil, o espetáculo sobe agora ao palco da Sala Estúdio do Teatro da Trindade, permanecendo em cena até 22 de dezembro, com récitas de quarta a domingo às 19 horas.