Nuno Faria

“O Museu Arpad Szenes - Vieira da Silva abriu-se à luz”

Nuno Faria

Os 30 anos do Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva celebram-se com 331 Amoreiras em Metamorfose, exposição patente a partir de 20 de novembro, e que marca o início da programação concebida pelo novo diretor Nuno Faria. Organizada em cinco ciclos, a mostra apresenta uma “constelação de artistas” que põe em diálogo as obras do casal de pintores com as de outros nomes das artes, e vai buscar inspiração à história do lugar onde nasceu.

Foi nomeado diretor do Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva em fevereiro deste ano. Já trazia ideias sobre o que queria fazer?

Chego à direção através de um concurso e estou a fazer aquilo a que me propus na minha candidatura. Quando há oportunidades destas, que não são assim tão frequentes, os profissionais da área pensam se é uma coisa que lhes interessa ou não e o que podem ou não trazer de novo à instituição. Eu pensei muito. Este é um museu de que as pessoas gostam muito, de modo geral. Não conheço ninguém que não goste deste museu. No meu caso, era principalmente por ser um museu com uma escala pequena e que tem uma escala simbólica bastante ampla devido, sobretudo, à obra de Vieira da Silva, que é a artista mais mediática dos dois, mas também devido a esta relação entre dois grandes artistas.

É um museu que nasceu de uma história de amor.

Sim, uma história de amor entre artistas, o que não é raro… mas são sempre bonitas, não é? E entre dois artistas que tinham mundos solitários, mas que os foram entretecendo na sua relação. Fiz uma reflexão, comecei a pensar no que poderia fazer e depois instruí a candidatura e foi num crescendo. O museu é um dos poucos em Lisboa para se ver pintura, para se ver boa pintura. Quem diz pintura, diz desenho… E depois tem esta relação privilegiadíssima com a Praça das Amoreiras. Quando comecei a estudar a história do edifício e a procurar, não encontrei logo o ângulo de entrada que acabei por trazer, não ficou logo evidente – nem para mim, que já me interessava muito pelo tema da metamorfose e dos corpos que se transformam – este enfoque poético da importância da oralidade, da maneira como nos constituímos enquanto comunidade. Foi a partir desse estudo e dessa reflexão que surgiu o tema da metamorfose como uma evidência, surgindo quando olhei para a origem do edifício. E da origem do edifício fomos crescendo para outras questões, para a história do museu, que não conhecia em grande pormenor, para a história das exposições que aqui aconteceram…

Por isso, quis voltar à origem deste lugar, tanto nas alterações que foram feitas ao edifício como na exposição com que agora reabre?

Este limpar de camadas que aqui fizemos tem muito a ver com algo em que acredito: vemos melhor quando chegamos a um lugar que não é o lugar que habitamos há muito tempo. Pareceu-me evidente, por exemplo, que a fachada tinha de brilhar outra vez, por isso, voltámos ao amarelo, tirámos as telas e pusemos o nome em destaque. O museu tinha de ser devolvido à praça, ao jardim… Mas nada do que proponho é novidade. Este museu existe há 30 anos, tem uma história feita de grandes exposições e de muitos artistas incríveis, apenas achei que precisava de um novo olhar. O mote para voltar à origem foi o 30.º aniversário, com gestos muito simples e muito pragmáticos, muito funcionais, indo buscar coisas que já estavam escritas no projeto original. A cor do edifício, que tem a ver com a poética das cores dos edifícios em Lisboa, estava inscrita no projeto original. O nome na fachada é o bastante para as pessoas que já se encontram na praça serem conduzidas ao museu e serem convidadas a entrar. O museu abriu-se à luz. É literal, mas acho que resume bem o que aqui quisemos fazer. E Arpad e Vieira usaram a luz como uma das matérias principais, portanto, é conduzir essa luz para dentro do edifício. Abrimos as entradas de luz natural nas salas… e a luz conduz-nos também à alma do edifício e de Arpad e Vieira. E a única maneira de nos relacionarmos com estes dois seres que já não estão entre nós é pela luz, não é?

Parece que tudo se liga: a pintura de Vieira e Arpad, a sua história, este edifício que foi a Fábrica de Tecidos de Seda, este jardim…

Para mim, faz todo o sentido. Costumo dizer que é muito importante relacionarmo-nos com os artistas – sobretudo os artistas famosos que já desapareceram – pensando-os como jovens e pensando-os como pessoas não necessariamente alinhadas com as histórias que a História da Arte conta. É preciso haver uma certa insubmissão em relação ao que pensamos que já sabemos. Isso é um ponto de partida maravilhoso para se entrar no museu de novo: há coisas que não sei ou há coisas que me foram contadas que talvez não sejam exatamente assim ou, sendo exatamente assim, se calhar há uma dimensão escondida. Na Vieira há, de facto, uma dimensão escondida muito poderosa. Vejo-a como uma espécie de Aracne, uma espécie de feiticeira, muito poderosa. Uma mulher que tinha consciência da sua força, mas que não a mostrava necessariamente, e era tanto mais forte por causa disso. Zelou por muitas outras pessoas e por princípios de forma verdadeiramente inabalável, sem nunca gritar. Por isso, acho que o edifício também não deve gritar, deve estar lá com uma presença intensa, mas não gritante e deve olhar para estes artistas como jovens que foram – e que provavelmente se mantiveram – e olhar mesmo de outro ângulo. É o que queremos fazer. Queremos contar histórias e isso convoca sempre duas coisas que estão a desaparecer em muitos lugares, que é os dois lados: uma pessoa que fala e uma pessoa que ouve. O museu convoca uma ideia de escuta muito forte e isso liga-nos aos outros. Este exercício da escuta é algo que o museu propõe, seja em interação, seja por interposta pintura. É importante reencontrar a ideia de presença no museu, porque ela está muito desmaterializada. E não há melhor do que Vieira e Arpad e todos estes artistas que os acompanham nesta exposição, que é uma constelação… mais uma vez, a ideia de luz a ser importante aqui.

Além da luz, outra das ideias fortes desta exposição é a das texturas. Disse que essa materialidade nos museus é importante, porquê?

Sim, sabemos exatamente aquilo que nos faz falta, mas andamos em negação muitas vezes. A perceção de que as coisas têm uma textura parece-me fundamental. O material é muito importante para nos ligarmos à vida. Acredito que as realidades virtuais nos museus são desviantes e podem pôr em causa a apetência para apreciar uma pintura. O museu tem de ser político, não podemos ficar só no plano do estético. A exposição vai inaugurar numa altura que podia ser mais eufórica e um bocadinho depressiva, por causa deste momento político internacional, mas os museus, nunca esquecendo a sua dimensão fortemente enraizada na realidade, no quotidiano das pessoas, devem ser também universos de esperança e de reparação. Não quero parecer demasiado otimista, porque não sou, é o contrário do que sou, mas essa ideia de reparação através de um encontro connosco próprios pode ser muito intensa num museu. Os museus, atualmente, são dos lugares mais criticados, mais repensados e mais estigmatizados, mas continuam a existir, continuam a ter uma força muito grande e há que perguntar porquê – ou então, não perguntar porquê, mas continuar a vir aos museus. Dito isto, acho que o museu se tem de reinventar, os museus e este em particular, que é aquele de que nos ocupamos. Reinventar no sentido de não se deixarem adormecer, de não serem condescendentes para o público, de não acharem que o público sabe tudo, por um lado, e que o público não sabe nada, por outro, e de serem lugares, sobretudo, que propiciem encontros, lugares de abertura. Não é preciso muito mais. Esses encontros podem ser guiados ou não, mas a emancipação do espectador, como Jacques Rancière dizia, tem de ser feita confiando nele, dando a acessibilidade necessária. E a acessibilidade não é só ter elevadores ou ter entradas francas, a acessibilidade tem muito a ver com essa relação de confiança, não é?

“As realidades virtuais nos museus são desviantes e podem pôr em causa a apetência para apreciar uma pintura”

 

É necessário repensar também na forma como se chamam as pessoas para o museu.

Sim, é um trabalho que estamos a fazer, de que os museus precisam. Se tiverem uma intensidade que as pessoas sintam que existe, elas vêm, claro, mas temos muito trabalho a fazer. Estamos a viver num contexto único em Lisboa, não me lembro de um contexto tão rico em termos museológicos, com diferentes instituições de várias escalas, umas mais formais, outras mais informais, com um conjunto de programadores que se estimam uns aos outros, que querem trabalhar em conjunto e que também oferecem uma concorrência grande. As pessoas têm de escolher, claro, mas penso que temos argumentos muito importantes: temos uma das artistas portuguesas com maior prestígio à escala internacional, temos uma história de amor para contar, temos neste ano de celebração uma nova programação com novos nexos, novas linguagens e esta praça – e não há outra como esta em Lisboa! – portanto, são argumentos muito bons para que as pessoas venham. Ainda há um último: eu faço apologia dos museus mais pequenos, não aqueles museus gigantescos que têm exposições a perder de vista. As pessoas podem vir e ter aqui uma relação muito intensa com as peças.

Será esse o mote para os próximos 30 anos?

O mote para os próximos 30 anos é fortalecer este museu, elevá-lo, do ponto de vista orçamental e do ponto de vista das condições, a uma escala simétrica à escala simbólica e ao valor material que as obras de Vieira e Arpad têm. O museu tem de ser fortalecido e precisamos de colaboração para isso. Este é um museu que partiu de uma concertação de vontades muito poderosa, com várias instituições e pessoas. Começou por ser uma vontade de Vieira, que era humilde no início e depois foi crescendo com a ajuda de pessoas. Temos de provar que sabemos fazer e temos de honrar essa história, mas ao mesmo tempo temos de ser ambiciosos. Precisamos de ter a força de reivindicar e sermos dignos disso. Esse é o projeto para os próximos 30 anos.

Como é essa nova linguagem de que falou, mais próxima, menos formal?

Sim, a ideia aqui é contar histórias – não propriamente a História da Arte, mas outras: sobre este edifício, onde se aprendia o ofício da tecelagem, sobre as 331 amoreiras, um número poético porque estranho, que alimentavam todo o ecossistema dos têxteis… É desse ecossistema que queremos falar, da solidariedade entre as espécies vegetal, animal e humana. Acredito que, olhando para essas outras espécies, aprendemos sobre nós próprios. Vamos contar as histórias da História de Arte, queremos contar os intervalos da história, que são os intervalos dos pontos, da trama da História. Queremos contar uma história mais sensorial, mais humana, talvez… uma história que toque mais as pessoas, uma história que não está nos livros, é isso que queremos. O museu não é um livro de estudo, é outra coisa. Tem vários pontos de ancoragem que não são necessariamente feitos através da palavra ou do texto. Dito isto, este binómio têxtil-texto interessa-nos muito neste ano de programação, que também nos vai dar pistas sobre o que vamos fazer a seguir. Nesse sentido é uma exposição bastante experimental.

Falta-nos só falar da ideia de metamorfose que atravessa a exposição e que, como disse, sempre foi uma coisa que o fascinou.

Tenho trabalhado muito com a metamorfose, sempre me interessou a expansão da nossa perceção e a maneira como os sentidos de índices inferiores foram sempre relegados e reprimidos. O tema da metamorfose é intemporal. Há um momento na história do pensamento, que se situa na Grécia, em que há alguém que vem reprimir toda uma tradição sensorial materialista, a tradição pré-socrática – e é bastante injusto que os filósofos antes de Sócrates se chamem pré-socráticos – porque Sócrates e Platão vêm, de facto, censurar e estigmatizar essa abertura a outros sentidos e outras formas de perceção da realidade. Interessa-me muito que a visão não domine o nosso aparelho percetivo, porque a visão convoca uma nomeação e quando damos o nome a uma coisa, estamos a fixá-la numa forma. E só as coisas que têm forma é que podem ser nomeadas. A mim interessa-me o que não pode ser nomeado. Acredito que isto é também, de certa forma, estar acordado para o que está a acontecer hoje. Não me interessam muito os adjetivos, o woke, o wokismo, etc. Não, interessa-me perceber o que está a acontecer às pessoas e como é que os corpos mudados que Ovídio nos prometia se estão a realizar agora. Interessa-me fazer essa relação com os dias de hoje. No museu, queremos convocar também públicos jovens que talvez encontrem algumas respostas, que não têm, para o que lhes está a acontecer. Hoje não vemos uma árvore como víamos há alguns anos, já percebemos que são seres e que têm muito para nos ensinar. Também a relação que temos hoje com os animais é muito diferente. Temos de incorporar toda esta poética na nossa cultura, que é uma cultura cada vez mais alienada.