entrevista
Branko
"A paixão pela música eletrónica partiu muito da ideia de não existirem limites"
Branko prepara a festa de celebração dos 20 anos de carreira estreando-se em nome próprio no Coliseu dos Recreios. O concerto de 28 de novembro recorda o trajeto com Buraka Som Sistema e 1-Uik Project, e revisita a última década a solo, com particular destaque para o novo disco, Soma, lançado em março. Um espetáculo onde o artista viaja pelo passado com os olhos postos no futuro.
Que peso têm estes 20 anos de carreira?
Não associo os 20 anos a um marco importante. É uma referência cronológica, uma informação que fez sentido comunicar, principalmente para situar no espaço e no tempo aquilo que é a minha carreira e para explicar que este espetáculo vai ter um foco um bocadinho mais amplo do que se fosse apenas um concerto de apresentação de um disco. Sempre fui muito mais viciado no futuro do que no passado em termos de música e tento sempre celebrar o futuro. Sinto-me mais emocionado com aquilo que vem a seguir do que com o que acabou de passar. Mas, para mim, é muito bonito o exercício de viajar a 2004/2005, esses primeiros trabalhos que fiz com 1-Uik Project – o meu primeiro projeto que ganhou algum tipo de atenção mediática. É bom voltar um bocadinho atrás no tempo e perceber que tudo faz parte daquilo que sou hoje enquanto artista. No fundo, é fazer um certo zoom out e olhar para as coisas que estão para trás, mesmo com sonoridades diferentes – seja com música mais intensa ou mais suave, BPMs mais rápidos ou mais lentos – mas em que a narrativa foi mais ou menos sempre a mesma. Fico feliz por constatar essa consistência, por conseguir manter na música a minha postura inicial.
Mudarias alguma coisa se pudesses?
Há uma parte do trabalho que foi feito principalmente com Buraka Som Sistema a nível de toda a logística que envolve ter um projeto com expressão a nível mundial, seja em termos de trabalho do dia-a-dia ou de gerir equipas; um trabalho não tanto artístico, mas mais de backoffice e de direção. Olhando para trás, gostaria de não ter perdido tanto tempo com isso. Um projeto como Buraka Som Sistema, com a recetividade que teve na altura, se tivesse nascido em Londres ou em Paris, com certeza teria tido uma estrutura que nos iria permitir focar mais na arte e na construção musical. Um bocadinho menos tempo com esse lado mais técnico permitiria que me focasse mais no lado artístico. Mas, isso acabou até por trazer outras benesses e o nascimento da Enchufada (editora discográfica independente), que foi muito bonito e que acompanhou o projeto dos Buraka enquanto casa-mãe, escritório, editora, etc. Espero que outras gerações de artistas já consigam começar um bocadinho mais à frente através dos exemplos e desse trabalho que foi desenvolvido.
Como é que surgiu a paixão pela música eletrónica?
A paixão pela música eletrónica partiu muito da ideia de não existirem limites, de não existirem fronteiras, de não existir absolutamente nada. O ciclo eletrónico foi a minha primeira ferramenta, apesar de eu saber tocar guitarra e outros instrumentos. Sempre achei um bocadinho aborrecida a ideia de ficar demasiado preso a um instrumento, que é exatamente o oposto do que senti quando instalei o primeiro software de criação de produção no PC lá de casa. Foi mais uma sensação de que com isto tudo é possível… É muito mais importante saber produzir bem, mesmo que toque mal guitarra, porque vou conseguir pôr essa guitarra a soar bem, do que demorar seis anos a aperfeiçoar a guitarra de forma a soar bem. Sempre fui muito mais atrás dessa ideia de novas texturas musicais, de sonoridades diferentes. Sempre foi um bocadinho essa a minha fixação, muito mais do que uma relação com o género da música eletrónica em si. Era mais a produção eletrónica que me levava a criar. No fundo, o resultado podia ser hip-hop, ou podia ser música de dança, ou outro género, mas o que sempre me interessou foi a produção com máquinas e com software, com computadores…
Isso quer dizer que, para ti, a inspiração está um bocadinho em todo lado, não é?
Sim. Há muitos anos, na altura dos minidiscs (uma coisa que a Sony inventou a determinada altura e que dava para gravar com o microfone) gravava uma série de coisas e acabava por utilizar esses elementos nas músicas. Atualmente, já faço uma gestão um pouquinho diferente. Obviamente trabalho com músicos, consigo ter uma fonte sonora musical mais focada naquilo que é o meu objetivo final e naquilo que quero fazer, mas mesmo assim ainda brinco imenso. Consigo agarrar numa voz e transformá-la num instrumento que ninguém sabe identificar bem o que é: um sintetizador, uma harpa, um instrumento tradicional… O meu trabalho passa muito por aí. Acima de tudo, acho que a cidade de Lisboa sempre foi a minha grande inspiração. Não necessariamente a cidade com os seus limites geográficos e políticos, mas as pessoas que se encontram neste epicentro cultural de língua portuguesa.
Preferes ser livre e gerir o teu projeto a solo ou estar numa banda como os Buraka?
Tudo aquilo que meta um coletivo de cabeças pensantes vai sempre ser bastante diferente do que uma coisa onde haja apenas uma fonte de decisões, uma vontade, uma direção, etc. Acho que a junção de várias pessoas num grupo consegue criar milagres musicais, que se calhar não acontecem a solo. Foram dez anos muito intensos e muito bonitos com Buraka Som Sistema e, obviamente, sinto saudades, vontade de voltar a viver situações que aconteceram, viagens boas, etc. Desde que comecei, em 2013, a apresentar-me como Branko, também houve o lado de conseguir traçar um caminho em que há o controlo de todos os passos e de tentar ir numa direção musical que explora muito mais profundamente aquilo que quero dizer, a minha identidade. Muitas vezes este lado também tem momentos de solidão, principalmente enquanto DJ – atualmente não tanto porque neste momento ando na estrada com dois músicos que viajam comigo para os concertos -, mas até há pouco tempo apresentava-me como DJ produtor com um espetáculo audiovisual em que estava sozinho em palco (embora pudesse ter um ou outro colaborador vocal). Muitas vezes viajo para um sítio qualquer e estou ali meia hora antes, sentado sozinho no backstage a pensar “que decisões é que tomei na vida que me trouxeram até aqui? Isto não tem piada nenhuma”.
Que tipo de música é que consomes? Ouves muita música eletrónica ou géneros completamente diferentes?
Acima de tudo consumo música que me emocione, me excite, e que tenha coisas novas. Sou muito focado na tentativa de inovação, de agarrar nas ferramentas que existem e conseguir criar uma sonoridade nova ou criar uma equação sónica que vá dar um resultado um pouquinho diferente. Sou muito fã desses momentos e de artistas que consigam, de alguma forma, fazer esse tipo de inovação e abordagem na música. Acho que a música underground inglesa no geral é muito forte nesse sentido. Mesmo artistas que depois acabam por ser catapultados para a música pop – pensando em exemplos como James Blake ou Jorja Smith, a cena musical inglesa tem muito isso, sendo possível ser underground e depois ficar quase mainstream, mas manter essa conexão com o underground. Acho que isso é muito bonito. Se calhar acontece mais em Inglaterra do que nos Estados Unidos, que parece que quando a fronteira é passada, já não há volta a dar… Depois também ouço muita música de países de expressão portuguesa. Música brasileira, seja música de produção eletrónica, seja música acústica, folk, como os clássicos todos da música e dos cancioneiros de países de expressão portuguesa.
O teu último disco, Soma, que histórias é que conta? Tens a preocupação de que haja uma narrativa ou um conceito?
Não diria que os discos são 100% conceptuais ou que todas as peças encaixam para criar um formato final que eu tinha imaginado. Acho que o meu processo é um pouquinho mais orgânico, mas sem dúvida que nunca começo um disco sem ter uma visão da meta, daquilo que é a baliza onde quero que esse disco chegue. Este disco em concreto surgiu um bocadinho por saudades dessa ideia de criação comunitária. Há 15 anos, quando saía à noite no Bairro Alto, inevitavelmente ia falar com pessoas de vários projetos musicais que se cruzavam comigo. Não era necessário combinar com ninguém para nos encontrarmos e para falarmos sobre criar uma música ou um projeto juntos. Neste disco comecei por juntar uma série de músicos (que são, para mim, os que melhor definem o que é o som de Lisboa e que sempre dinamizaram e trouxeram tipos de sonoridades completamente diferentes) para uma jam session de três dias: João Gomes (de projetos icónicos como Cool Hipnoise ou Saceboys); Danilo Lopes (do projeto Fogo Fogo), ou Jéssica Pina (trompetista natural de Alcácer do Sal que tem uma perspetiva muito interessante entre a música urbana e o jazz). Nestes três dias de jam sessions, basicamente, improvisámos do início ao fim. No fundo, foi quase o forçar dessa criação comunitária de que eu sentia saudades, que aconteceu nos estúdios Namouche, em Benfica. A partir daí foi agarrar um pouco em toda essa soma e passar dessa versão improvisada para um formato que passou por procurar os vocalistas certos.
Como é que escolheste as vozes certas para essas músicas?
Quando começo a trabalhar num disco, tenho uma lista de vocalistas ideais com quem quero trabalhar. As razões são várias: às vezes são pessoas com quem já me cruzei e tive alguma conversa interessante que queria de alguma forma materializar numa canção, ou simplesmente artistas que ouvi nalguma plataforma digital, e de cujas vozes ou abordagem musical gostei. Mando mensagem e muitas vezes ninguém diz nada. Outras vezes acerta-se e até se consegue conectar com pessoas que também conhecem a nossa música e que estão interessadas em fazer alguma coisa e isso obviamente que é espetacular. É um processo meio orgânico de começar numa lista de nomes, perceber que vozes é que encaixam em cada tema que está feito a nível instrumental, ou que temas é que poderiam encaixar nessas pessoas e ir montando esse puzzle de forma orgânica deixando sempre um bocadinho de espaço para – e se calhar este é o lado principal – chegar ali aos 80% do disco para ainda olhar para trás e perceber o que falta, o que ainda é preciso ajustar, o que é que eu não tenho ou o que tenho a mais. Isso faz parte do processo criativo. É preciso saber fazer zoom out de vez em quando e ter um olhar crítico sobre se o disco está completo, se tem tudo aquilo que eu acho que deveria ter, se estou a tocar em todas as coordenadas musicais e geográficas, em todos esses pontos que acabam por ser importantes para definir um projeto meu.
E em relação à parte da letra como é que funciona?
Trabalho muito com sessões de estúdio: sento-me no estúdio com a pessoa e compomos. No caso deste disco, tendo em conta o processo criativo, quando me sentei no estúdio com alguns vocalistas tinha já os instrumentais um pouco avançados, então foi mais uma questão de ajustá-los um bocado e perceber se estavam de acordo com aquilo que as pessoas queriam ouvir. As letras são quase sempre escritas nessas sessões de estúdio, pelos que estão a cantar ou por outras pessoas que se juntem a nós para esse propósito. Acho mesmo muito importante haver essa partilha orgânica de me sentar com uma pessoa e de criar música com ela, de escrevermos e de trocarmos opiniões sobre o que está a acontecer (apesar de já ter feito músicas mandando ficheiros por e-mail). Essa troca é das coisas que mais me enriquece a nível criativo.
Produtor, compositor, DJ, visionário… Com qual destas palavras te identificas mais?
Sinto que cada vez mais a expressão DJ começa a entrar numa era em que já nem sei se é bom usar. Não que eu sinta que haja algo de errado, mas penso que acabou por ser uma arte a que o teste do tempo não foi muito favorável, especialmente porque entrámos numa versão em que a busca já não é tanto pela música em si ou pela ideia que havia que os DJs iam buscar músicas surpreendentes… Os DJs são mais usados para serem só uma figura que está a tocar as mesmas músicas que toda a gente quer ouvir. Diria que, de todas essas palavras, produtor musical é aquela com que mais me identifico. Se tiver de me apresentar a alguém numa conversa, digo que sou produtor musical, principalmente porque não sei ler música, não sei escrever uma pauta. Componho música com base naquilo que é o meu bom gosto. Ouço uma coisa, gosto, se faz sentido continuo, se não faz, deito fora e começo outra coisa. A minha composição é baseada nisso. Sinto sempre que sou um compositor um bocado a meio gás porque não tenho esse background. O beatmaker ou o produtor de música é uma pessoa que fica no estúdio muito tempo até que um som esteja suficientemente interessante para conseguir criar uma reação noutra pessoa. Acho que é esse o meu trabalho. A minha tarde ideal é com a cabeça no monitor a trabalhar em música e a produzir beats.
E nunca te cansas?
Não. Tu só consegues sentir que uma coisa é intensa quando tens uma quebra que depois te leva a uma coisa mais intensa, não é? A música tem sempre esta dinâmica. É preciso estar muito cheio para depois estar muito vazio, para depois estar muito cheio novamente, e eu acabo por viver a vida um bocadinho da mesma maneira e isso também é muito interessante. Isso também acaba por definir um bocadinho o meu processo criativo e a forma como acabo por abordar a música e a produção.
Este concerto vai ser mais uma espreitadela para o futuro do que propriamente um reviver do passado?
Vai haver um reviver do passado, mas também um ‘remixar’ do passado a acontecer em palco, paralelamente a uma perspetiva do futuro e do presente. Portanto, acho que vai ser um bocadinho de tudo.
E vais ter convidados?
Um concerto meu tem de ter sempre pessoas envolvidas. Isso tem sido uma constante desde 2004 até agora, e não era no Coliseu que ia mudar isso e fazer um concerto robótico só comigo em palco. Vou ter vários tipos de convidados e já anunciei o primeiro, a Teresa Salgueiro, que se vai juntar a mim para cantar pela primeira vez o tema que lançámos no Soma. Também vou ter convidados que vou anunciar e ainda outros que não vou anunciar. Portanto, vamos ter a sala cheia de música, talento e emoções. Vai ser um momento de Lisboa em palco – pelo menos aquilo que é a minha perspetiva da cidade. Acho que vai ser muito bonito orquestrar o momento com todas as pessoas e canções dos meus quatro discos, mais toda a discografia que está para trás.