sugestões
Os livros de dezembro
Dez livros para ler e oferecer neste Natal
No mês de Natal, selecionámos uma dezena de edições recentes que incluem diversos géneros literários: poesia, romance, ensaio, contos, divulgação científica, crónica e policial. Aceite estas sugestões ou opte por outras; o importante é ler e oferecer bons livros.
Miguel Real
Autobiografia de Jesus
“Todos os homens são um enigma, (…) mas tu és um mistério”, afirma José a seu filho em Autobiografia de Jesus. Parte desse mistério pretende este livro desvendar. Tomando a voz de Jesus, revela a sua vida familiar, a sua aprendizagem, as suas revelações, a sua solidão (“São os meus traços essenciais, sentir-me só e estar triste.”) O autor separa a ética de Jesus, “a ética das Bem-Aventuranças”, da ética de Cristo, “a da dor, do sacrifício, do tormento e da resignação”, e recorre a esta narrativa como forma resolver as inquietações que o tema da Ressurreição lhe suscita desde a infância. Afirmando uma visão profana da vida de Jesus (“um Jesus humano, não transcendente nem sobrenatural”), defende que este foi o homem mais fracassado da civilização ocidental: morreu abandonado pelo “Pai” e “tudo o que profetizou não só se cumpriu como deu origem à religião mais violenta do mundo”. Com um final engenhoso, este romance singular reabilita, de forma corajosa e bela, um pouco à semelhança de A Última Tentação de Nikos Kazantzakis, a figura de Judas Iscariote e assume o remorso de Jesus por ter tratado Maria Madalena de forma condescende e por não a ter convidado para a mesa da ceia pascal, entre os seus mais chegados companheiros. LAE Dom Quixote
Ovídio
Remédios Contra o Amor
Nos Remédios Contra o Amor, Ovídio (43 a.C. – 17 d.C.), o poeta que celebrou os prazeres do amor e que ensinou a explorar os seus segredos nos Amores e na Arte de Amar, parece que vem agora ajudar a fazer frente à suas contrariedades. Contudo, só aparentemente. Como afirma o próprio autor no início do poema “(…) eu sempre me entreguei ao amor / e se me perguntarem o que faço agora… pois bem entrego-me ao amor”. Carlos Ascenso André, tradutor e prefaciador da presente edição, sublinha, por isso, que Ovídio “continua a assumir a sua condição de porta-estandarte do mesmo amor que sempre apregoou e que de há muito lhe vem a nortear a vida e o fazer poético”. Sem renunciar ao carácter licencioso e erótico da sua poesia, enuncia uma série de preceitos uteis para evitar os males de amor. E, ao fazê-lo, subverte os códigos do protocolo amoroso e sexual de Roma: só a mulher é identificada com o amor e seus malefícios; o homem é sempre vítima. A mulher surge representada como detentora absoluta das regras de condução do processo amoroso. Os Remédios reafirmam, deste modo, “o direito da mulher à livre fruição do seu corpo, o seu direito ao prazer, o seu direito à escolha do parceiro de relação (…) semelhante ao do homem, em quem a sociedade contemporânea do poeta via o exclusivo na liderança do protocolo amoroso.” LAE Quetzal
James Baldwin
Um Outro País
Romancista, ensaísta, poeta e ativista dos direitos civis, foi, com Gore Vidal, um dos mais lúcidos espíritos críticos que a América produziu no século XX e um dos seus maiores intérpretes. O romance Um Outro País, publicado em Portugal no ano em que se celebra o centenário do seu nascimento, centra-se numa teia complexa de relações entre quatro casais, dos quais dois inter-raciais e um homossexual. Cada uma das personagens procura, à sua maneira, encontrar o verdadeiro amor para além dos conflitos de raça, sexo e género enraizados na sociedade norte-americana. Preconceitos que, através da persistência no tempo, se interiorizaram, inscrevendo-se no corpo e na mente de todas elas. Face a tão poderosos obstáculos, o fracasso do amor (o tema principal da obra) torna-se inevitável. À beira do desespero, os protagonistas entregam-se a uma espiral de desejo, agressão, sexo e traição que apenas contribui para reforçar o seu trágico sentimento de solidão e de angústia. Em pano de fundo, o peso hostil de Nova Iorque com as suas “torres orgulhosas e ávidas antenas”, sem “noção das exigências da vida humana”, “cidade sem oásis, virada inteiramente (…) para o lucro.” LAE Alfaguara
Anne Carson
Eros – Amargo e Doce
“Foi Safo quem primeiro chamou a Eros ‘amargo e doce’. Ninguém que se tenha apaixonado a contesta. Que significam essas palavras?” Neste seu primeiro livro, a poetisa, ensaísta, tradutora e classicista Anne Carson procura uma resposta para a questão paradoxal da divindade do prazer se apresentar como “um ser ambivalente, ao mesmo tempo amigo e inimigo”, de se traduzir numa experiência que causa uma simultaneidade de dor e prazer. Eros -Amargo e Doce foi imediatamente considerado um ensaio lírico comparável aos de Séneca, Montaigne ou Emerson. A obra diluiu as fronteiras entre antigo e contemporâneo, entre ensaio e poesia, e moldou a produção futura da autora, definindo as teorias sobre o desejo que inspiram a sua poesia, estabelecendo o processo de conceber os seus escritos a partir de textos clássicos gregos. O ensaio produz uma investigação sobre a natureza paradoxal do amor a partir da Grécia antiga, evocando referências da poesia, filosofia, literatura, história e psicanálise ao longo dos séculos, e apurando que “todo o desejo humano se equilibra num eixo de paradoxo, ausência e presença são os seus polos, amor e ódio as suas energias motrizes.” LAE Edições 70
Fábio da Silva
As 100 Maiores Curiosidades Sobre o Cosmos
Eis um livro de divulgação científica escrito por um autor que não é cientista nem astrónomo, mas prefere intitular-se como um astronauta da curiosidade. Fábio da Silva é um curioso insaciável, apaixonado pelo Universo e pela divulgação dos seus segredos. É um jovem de 33 anos formado em Jornalismo e Ciências da Comunicação, que exerceu funções de Direção Criativa. O seu gosto por comunicar materializou-se no Projeto Universo Perpendicular que usa as redes sociais para apontamentos de divulgação científica e só no Instagram conta com cerca de 90 mil seguidores. O seu livro, como o título indica, não pretende ter um fio condutor ou defender uma visão da evolução do conhecimento científico, mas através dos exemplos e histórias selecionadas dá uma boa contribuição para explicar, numa linguagem acessível e quase sempre com uma dose de humor, alguns dos princípios fundamentais e descobertas atuais do conhecimento científico sobre o universo de que fazemos parte. Espaço-tempo, teoria das cordas, ou coisas aparentemente simples como a razão do universo ser escuro ou das estrelas cintilarem, tudo é tema para a sua curiosidade. TCP Oficina do Livro
Conceição Evaristo
Olhos d’água
Um livro de contos pode ser uma boa porta de entrada para o universo de uma escritora. De uma assentada, a Orfeu Negro editou Olhos d’água e Canção para ninar menino grande, de Conceição Evaristo, afro-brasileira de 77 anos, mulher negra e ativista. O primeiro reúne 15 pequenas histórias com um denominador comum: não existem finais felizes, mesmo que, por vezes, até se vislumbrem laivos de esperança. Estas vidas – que são sobretudo de mulheres negras, cheias de mazelas, mas ainda assim, mulheres fortes – estão carregadas de dor e de pobreza, de violência e de morte, de sonhos desfeitos e de injustiças. No entanto, em cada uma delas, há também uma resistência até ao fim… mesmo que esse fim seja logo ali. Conceição Evaristo, que nasceu numa favela, se tornou intelectual e publicou o primeiro livro aos 44 anos, alinha palavras e frases de forma tão solta que estas parecem mesmo ter som, numa escrita-oralidade carregada de sotaque brasileiro. Depois de Olhos d’água, escrito há já 10 anos, vale a pena seguir para o romance, a sua obra mais recente, de 2022, onde narra a história de um homem e das muitas mulheres conquistadas por ele ao longo da vida. GL Orfeu Negro
Gonçalo Salvado
Luminea
“Quando a Luz do Meu Corpo me Cega, verdadeira gramática, quase uma enciclopédia do amor, obra simultaneamente complexa e de uma simplicidade mágica, junta num mesmo sortilégio palavra e imagem”, escreve a crítica de arte e poeta Maria João Fernandes que prefacia a obra. Luminea reúne uma seleção de poemas de Gonçalo Salvado e de desenhos de Siza Vieira, retirados do livro Quando a Luz do Teu Corpo me Cega, em versão bilingue português/braille. Compõem este livro poemas com o tema da luz no contexto amoroso, recorrente na obra do autor. A sua poesia, “ritual do amor, nas infinitas variações amorosas da palavra”, alimenta-se, recorrendo de novo a Maria João Fernandes, “dos diversos afluentes, temas dos outros livros do autor, a poesia e os textos de amor ancestrais e da grande tradição do lirismo, do Cântico dos Cânticos, de Safo, Ovídio e Omar Khayyam a Camões, Bocage, Leonardo Coimbra, Florbela Espanca, Pablo Neruda, Octavio Paz, Paul Éluard, Herberto Hélder, António Ramos Rosa e David Mourão-Ferreira, entre muitos outros”. Poesia valorizada ainda pela eloquente depuração das linhas de Siza Vieira. Duas serigrafias, numeradas e assinadas pelo arquiteto/artista, acompanham esta edição, impressas pelo Centro Português de Serigrafia (CPS), de Lisboa. LAE RVJ Editores
Teolinda Gersão
Autobiografia não escrita de Martha Freud
“Sou apenas figurante numa narrativa alheia, já escrita e considerada perfeita, vigiada dia e noite com uma devoção quase religiosa por uma multidão de pessoas que a assumem, propagam e defendem, sem permitir qualquer alteração (…)”. Neste romance, Teolinda Gersão resgata a figura de Martha Freud, casada com o célebre psicanalista Sigmund Freud, “silenciada e reduzida ao estereótipo de esposa, mãe e dona de casa” até 2011, data de publicação das suas cartas de noivado (“As cartas que trocávamos pareciam-me ‘um romance em episódios’, com os seus altos e baixos, peripécias e reviravoltas”). Através da interpretação desses documentos, a autora procura descobrir e dar voz à personalidade real de Martha. A protagonista tenta compreender quem foi, “na verdade, nas suas qualidades, mas também nos seus erros e falhas”, o homem por quem se apaixonou, na medida em que “saber quem é o outro é também saber quem fomos sendo, na relação com ele. Saber quem amei, e como, é também descobrir a minha própria face”. O livro, belíssima afirmação e revelação de uma identidade (“Além de Martha Freud, sempre tinha sido, e continuava a ser, Martha Bernays”), é também uma ampla e profunda reflexão sobre as múltiplas conexões entre memória, palavra e pensamento. LAE Porto Editora
Miguel Szymanski
A Viagem do Oligarca
Naquele que é o terceiro livro que Miguel Szymanski dedica a Marcelo Silva, jornalista especializado na investigação de crimes de colarinho branco, acompanhamos a vinda a Portugal de Oleg Porovich, um oligarca detentor de uma das maiores fortunas do mundo. A sua missão: derrubar o governo português com a ajuda, entre outros, do Ministro da Defesa. A acompanhar a mulher Jemima na promoção do seu livro, é durante a viagem inaugural dum comboio comprado por Oleg que Marcelo Silva vê a sua vida sofrer novo contratempo, depois de Oleg o ter “envenenado” e convencido a sua mulher a deixá-lo. Sem entender o que aconteceu, Marcelo resolve procurar Jemima, envolvendo-se numa densa trama que envolve alguns dos seus antigos colegas do curso de Direito, nomeadamente um antigo administrador da TAP, entretanto assassinado, e alguns traficantes e pescadores ilegais do bairro da Trafaria. Considerado “o grande representante do romance de natureza política”, pelo escritor Miguel Real a propósito do segundo thriller da série Marcelo Silva, O grande pagode (2020), Miguel Szymanski volta a criar um romance que transcende a natureza dos policiais. SS Bertrand Editora
Maria Filomena Mónica
Viagem de Inverno
Existem pelo menos três invernos para onde somos reenviados ao longo destes artigos, acompanhados de introdução, ensaio e epílogo, quase todos publicados nas revistas Atlântico e Sábado, e nos jornais Correio da Manhã, Expresso, Meia-Hora e Público. Aquele que inspira o título do livro diz respeito aos poemas musicados por Schubert, da autoria de Wilhelm Müller (Winterreise, a Viagem de Inverno original). Mais significativo é talvez pensarmos na estação como correspondendo à idade de Maria Filomena Mónica, que de alguma forma se despede dos leitores no final, refletindo sobre as possíveis últimas palavras que proferiria. As citações escolhidas, denotando igualmente forte sentido de humor, vão de “Nascer entre brutos, viver entre brutos e morrer entre brutos é triste”, de Rodrigo da Fonseca; “Vou fazer falta” de Fontes Pereira de Melo; ou “Isto dá vontade de a gente morrer”, de Alexandre Herculano. E chegamos ao Inverno mais significativo, e que preenche o maior número de páginas do livro, aquele que corresponde ao descontentamento da autora em relação ao nosso país, que afetuosamente critica com o rigor dos exemplos provenientes da investigação na área da sociologia, que desde cedo a alertaram para as grandes desigualdades da nossa sociedade. RG Relógio D’Água