O Musicbox chegou à anti-maioridade

A sala de espetáculos do Cais do Sodré celebra 18 anos com cinco dias de concertos

O Musicbox chegou à anti-maioridade

Nasceu diferente de todos em volta e assim continua 18 anos depois. O Musicbox resiste no Cais do Sodré como ponto de encontro para quem gosta de música – e é de todas essas ligações que se faz a programação preparada para estes dias. De 4 a 8 de dezembro, há vários concertos, a mostrar que, por aqui, se permanece irreverente e responsavelmente irresponsável.

Havia o Oslo, o Copenhaga, o Liverpool, o Roterdão, o Hamburgo, o Tokyo e o Jamaica. Cada bar e discoteca do Cais do Sodré estava batizado com o nome de uma cidade ou país – até que, em 2006, debaixo do arco sobre o qual passa a rua do Alecrim, o Texas deu lugar ao Musicbox. Naquele armazém do século XIX com paredes e teto de pedra, abria-se uma caixa de música, com concertos e sets de djs. Nestes 18 anos muito mudou por ali, mas no número 24 da Rua Nova do Carvalho, o espírito mantém-se o mesmo: organizar encontros entre pessoas, promovendo a música ao vivo e trazendo talentos emergentes e nomes consagrados nacionais e internacionais.

Este ano, a celebração é feita com cinco dias de concertos e clubbing, de 4 a 8 de dezembro. Por lá passam B Fachada e Romeu Bairos; Fidju Kitxora e Elida Almeida; Suzana e Mynda Guevara; Dealema e Azia; Black Bombaim e Pedro Alves Sousa; Jasmim, A Sul e Gorjão; e o Conjunto Cuca Monga; assim como o DJ Fantasia, o DJ set da Tabanka Records com Mama Demba, o DJ set de Hip Hop Sou Eu e o DJ set de Lovers & Lollypops, com artistas como Xavbeatz, Soundpreta, João Gomes, Lady G Brown, Mike Stellar, King Kami e A Missa do Papi. Uma programação feita de cruzamentos por este ser um espaço que sempre os incentivou. “É o que fazemos há 18 anos: proporcionar encontros. E encontros ao vivo, o que é muito importante. Tem sido a nossa história e, por isso, pegámos nesta lógica para a celebração”, explica Gonçalo Riscado, diretor da CTL – Cultural Trend Lisbon, a estrutura de produção por detrás do Musicbox.

Quando há um ano lhe perguntaram se a sala do Cais do Sodré estaria preparada para a maioridade, Gonçalo disse que não. Hoje, ri-se quando voltamos à mesma pergunta. “Continuamos a não estar prontos, porque se a maioridade significa responsabilidade, o Musicbox deve continuar a ser irresponsável e a ser irreverente, deve continuar a arriscar. Isso é que faz sentido e também é isso que traz esta longevidade. Fomo-nos mantendo fiéis àquilo em que acreditamos, sem ir em modas ou sem nos rendermos a soluções que nos descaracterizassem. E isso, se calhar, é um anti-maioridade, não é? No sentido de não pensarmos que fizemos uma construção e que agora podemos viver à sombra do que fizemos ou tornar as coisas muito sérias. A nossa luta é manter o Musicbox irreverente e sustentável.”

Aldeia gaulesa

Longe vão os tempos em que, num Cais de Sodré de má fama, Gonçalo Riscado e Alex Cortez, músico dos Rádio Macau, passaram em frente à porta fechada do Texas Bar e tiveram a ideia de ali criar um lugar de música ao vivo, no espírito dos saudosos Rock Rendez-Vous e Johnny Guitar. Em dezembro de 2006, o Musicbox abriu, pela primeira vez, com um concerto dos 1 Uik Project, de Lil’ John e Kalaf, e começou a atrair os amantes da música e todo um público que antes se ficava pelo Bairro Alto.

Aos poucos, as ruas foram ganhando outros ritmos e vivências, muito por causa da programação quase diária que era organizada. “Desde o início, havia a ideia de poder ter uma estrutura que fizesse vários projetos em diferentes áreas artísticas, tendo o Musicbox como o pulmão que sustentava e unia as coisas. Muito rapidamente fomos fazendo outras coisas, como os Musicbox Club Docs para a RTP, o Lisboa Capital da República Popular, o Festival Silêncio, que era um acontecimento de partilha a partir da palavra e que criava uma união entre quem frequentava, vivia e trabalhava na zona do Cais do Sodré”, recorda Gonçalo Riscado, sublinhando o quão importante é existir uma estrutura sólida por detrás da sala de espetáculos que se financia através de vários projetos e sem apoios públicos – um deles, há de voltar a nascer no próximo ano, no Beato: a Casa do Capitão, pensada para ser um espaço com atividade regular em várias áreas artísticas, de dia e de noite.

Ao longo destes 18 anos, o Musicbox conseguiu resistir às contrariedades: sobreviveu à pandemia, graças à solidez da CTL e ao posterior aumento do turismo, tal como tem sido imune à especulação imobiliária, uma vez que o edifício pertence à produtora. “Em 2006, conseguimos um bom crédito bancário e adquirimos o prédio. É a única razão pela qual não tido pressão para sair, como tem acontecido noutros espaços”, confirma Gonçalo. “Quando fomos para ali, a zona não era habitacional, mas sim de comércio em decadência ou encerrado, de escritórios fechados e de vida noturna. Houve um novo fôlego com o Musicbox e com a recuperação de outros espaços que trouxeram uma movimentação de pessoas muito interessante. Havia uma altura em que a grande maioria das pessoas que trabalhava no Musicbox vivia no Cais do Sodré. Havia tantas casas disponíveis, que passou a ser um bairro habitado e com imensa atividade. Mas, tão rápido foi essa movimentação quanto o processo de gentrificação”, conta.

Hoje, em plena “rua cor-de-rosa”, o Musicbox é uma espécie de aldeia gaulesa em pleno império romano, rodeado de bares e discotecas mais virados para o turismo. “O excesso de turistificação faz com que o Musicbox se sinta como um espaço resistente, mas para nós continua a fazer sentido estar no centro. É com alguma tristeza que assistimos ao que acontece naquele bairro, pensando no que podia ter sido e no que se está a tornar”, afirma Gonçalo Riscado.

“Lisboa não tem conseguido olhar para a animação noturna nem regulá-la para a proteger. Continuo a ter dificuldade em perceber como, nos anos 20 do século XXI, não há um pensamento estratégico sobre a vida noturna de uma cidade. Estes lugares são os pontos de encontro principais das pessoas, são fundamentais para as dinâmicas culturais da cidade, para as comunidades se juntarem, para a cena local florescer. Isto é importante para quem vive na cidade e também para quem está de visita e não quer vir para uma cidade morta ou uma cidade museu ou uma cidade de vida barata como único atrativo. Atualmente há muito mais espaços e muito mais diversidade, mas tudo isso está a ser empurrado para periferias. É como se houvesse uma promessa de que esta cidade pode representar uma série de coisas, mas depois se dificulta a sua concretização. E o Cais do Sodré é um paradigma disto tudo.”

Mesa farta

Quem passa a porta debaixo do arco, encontra, quase diariamente, um cartaz pensado ao detalhe. Para Gonçalo Riscado, é importante não perder essa regularidade. “Acredito que devemos combater a sazonalidade da agenda cultural. Nada contra festivais, mas a cidade não pode estar refém deles. Têm de existir pontos de encontro, de debate, de programação de música, cinema, teatro… Só assim conseguimos construir comunidade ao longo de todo o ano.”

Parte da equipa da CTL – Cultural Trend Lisbon, a estrutura de produção por detrás do Musicbox ©Manuel Rodrigues Levita/CML-ACL

 

O Musicbox tem sempre um calendário preenchido e, lá dentro, tanto podemos encontrar artistas a dar os primeiros passos como outros já consagrados. Devem ser poucas as bandas de música ou cantores e djs que aqui não tenham atuado. Nesta morada, têm cabido todas as pessoas que gostam de música – as que a criam, mas também as que a seguem ou as que vêm à descoberta. Por isso, na newsletter que anuncia estes dias de festa, a jornalista Joana Canela escreve: “O aniversário do Musicbox é como uma mesa farta cheia de amigos. Arranja-se sempre espaço para mais um nesta sala (…). Nesta grande família cabem os primos do hip-hop, o tio do techno, os filhos do rock e todas as futuras e atuais gerações, nichos, coletivos, grupos de amigos e pessoas singulares. Até o turista pode vir jantar connosco. No menu musical, o buffet sempre a escaldar com novos pratos, ora mais modernos e ousados, ora mais tradicionais. E aquela sensação de provar algo nunca degustado: aquelas apetitosas primeiras vezes. A verdade que ninguém conta é que as seguintes são ainda melhores.”

Nestes 18 anos, muito pode ter mudado e muitos de nós podemos ter crescido (e envelhecido), mas o Musicbox continua ali para nos lembrar que podemos ser eternamente anti-maiores.