Joana Barrios

"Através da comida podemos falar de tudo, portanto, como não utilizar este veículo?"

Joana Barrios

Mulher dos sete ofícios, Joana Barrios desdobra-se em muitas coisas: desde livros de receitas a apresentação de programas - seja no A La Barrios, no 24Kitchen, ou no Super Swing e Princesas e Doentes, que divide com André E. Teodósio, no Canal Q. Integra ainda a companhia Teatro Praga e tem uma paixão por moda. Todos estes universos se cruzam no Ciclo de Comidas, que apresenta em janeiro no LU.CA e que é dirigido aos mais novos, outro mundo que conhece bem, já que a maternidade é o maior dos seus projetos.

Como surgiu esta parceria com o LU.CA?

A primeira vez que falámos sobre este projeto foi há dois anos. A ideia materializou-se no ano passado, com três pequenos vídeos chamados Ficções Coolinárias, criados para as plataformas digitais do LU.CA, e que abordavam o tema dos doces tradicionais de Natal. Começámos com os sonhos, as rabanadas e o bolo-rei para contar uma história que não é necessariamente estanque, que se vai construindo. Cada vez que praticas alguma coisa que é tradicional, podes acrescentar-lhe a tua camada de intervenção sobre isso. Este Ciclo das Comidas é o culminar de uma coisa muito bonita surgida quando, através do universo da gastronomia, me tornei uma pessoa muito mais visível. Isso coincidiu com o momento em que a minha filha mais velha começou a fazer introdução alimentar e surgiram uma série de constatações muito práticas, que também partiam das minhas inquietações. O facto de eu ter o pensamento mais condicionado e forjado para o lado artístico teve uma influência muito grande.

E de repente começaste a ser associada à culinária…

O meu marido convenceu-me a explorar este universo das receitas de uma forma que fosse pública e que tivesse uma certa utilidade. Porque a comida tem mesmo a ver com o sentimento de partilha, de comunhão, de criação de laços… começou por aí e culminou com Nhom Nhom, o meu primeiro livro de receitas. Nhom Nhom são as onomatopeias do prazer e esse livro está todo construído em torno de uma herança gastronómica que tenho e que não sabia ter um potencial tão interessante. De repente, fazer caldeirada, ensopado de borrego ou sopas de tomate para dar a uma criança, como as avós faziam antigamente, tornou-se uma coisa enorme e começou a ocupar uma parte ainda mais central da minha vida. Percebi, com a pediatra dos meus filhos, que isso era uma prática pouco comum porque há uma camada de conveniência que surge na nossa alimentação mais contemporânea, que tem a ver com a introdução dos ultraprocessados. Esse lado da degradação alimentar é uma coisa que me preocupa. Isto tudo eram coisas que eu não sabia que poderiam ser transformadas noutros objetos: livros, espetáculos, programas de televisão. Não tinha consciência de que era, de facto, um campo de oportunidades.

O ciclo inclui uma exposição, uma oficina, um podcast, uma sessão de contos, um espetáculo e uma leitura encenada. Foi fácil encontrar as pessoas certas para integrarem este projeto?

Grande parte da escolha está intimamente ligada a este percurso. Por exemplo, na sessão de contos temos o Paulo Pascoal, que já tinha feito parte das Ficções Coolinárias; o Tiago Miranda, que também participa na sessão de contos, é um artista que aprecio imenso e que tem muitos filhos, portanto é uma pessoa que está perto da infância; a cenografia e a imagem estão comissariadas à Margarida Alfacinha, uma artista de quem gosto muito e que também tem um traço muito especial. Existe uma particularidade muito interessante na Margarida, porque é pintora, e a pintura enquanto atividade física também é uma coisa muito interessante que as crianças continuam a gostar de explorar. A Patrícia Azevedo Silva, curadora do ciclo de conversas, é alguém com quem tenho muitos anos de relação, não só de amizade, mas de intercâmbio de conhecimento e experiências, sempre relacionadas com comida, comunidade e maternidade; o Rogério Nuno Costa faz os podcasts comigo, é um artista performativo que há muitos anos anda a brincar com a comida, e havia uma vontade muito antiga de trabalhar em conjunto; a Cristina Taquelim contava histórias na Biblioteca Municipal de Beja, onde cresci. Quis proporcionar a mais crianças a hipótese de ouvirem histórias contadas por uma pessoa que marcou para sempre a minha forma de ouvir uma história. O espetáculo também tem a participação da Rita Blanco, que faz o papel de uma mãe abstrata, mas está ali a servir esse propósito muito importante. A minha experiência de infância é extraurbana, é mais rural, especialmente a minha ligação à gastronomia, que vem de uma forte ligação com a terra, com o campo. Portanto, estas coisas nunca deixam de ser extremamente autobiográficas.

Mostrar às crianças que cozinhar (e comer de forma saudável) pode ser divertido é um desafio?

Pela minha experiência pessoal não é um desafio, é uma prática quotidiana. Quando somos crianças, possuímos uma curiosidade latente e inata que nos faz querer descobrir imensas coisas. E comer na infância, pelo menos nesta experiência que eu tenho com os meus filhos, é uma coisa muito aventureira. Podemos viajar através da boca, que é uma cavidade que manda imensa informação para o cérebro e isso é um campo imenso de oportunidades. É importante desmontar a ideia do que é saudável e do que não é, de como é que se come… à medida que pesquiso e mergulho no universo da alimentação, mais coisas vou descobrindo que não têm um significado único. Há muitas camadas de informação e de conhecimento e há muitas coisas que convergem para isto. E através da comida tu podes falar de tudo, portanto, como não utilizar este veículo?

Os teus filhos foram uma grande fonte de inspiração para este projeto?

É uma resposta bastante óbvia [risos]. Peço-lhes opiniões. Vou fazendo, vou mostrando e vou dando para ler, e eles são muito críticos, obviamente. A dada altura, nas nossas vidas, esquecemo-nos da nossa criança interior. Deixamo-la num sítio qualquer e, de repente, já não sabemos brincar, já não sabemos divertir-nos, mas continuamos a poder fazê-lo. Mesmo sendo adultos e tendo um trabalho sério, não podemos deixar que isso desapareça. Devíamos manter a capacidade para rir, para descobrir, para nos contentarmos com coisas simples.

Com fome, ninguém é simpático

Os figurinos também são da tua responsabilidade. Afinal, há alguma coisa que não saibas fazer?

Tantas coisas [risos]. Os figurinos funcionam como um prolongamento daquilo que queremos dizer no espetáculo. Não esquecer que faço parte do Teatro Praga e venho dessa escola. Não ter oportunidade de intervir nessa linha discursiva extra, seria uma grande tristeza. Na possibilidade de poder refletir um bocadinho sobre isso, achei que me apetecia também fazer. Nem sequer pus a hipótese de pôr outra pessoa a fazer figurinos.

A comida tem um papel determinante na tua vida. Como surgiu esta paixão?

Passei mais de metade da minha infância sentada à mesa em jantares e almoços de família e de amigos dos pais. Depois, os meus pais tiveram um restaurante, por isso esta parte também me marcou e alterou completamente a minha visão sobre a alimentação, acima de tudo, porque sempre gostei de comer e sempre tive uma relação excelente com a comida. Lembro-me perfeitamente da primeira vez que comi um ultraprocessado. Não gosto de refrigerantes, não bebo. Gosto de doçaria tradicional portuguesa, gosto de coisas afogadas em gemas, açúcar e frutos secos. Quando viajo gosto de provar iguarias locais. Lembro-me de ser miúda e de poupar dinheiro para ir comer a um restaurante especial. Também tenho muito presente coisas como hortas, conhecer fornecedores, ir apanhar fruta, ir ao mercado… conhecer o senhor Malagueira, o talhante que tratava do fornecimento da carne para o restaurante dos meus pais…

Essa experiência foi fundamental?

O senhor Malagueira ensinava-me a maior parte das coisas e tenho essas memórias muito próximas. De repente havia um adulto que tinha paciência para aturar uma miúda com 11 ou 12 anos, e de explicar como é que se fazia o corte da carne. Isso foram tudo coisas muito importantes, porque acabaram por me ajudar mais tarde. O conhecimento que se vai adquirindo à medida que vamos crescendo tem uma serventia. Portanto, ajuda-nos a escolher melhor, a ser mais conscientes. É conhecimento, no fundo.

No A La Barrios, no canal 24kitchen, todos os pratos que fazes parecem fáceis e divertidos, mas a correria do dia-a-dia nem sempre permite olhar para a cozinha dessa forma. Qual é o truque para enfrentar os tachos nos dias mais cansativos?

Chama-se organização. É fazer produção, mas com comida e em casa. Normalmente organizo as semanas de acordo com as coisas que já sei que vou ter para fazer. E, como não trabalho num escritório, consigo perceber o que é que vai acontecer na minha semana e trabalhar com antecedência. Faço uma grande panelada de sopa, que depois vou desdobrando, e vou alterando as coisas que estão lá dentro a boiar. Faço uma grande comida de tacho, que sei que vai dar para duas ou três refeições na sua forma original, e que depois se pode desmultiplicar noutras tantas. Assim, quando encomendo do talho ou da peixaria, já tenho um plano. Nos dias mais intensos de trabalho, temos tendência a alimentar-nos pior e isso tem implicações muito claras. Ficamos mais cansados e rabugentos. Com fome, ninguém é simpático. O truque é ter um processo otimizado, é uma questão de organização. Nos programas de culinária as coisas já vêm em tacinhas, tudo cortado e descascado. Isso chama-se mise en place na gíria técnica dos restaurantes. Se fizermos mise en place em casa, primeiro sujamos tudo, deixamos tudo desorganizado. Deixa-se tudo em tacinhas, limpa-se a tábua, a faca, as cascas e depois, quando vamos para o fogão, já está tudo ali, já não há aquele caos. Quanto mais organizada for a operação na cozinha, melhor. Isto são tudo coisas que aprendi no restaurante.

“Devíamos manter a capacidade para rir, para descobrir, para nos contentarmos com coisas simples”

Há algum prato ou ingrediente difícil que tenhas levado os teus filhos a gostar?

Temos uma espécie de regra: só se pode não gostar de uma coisa. São coisas muito parvas. A minha filha, por exemplo, não gosta de amêndoas sem pele. O meu filho não gosta de queijo flamengo. Se lhe deres um queijo de ovelha, cheio de cardo, daquele tipo Nisa, que pica, perfeito. Gostam acima de tudo de experimentar. Gostam do ritual, da experiência, e nós temos uma brincadeira: o clube dos pequenos críticos gastronómicos. Se formos a um sítio diferente estimulamos sempre os miúdos a comentar o prato, a tentar perceber o que é que tem, perceber a que é que sabe, se sabe bem ou mal. Desmontamos um bocado o processo, eles fazem parte da crítica e da conversa.

Moda, alimentação e teatro são algumas das tuas grandes paixões. Conseguirias escolher alguma?

Tendo consciência daquilo que é possível fazer e de que a alimentação é um palco que permite explorar todas as outras áreas, acho que escolheria a alimentação porque, na verdade, é possível estar a cozinhar e vestirmo-nos de acordo ou em desacordo com o que vamos cozinhar. Quando estou a organizar uma receita vou à lista de ingredientes e penso numa série de temas para abordar. O alho, a cebola, os brócolos, a folha de louro, tudo tem uma origem, um significado, não sei quantas linhas discursivas, portanto, acho que a comida tem esse sentido. Consegues reunir todos esses mundos com a comida.

Pergunta dos 50 mil euros: qual é o prato preferido de Joana Barrios?

Isso é muito fácil. É doce e é uma coisa obscena que se chama Fidalgo e que precisa de 64 ovos para confecionar. É genial, é perfeito, é muito bom. E o que eu mais aprecio no Fidalgo é que requer três ou quatro formas de trabalhar os ovos e o açúcar. A receita é muito pobre em ingredientes, são dois, três ingredientes, mas transformados através de várias técnicas, portanto isso tem muito interesse. É maximal, minimal, uma coisa forte. Poucos ingredientes, resultados máximos. Falando de pratos salgados, o borrego assado no forno ou ensopado de borrego. Borrego realmente é uma coisa extraordinária. É maravilhoso e é muito complexo no sabor, é delicado, é nutritivo e tem essa quantidade de linhas discursivas que eu também aprecio imenso, e faz-me lembrar um monte de coisas boas. Lembra-me casa, convívio, a mesa em frente à lareira no restaurante dos meus pais, onde se almoçava, mas também se conheciam pessoas, onde conheci o Teatro Praga, por exemplo, e onde conheci pessoas que, de alguma forma, marcaram muito as minhas escolhas e percursos.

O que tens planeado para 2025?

Temos os 30 anos do Teatro Praga, que regressa ao [antigo hospital] Miguel Bombarda. Para mim é muito bonito, não só porque faço parte da companhia, mas também porque, obviamente, é um espaço que me diz muito, tem esse lado também afetivo muito bonito até porque a primeira vez que trabalhei com o Teatro Praga foi ainda no Miguel Bombarda. Não sei como é que vai ser voltar àquele sítio, que, entretanto, reabriu [como Jardins do Bombarda]. E, depois, tenho imensas coisas para fazer, mas não sei se posso já dizer…

Mais livros de receitas?

Será? Não sei [risos]…