entrevista
Mário Coelho
"O meu trabalho no teatro está muito associado à infância, a um tempo em que somos totalmente livres porque não temos grandes inibições"
O cinema foi o seu primeiro amor, mas é no teatro que se afirma. No ano em que passa uma década desde a estreia da sua primeira criação, É possível respirar debaixo de água, Mário Coelho leva ao palco da principal sala da Culturgest Quando eu morrer, vou fazer filmes no inferno!, muito provavelmente o projeto mais ambicioso e, seguramente, o mais pessoal do artista, ou não fosse assumidamente dedicado a Odília Coelho, sua mãe. Estreia a 23 de janeiro.
A propósito de um outro espetáculo, assumias encarar o teatro como um espaço de criação pleno de liberdade. A liberdade é o gatilho essencial para criar?
Sim, claro. Acima de tudo, vejo o meu trabalho no teatro muito associado à infância, um tempo em que somos totalmente livres porque não temos grandes inibições. Dou quase sempre o exemplo de crianças a brincar que transformam uma caixa num castelo e um pau numa espada para matar o dragão. Procuro muito comunicar com esse tempo, e isso faz-me fazer as coisas da forma mais livre possível, sem ter de corresponder às ideias de ninguém, senão às minhas e, naturalmente, das pessoas com quem trabalho.
Essa liberdade vinca-se também num lado muito pessoal…
Acho que é a forma de me confrontar com temáticas como a mortalidade, o oblívio, a perda, a passagem da infância para a idade adulta. Esta ideia da mortalidade está sempre muito presente, chega a constranger-me no dia-a-dia e afeta-me particularmente à noite, porque a cabeça não para…
Porquê essa fixação com a morte em alguém ainda tão jovem?
Houve vários momentos na minha vida que me fizeram contactar com a morte. A minha mãe faleceu prematuramente, quando eu tinha oito anos, e isso foi o catalisador da minha vida, que estabeleceu um antes e um depois. A ausência, a perda e o luto levaram-me a procurar uma forma de lidar com isso, por isso, coloquei-me num lugar de silêncio e de plena escuta, uma criança que observava os outros. Isso fez-me ganhar uma grande paixão pela matéria humana…
E terá sido esse o estímulo para te tornares artista?
Penso que sim. Até porque criar é, também, uma forma de comunicar com a minha mãe. Inconscientemente, nos meus espetáculos, estão sempre presentes figuras maternas e pessoas que, embora sendo já adultas, procuram voltar a ser crianças.
Sei que o cinema foi a tua primeira paixão…
Costumo dizer que o cinema me salvou a vida e, particularmente, um filme – À procura de Nemo [de Andrew Staton, 2003]. Lembro-me de vê-lo e pensar: “eu não sou o único a perder a mãe, isto existe no mundo, outras pessoas passam por isto”. Ajudou-me muito a encontrar forma de lidar com a dor e o luto. Mas, antes disso, já havia o gosto pelos filmes, e inevitavelmente isso está muito ligado ao que vivi com a minha mãe e àquilo que tanto nos uniu: os filmes que víamos juntos. Era muito novo e recordo uma coleção de VHS que saía com a revista TV Guia, penso que chamada qualquer coisa como “os filmes da nossa vida”. Foi assim que descobri um filme que, embora a minha mãe tenha referido não ser adequado para a minha idade, vi às escondidas e me fez apaixonar pelo cinema: Beleza Americana [de Sam Mendes, 1999].
O que te fascinou?
Naturalmente não percebia muito bem o que estava a ver, mas aquela sucessão de imagens, aquelas personagens e as histórias paralelas, o casal protagonista, a filha, os vizinhos… acho que foi ali, ao ver tudo aquilo, que nasceu a minha paixão pelo cinema.
E como é que o teatro aparece na tua vida?
Não tinha grandes referências no teatro. Morava na zona de Alverca e, entre Vila Franca de Xira e Moscavide, locais onde cresci, não havia propriamente o mesmo acesso que se tem em Lisboa. Por isso, o teatro entra na minha vida apenas na Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), à qual fui parar porque queria fazer cinema, depois de ter feito Humanidades e julgar ter poucas hipóteses de entrar…
Portanto, era cinema que pretendias estudar…
Queria fazer o curso de Realização mas, a dada altura, estava a ver um filme e percebi que não me bastava criar imagens – eu queria estar dentro das imagens! Por isso, entrei na ESTC para o curso de Teatro – ramo de atores, apenas porque aquilo que pretendia verdadeiramente era ser um ator de cinema.
Logo no final do curso, surge o primeiro projeto em nome próprio. Como é que isso sucedeu tão prematuramente?
Eu tinha um texto que escrevi especificamente para 12 atores, pessoas do meu ano de curso, mas que não pretendia, de modo algum, ser eu a dirigir. Não queria fazê-lo porque sentia haver gente muito mais bem preparada para isso. Fiz vários convites, deixando apenas a exigência de serem esses 12 atores a interpretá-lo, já que aquele texto era uma carta de amor àquelas pessoas em concreto. O certo é que acabei por ser eu a encenar a minha primeira peça, É possível respirar debaixo de água [2015], num espaço do Martim Moniz, a Manteigaria. E menos de dez anos depois, estou a estrear a minha décima criação…
Precisamente. E, a julgar pelo título, será esta a tua peça mais cinematográfica?
Progressivamente, acho que as minhas criações vão estabelecendo uma ligação mais estreita com o cinema. Parece que me tenho aproximado cada vez mais dessa busca, procurando perceber como é que o teatro e o cinema se podem fundir e podem dialogar.
Aquilo que se pode ler na sinopse de Quando eu morrer, vou fazer filmes no inferno! parece remeter para o cinema de género, com uma mulher ameaçada, surpreendida por dez estranhos que lhe invadem a casa…
Sim, este espetáculo tem uma forte ligação com os temas do obscuro, do mistério, da assombração e da ameaça. Queremos, para já, que tudo se mantenha o mais críptico possível, mas posso avançar que este é, também, um espetáculo sobre relações altamente íntimas, altamente tóxicas. E também sobre a própria criação artística, no caso, sobre o cinema português num futuro próximo…
E é dedicado à tua mãe…
Uma das razões que me levou a fazer este espetáculo foi um diário que a minha mãe escreveu. Antes de falecer, percebi que ela estava a passar por uma grande depressão, falando recorrentemente da sensação de se sentir observada e de poder ser atacada a qualquer momento. Esta ideia do grupo de estranhos que entra pela casa adentro foi uma forma de materializar o estado de ansiedade em que vive alguém que sente que a qualquer momento algo de muito mau pode acontecer. Como o público depois irá perceber, esta situação de ansiedade vai concretizar-se fisicamente, como um cancro. Para além disso, uma das personagens tem o nome da minha mãe e há a invocação de um conjunto de figuras da minha família.
Este projeto acontece no momento certo?
Na verdade, ando há uns seis anos a tentar fazê-lo. Era para ser a minha quinta criação e vai ser a décima. Claro que esta é para aí a 40.ª versão do texto. É um espetáculo que necessita de uma equipa muito grande, tem 12 pessoas no elenco, e a força dele deve-se também a elas.
Um elenco com muitos dos artistas que costumam trabalhar contigo e alguns estreantes, como por exemplo a Lúcia Moniz…
Não é por estarem comigo, mas são um elenco de sonho. Para já, há as pessoas que começaram comigo, e das quais digo sempre que falar do meu trabalho é também falar da Cléo Diára, da Ana Valentim, da Rita Rocha Silva ou do Pedro Baptista. Depois, estou pela primeira vez a trabalhar com pessoas que adoro como a Alice Azevedo e o Leonardo Garibaldi, que para além de ator é também o produtor do espetáculo. Quanto à Lúcia Moniz… reservei para ela a figura, digamos, central e primordial…
A “mãe”, a figura materna?
A personagem da “mãe”, a Otília – tem o nome da minha mãe, mas não é a minha mãe –, levou-me, pela primeira vez, a trabalhar com alguém fora da faixa etária do grupo. E o certo é que a Lúcia trouxe uma grande frescura tendo levado, de repente, o espetáculo para um lugar que eu não pensava de antemão.
Como é que escolheste a Lúcia Moniz?
Foi a intuição de que era a pessoa certa. Já tinha falado algumas vezes com ela aquando de Anima [2022], um projeto do Pedro Batista, em que ela esteve para entrar. Não sei se por causa de O Amor Acontece [filme de Richard Curtis, 2003] [risos], sempre tive pela Lúcia uma grande empatia e carinho, embora não nos conhecêssemos pessoalmente. O certo é que havia de haver um encontro meu com ela e, quando por fim aconteceu, pareceu que já tínhamos estado juntos várias vezes. A verdade é que a Lúcia veio mexer no bom sentido com a dinâmica do grupo, e eu não poderia estar mais feliz por ser ela a fazê-lo.
Em 2021 recebeste o Prémio Revelação Ageas/Teatro Nacional D. Maria II. Estar hoje a poucos dias de estrear um projeto teu numa instituição como a Culturgest também se deve a isso?
Os prémios ajudam sempre qualquer coisa e esse, especialmente, permitiu que começassem a surgir as coproduções com instituições como o CCB ou a Culturgest, ou o apoio da Direção-geral das Artes (que só aconteceu à minha oitava criação), e até a atenção da imprensa… até aí, trabalhávamos à bilheteira, naquele regime de ensaios à noite com as pessoas a virem de outros trabalhos, e muito raramente nos atendiam o telefone quando procurávamos apoios. Embora reconheça ser um privilegiado, é sempre bom quando sabes que há quem te esteja a observar e a reconhecer um percurso, quanto foi preciso lutar e trabalhar para encontrar um lugar. Mas, os prémios não solucionam tudo e problemas como a falta de dinheiro e de meios persistem na atividade artística. Por isso, e como sempre, a luta continua.