Na primeira pessoa

A autoficção ou o "eu" dos artistas nas suas criações

Na primeira pessoa

Se é verdade que os artistas sempre se mostraram nas suas obras, em autobiografias, autorretratos ou outras manifestações do “eu”, hoje, talvez mais do que nunca, a autoficção está presente em várias criações artísticas de diferentes áreas: livros e músicas recentes, exposições que aí vêm, filmes e peças de teatro. Ouvimos alguns criadores, à procura do que os move. Para ler de seguida, em discurso direto.

Carolina Deslandes, Tatiana Salem Levy, Raquel Castro, Catarina Mourão e Lou Vives contam como a sua arte se reflete em manifestações do “eu”.

Carolina Deslandes

Cantora e compositora

Foi quando saiu o disco Praticamente, de Sam the Kid, que Carolina Deslandes percebeu que música queria fazer. Hoje, as suas letras falam das suas conquista e derrotas, dos seus amores e desamores e daquilo que a incomoda e alegra. A 24 e 25 de janeiro, sobe ao palco do Coliseu, ao lado de Diogo Clemente, seu ex-marido e pai dos seus filhos, no espetáculo Eu e Ele.

“Esse lado mais autobiográfico, que aparece muito no rap e aparece sem vergonha, foi inspirador para mim, porque não havia constrangimento em abordar fosse o que fosse. Todos os artistas que verdadeiramente influenciaram a minha vida e pelos quais me apaixonei são autobiográficos. Senti que esse era o meu compromisso com a minha música: dizer a minha verdade. Quando fazemos música assim, inevitavelmente falamos das nossas coisas boas e das nossas coisas mais difíceis – e ninguém quer sentir que está sozinho nas coisas mais difíceis. Mesmo que não esteja a cantar sobre uma coisa que me aconteceu, estou a ser mensageira de um assunto que me preocupa. Fazer estas canções foi fundamental para me conhecer e para conseguir dar o passo de fazer música mais interventiva. Não posso ser uma mulher em 2024 e não ser feminista. Sinto que nós, mulheres, estamos a acordar partes da nossa vivência e infância, do nosso dia-a-dia e estamos a sentir necessidade de ser vocais sobre isso e de incluir isso na arte que fazemos. As coisas dão-nos vergonha até percebermos que não são só nossas, que aos outros também acontece aquilo. A música e a arte são, cada vez mais, um exercício de aproximação ao outro: ‘anda aqui, que vou dizer-te que isso não faz de ti uma pessoa esquisita ou um perdedor’.”

Tatiana Salem Levy

Escritora

No seu livro mais recente, Melhor Não Contar, Tatiana Salem Levy fala da mãe e da sua morte prematura, do padrasto e do assédio de que foi vítima, e de vários outros episódios que a marcaram. Este mês, voltará à escrita, só não sabe ainda de que livro: se um de pura ficção que vem escrevendo há 10 anos, se outro, mais pessoal, que se pode interpor no caminho.

“Me escrever é uma tentativa de me colocar na escrita, mas não só: me colocar no mundo, elaborar os acontecimentos pela escrita. Mas essa Tatiana da escrita é sempre uma outra Tatiana, uma Tatiana tornada literatura. Do meu eu vai para o eu da leitora e do leitor e entre esses dois eus tem um terceiro, que é a literatura e que torna tudo universal. Quando se passa para texto, de alguma forma, ficciona-se. O ato de contar já é um distanciamento do acontecimento. Esse boom da autoficção toca muito as pessoas. É um toque de uma sensibilidade e de uma emoção, que talvez as pessoas estejam precisando neste mundo tão acelerado. A literatura resiste a esse tempo e proporciona uma experiência temporal diferente onde está incluído tudo o que não dá tempo de viver. É também um gesto comunitário, tal como este movimento feminista. A Vista Chinesa e Melhor Não Contar são livros que não existiriam fora dessa vaga em que as mulheres começaram a se expor mais, a falar mais de si e das violências que sofrem. A gente se sente apoiada, como aquela frase no Brasil que diz ‘ninguém solta a mão de ninguém’. Embora a gente se reconheça na tradição literária, até aqui tínhamos a ideia de que as histórias já tinham sido todas contadas. Quando decidi ser escritora tinha esse fantasma. E, de repente, percebemos que muitas histórias ficaram por contar ou, então, foram contadas, mas não nessa página da grande literatura: eram contadas nos ambientes domésticos, nos diários, nos sussurros. O que tem de diferente agora é a transformação dessa escrita de si em literatura.”

Raquel Castro

Atriz e encenadora

São várias as peças de teatro em que Raquel Castro parte das suas experiências pessoais para criar ficções. A mais recente, As Castro, estará em Lisboa de 8 a 18 de maio, na Sala Estúdio Valentim de Barros dos Jardins do Bombarda, que o Teatro Nacional D. Maria II ocupa durante 2025.

“Como espectadora e como leitora, desde há muitos anos que sou atraída por trabalhos de pendor mais autobiográfico ou autoficcional. Quando os meus espetáculos partem de uma inquietação minha, sinto que há uma chama inicial que se mantém e que, no final, falam mais comigo. Há uma tensão que se cria quando é dito ao público que aquilo a que vai assistir tem esse ponto de partida. As pessoas ligam-se de uma maneira diferente. Quando começo os meus espetáculos a dizer ‘Olá, o meu nome é Raquel…’, tento que esse contrato seja honesto, porque isso cria no espectador uma expectativa. Às vezes a parte ficcional é mais óbvia, outras menos. Existe um processo criativo em que as coisas são muito escavadas e trabalhadas, para conseguir que de uma história individual se chegue a uma história mais coletiva. Ando muito em torno da domesticidade e da família, da maternidade, das mulheres, temas que são comuns a uma grande maioria das pessoas. É preciso deixar que o processo nos conduza e que haja uma liberdade poética e criativa por cima daquilo que são os nossos pontos de partida. Isso pode levar-nos por vários caminhos e por cima disso podem existir muitas camadas. Até porque a memória também é uma ficção, são coisas que contamos a nós próprios. É verdade que os pontos de partida são autobiográficos, mas a partir do momento em que se escreve e se põe uma personagem em palco, aquilo não sou eu. Estou a fazer de mim, mas é uma persona criada para aquela situação.”

Catarina Mourão

Realizadora

Nos filmes A Toca do Lobo (2015) e O Mar Enrola na Areia (2019), Catarina Mourão parte de imagens de arquivo pessoais para contar histórias: a do avô que nunca conheceu e a de um personagem que vagueava nas praias e vivia da caridade dos banhistas. Este ano, depois de estrear uma curta ficcional rodada nos Açores, e de filmar uma longa também de ficção, há de começar outro projeto a partir dos cerca de 600 diapositivos do pai que encontrou numa caixa.

“Há sempre um momento no percurso artístico em que as pessoas se voltam para questões que as inquietam e têm mais a ver com o seu percurso e biografia. Se calhar porque ganhamos uma certa confiança e não temos tanto medo da exposição, ou porque não vemos isso como um gesto narcísico. As pessoas já não têm esse pudor: assumem muito mais o seu olhar sobre as coisas. É aquilo que melhor conhecemos e que mais podemos aprofundar. E esse trabalho de aprofundamento – parece paradoxal – mas é fundamental para a universalidade, para que chegue ao outro. O perfurar da superficialidade tem a ver com isso. É preciso perceber quando é que se passa de um filme caseiro que só interessa à família para outra coisa, torna-se necessário identificar quais são as inquietações mais profundas que ali estão. Aí conseguimos tocar mais as pessoas e somos mais originais também. Se não, entramos num cliché do “eu, eu, eu” e das recordações e dos natais e das festas de aniversário. Esse processo sobre o arquivo torna-se muito interessante, porque não basta só escarrapachá-lo, é preciso trabalhá-lo.”

Lou Vives

Artista plástico e músico

Ritmos y Poemas é a primeira exposição individual de Lou Vives, patente de 16 de janeiro a 5 de abril, na Kunsthalle Lissabon. Partindo de uma performance com bateria, aborda as “noções de memória, poética queer e efemeridade”. Entre as várias peças, estão litografias, um mural e uma cassete chamada “a minha voz antiga”.

“Nos últimos anos, tenho explorado muito a relação entre verdade e ficção, onde se situam essas fronteiras e como são percecionadas. Agrada-me a ideia de que quem vê ache que a realidade pode ser ficção e a ficção pode ser realidade. Esta exposição em Lisboa é quase toda uma espécie de diário do que vivi este último ano e tem muito a ver com uma exploração de identidade e queerness e de uma relação de distância de uma pessoa que cresceu em Lisboa, mas que tem pais espanhóis e agora vive na Holanda. Utilizo a minha biografia e as minhas coisas como material plástico, mas a verdade é que nos podemos interrogar que trabalho não tem a ver com a subjetividade do seu autor. Os meus processos passam muito pela criação de um arquivo, que pode ser um diário ou um arquivo contemporâneo, que vou explorando. Interessa-me também a fluidez do sujeito e uso no meu trabalho pessoas que ouço na rua, livros que estou a ler, vídeos que vi no Tik Tok, fazendo uma colagem de tudo à minha volta. Nunca tive outra forma de pensar, é aí que encontro a energia, o desejo e a vontade de fazer. O impulso de criar é a partir de mim. É a única forma que tenho de encontrar beleza nas coisas.”