entrevista
Margarida Cardoso
"Contar a história do ponto de vista de um escravo não faz sentido porque não me sinto sequer com legitimidade para tal."
Banzo marca o regresso de Margarida Cardoso ao continente africano para contar uma história ambientada no início do século XX. Filmado em São Tomé e Príncipe e Portugal, o filme relata a luta de um médico português, protagonizado por Carloto Cotta, que parte do Congo para uma plantação de cacau numa ilha tropical africana, com o propósito de curar um grupo de serviçais “infetados” pelo "banzo", a nostalgia dos escravos que os leva à morte por inanição ou suicídio. Conversámos com a cineasta sobre o filme que chega às salas de cinema a 23 de janeiro.
Foi a pesquisa para o filme Understory (2019), sobre o cacau, que inspirou a realização de Banzo. Porquê este interesse pelo cacau?
No meu processo de criação coloco-me sempre num caminho, que às vezes é mesmo um caminho físico, de pesquisa. Coloco-me numa posição onde as histórias me encontram. Durante o Understory, onde escolhi pesquisar sobre a planta de cacau, passei muito tempo em São Tomé. Comecei pela ligação do cacau com Portugal, interessei-me pelas questões da mão-de-obra, da posição inglesa em 1905 relativa a essa mão-de-obra, e fui a muitos arquivos em Inglaterra, Portugal e São Tomé. Aí, aquele local, com as ruínas das roças, é uma espécie de portal para um passado que parece muito distante, mas não é.
E como é que isso levou a esta outra história?
O tempo colonial, as plantações, a escravatura, estão muito presentes na memória das pessoas de São Tomé e fazem tanto parte de uma paisagem interior como exterior. Depois, nos arquivos tive a possibilidade de aceder a coisas que não entram na historiografia oficial. Temos em Portugal um arquivo de uma roça gigantesca que pertencia a Francisco Mantero e onde estavam guardados pequenos bilhetes dos capatazes e também, algo muito interessante, os relatórios médicos, uma coisa muito quantitativa, que documentava as doenças, as pessoas que morriam, as que saíam, as que entravam. Chamou-me a atenção a existência daqueles hospitais e de haver um esforço tão grande na manutenção da saúde daquelas pessoas, que acontecia não só para ser civilizacional, mas tinha também um lado mais sinistro, por ser uma espécie de “garagem” para manter a mão de obra bem oleada. Daí surgiu a ideia de criar qualquer coisa baseada nisso. Primeiro, deparei-me com a ideia de nostalgia, e depois com a palavra “banzo”, que estava associada à forma como aquela ilha está suspensa e à ideia de suicídio como uma coisa que humanizava, e nessa altura era inimaginável que as pessoas africanas tivessem essa agência sobre si próprias.
De que forma filmar em São Tomé e Príncipe foi inspirador para a narrativa?
Os filmes partem sempre de um sítio e acho que este local era essencial. A Sara Carinhas (que interpreta a Luísa, mulher do administrador da plantação) referiu uma coisa curiosa num podcast: disse que filmar em São Tomé e Príncipe era como se entrássemos no filme naquela época e nunca saíssemos de lá. É por isso que gosto muito de experimentar os espaços, não só como inspiração, mas também porque podem trazer alguma coisa para o que é filmado, para aquilo que se capta na altura.
O sofrimento dos escravos leva-os, compreensivelmente, a desistir de viver. Afonso, médico ocidental e protagonista, percebe a origem do problema, mas pouco consegue fazer. Porque decidiu contar a história da perspetiva deste homem que tem como missão curar os escravos?
A história é essa mesmo: um homem contemporâneo, branco, encurralado numa situação. Porque o sistema colonial enredava toda a gente. Não sei se quantitativamente podemos medir o sofrimento destas coisas, e, claro, há moralmente uma grande responsabilidade da parte de quem explora. Há muitas zonas cinzentas, não é preto e branco, porque há várias pessoas que estão encurraladas. Para mim, contar a história do ponto de vista de um escravo, por exemplo, não faz sentido porque não me sinto sequer com legitimidade para tal. Pode ser contada, mas não por mim. Este personagem branco também não foi criado com a intenção de ser um white savior, porque as pessoas na realidade não vão para lado nenhum, são enviadas por “nós” brancos para um sítio onde ficam para sempre, aquele barco que os leva e onde ainda hoje andam à deriva. Acho que, a haver um white savior, é a Luísa, a mulher do administrador…
É certo que a Luísa parece-nos até certo ponto incomodada com a crueldade da vida no local, mas, quando regressa a Lisboa, leva consigo uma das serviçais negras, obrigando-a a abandonar os filhos menores. Quando pensou nesta personagem tinha como objetivo revelar esta ambiguidade, onde até os que parecem bons são capazes de atos extremamente cruéis?
Sim, acho que no filme há um marco que tem a ver com a própria narrativa. Inicialmente vimo-la só como uma senhorita que percebe haver sofrimento, que há violência, que não quer que se fale de determinada maneira porque é cruel, mas mais tarde vai-se revelando, demonstrando aquilo que, no fundo, é. Por isso afirmei que ela é o típico white savior. Ela acha que está a fazer o bem, mas quase tudo lhe escapa. Se é uma personagem cruel? É cruel, mas é também de uma ambiguidade total e era isso que queria explorar: a falta de sensibilidade. Não se pode dizer que ela realmente queira fazer mal, bater ou chicotear… Acho que o filme tenta colocar-nos nesse lugar que é muito incómodo, porque quando vemos pessoas a chicotear outras, a cometerem atos de violência, não nos identificamos com isso. Mas, quando vemos este tipo de falta de sensibilidade, percebemos que todos a temos um bocadinho, porque há sempre um lado dos outros que nos escapa.
Todas as personagens estão de alguma forma assombradas pela angústia e sofrimento que se vive na plantação. Até a fotografia do filme, a cor, espelham tristeza e dor. Foi intencional transmitir esta desesperança ao espectador?
O filme é pouco colorido, pode até dizer-se que é monocromático. Há muitos verdes, é quase tudo verde. Por isso, sim, quis jogar com isso e com a paisagem, com os nevoeiros, com a chuva. Metade do filme passa-se à chuva. Com o que se vê, com o que se ouve, porque são coisas que se colam ao corpo. Também porque tenho essa relação com São Tomé, acho deslumbrante, mas não é um sítio que me apazigue de todo, há qualquer coisa no lado telúrico daquela floresta que é tão forte que, não sendo ameaçador, é inquietante.
Os administradores das plantações tinham necessidade de retratar o local como um sítio civilizado. Faziam-no obrigando os escravos a posar para fotografias que davam a ideia de que eram felizes e bem tratados. Sente que, ao fazer este filme, está de alguma forma a desmascarar esta tentativa de ocultação da História?
Trabalho há muito tempo estas questões coloniais e a fotografia, na altura, era muito usada no sentido de construir uma realidade. Apesar de haver o lado de encenação, também era usada como prova ou verdade. Quis jogar com isso. Mas, para mim, a questão da fotografia tem mais a ver com o que acontece no final, quando o fotógrafo, Alphonse, interpretado pelo Hoji Fortuna, é incentivado pelo médico a captar o estado real daquelas pessoas e diz que o mal é difícil de fotografar e que temos de dar uma ajuda. Também nesse aspeto a fotografia, como elemento que depois vai ser mostrado no Ocidente, tem de ter uma certa linguagem. O objetivo era fazer uma reflexão sobre essa possibilidade de representar a verdade. Isso também tem a ver com o próprio gesto do filme. Foi muito difícil encontrar uma linha, uma fronteira entre aquilo que se pode mostrar ou não, a forma como se pode representar a violência ou não. Nunca fui uma pessoa que gostasse de estar no centro das coisas mais violentas, gosto mais da violência em ecos, daquilo que sentimos. Toda essa reflexão sobre a fotografia ou o registo, tem a ver com o próprio filme que tenta, no fundo, mostrar ou representar a violência da melhor forma possível. A questão é: qual é essa forma? Não saber, desconhecer esses limites, é algo que leva a uma reflexão muito interessante.
As questões coloniais têm, de facto, estado muito presentes nos seus filmes. Porquê o enfâse na temática?
Não sei bem, não tenho uma agenda, mas sou sempre atraída para o tema. Às vezes penso que é por haver um lado um bocadinho aventuroso. Este é também um filme de aventuras, ou de pessoas que estão numa viagem. Sou muito atraída por isso, o que me leva por caminhos que estão ligados ao passado. É o tipo de território de que gosto ou com que me sinto próxima. Depois tem a ver com um certo território, uma certa paisagem. Não me sinto, por exemplo, atraída se me disserem que vamos fazer este filme aqui em Lisboa. Fico logo aflita porque jogo muito com as paisagens, com as pessoas contra as paisagens, com o estar fora. Depois há também a ligação com o que vivi em pequena, esse tempo colonial. Quem vive esse tempo, mesmo que se seja muito pequenino, fica sempre com uma “sensação”… Como diz a Luísa no filme: “não imagina a velocidade com que a gente se habitua às regras deste lugar, deste sistema”. Eu ficava, quando era pequenina, um pouco assustada, não propriamente com os meus pais, mas com o que via à volta. Tínhamos vindo de uma provinciazinha portuguesa, chegávamos ali e habituávamo-nos a ter aqueles senhores que nos serviam e isso, mesmo para uma pessoa muito jovem, tem qualquer coisa de estranho. Depois ficas sempre, de alguma forma, a tentar desconstruir aquilo.
Embora a violência do passado pareça absurda, continua a perpetuar-se nos dias de hoje. É nesse sentido que considera este filme uma “história contemporânea”?
Sim, porque o sistema de exploração é exatamente o mesmo. No século XX, por volta de 1915 e 1917, estes sistemas começam a acabar e entramos exatamente no mesmo sistema de “uberização” que temos hoje. As pessoas deixam de ser contratadas e dão-lhes a liberdade de ter um pedaço de terreno, elas ficam com o poder ou com a ideia de que têm agência sobre si próprias e são ainda mais exploradas. Esse sistema foi criado nessa altura, logo a seguir ao sistema das plantações e é incrível que ainda hoje seja o mesmo. Tentei sublinhar isso no filme quando o médico, o Afonso, vai falar com o curador dos serviçais e ele diz que os agentes que “importam” pessoas estão sempre a mudar de nome e de sítio, nunca sabe quem são ou onde estão. É exatamente o que se passa hoje: muda-se a localização das companhias, muda-se os nomes das empresas… Depois, há outro lado contemporâneo, que tem muito a ver com a personagem interpretado pelo Carloto, que diz respeito às pessoas que têm uma certa noção do que se está a passar, mas são completamente impotentes. Aparentemente têm agência sobre si próprias mas, na realidade, não têm. Isso é o retrato do que muitos de nós são hoje, sem julgar, porque também eu me sinto nessa situação.