entrevista
Paulo Ribeiro
"Prefiro que música e coreografia caminhem lado a lado como dois seres que se entendem"
Sediada em Cascais desde 2013, a Companhia Paulo Ribeiro está, nas palavras do seu diretor, a ganhar um novo fôlego. Prova disso é a chegada ao Centro Cultural de Belém para três apresentações de Maurice Accompagné, primeira de três peças coreográficas que Paulo Ribeiro cria(rá) sobre outros tantos períodos relevantes da história da música.
Este projeto do coreógrafo tem início nos começos do século XX, juntando composições de Maurice Ravel (1875-1937) e Luís de Freitas Branco (1890-1955), e prolongar-se-á num segundo momento pelo século atual, para terminar revisitando a década de 1960.
Gostava de começar pelo título: Maurice Accompagné, título bonito, musical, poético, sugere intimidade. Que importância dá ao título das suas criações e o que disso determina ou é determinado pelo trabalho coreográfico?
Sempre achei que é preciso ter muito cuidado com os títulos, porque tenho a sensação de que um bom título, um título otimista, que abra perspetivas, pode dar uma boa peça. Um título pessimista pode ter o efeito contrário. É uma coincidência, mas tenho sentido isso ao longo dos tempos. Aqui é um título óbvio porque é o Maurice [Ravel] acompanhado pelo Luís de Freitas Branco. De facto o título possui uma musicalidade e além disso precisamos de títulos que nos levem para a frente, e a palavra “companhia” é importante, uma vez que em termos sociais andamos cada vez mais distanciados, mais fechados em nós próprios. Sobre a questão de condicionar ou não a coreografia, posso dizer que muitas vezes dou os títulos e esqueço-os durante o processo de criação. Esta peça é muito debruçada sobre as ideias do século XX, a dança do século XX, aquilo que caracterizou o início deste período: a ligação com o corpo, o encontro do corpo, a verdade, uma febre de quebrar barreiras e normas. Normalmente não gosto de fazer coreografias em cima da música; prefiro que música e coreografia caminhem lado a lado como dois seres que se entendem e têm uma cumplicidade enorme, mas que são autónomos. Desta vez, quis mesmo trabalhar em cima da música, com deferência para com a música, e que a coreografia fosse nesse sentido.
Até aonde pesquisou as biografias de Luís de Freitas Branco e de Ravel e quanto dessa informação enforma este espetáculo?
Começou por ser a intenção inicial, mas acabou não sendo esse o caminho. Claro que tenho conhecimento de acontecimentos ou peripécias, de factos que estão por trás da vida destas pessoas, por exemplo: ambos tinham uma vida facilitada por pertencerem à alta burguesia e faziam música sem terem a sobrevivência como preocupação. Interessou-me particularmente o tipo de dança que se praticou no início do século XX, aquela dança ritualista, muito ligada à terra e a um corpo forte quase tribal, um corpo animal. Fixei-me mais neste caldo cultural que caracterizava as artes deste tempo, a questão surrealista, o expressionismo, a questão da liberdade que foi um vetor muito importante na inspiração e na construção da coreografia.
Muitas pessoas da sua geração tiveram o primeiro contacto com a música de Ravel através da cena do Bolero dançado no filme de Claude Lelouch, Uns e os Outros (Les Uns et les Autres, 1981). Passou-se o mesmo consigo?
Eu não entrei no filme, mas dancei essa peça à volta da mesa, com o Jorge Doon no topo, quando foi feita no Théâtre Royal De La Monnaie de Bruxelas. Estava na escola do Maurice Béjart. O filme veio depois, bastante depois. O Jorge Doon era magnífico no Bolero de Ravel, mas também houve a Shonach Mirk ou a Maya Plisetskaya, entre as interpretações femininas muito interessantes. Esse Bolero de Ravel marcou-nos a todos, não tanto pelo filme, mas pela própria música.
Maurice Accompagné é parte de uma trilogia que se deslocará ainda para os anos 1960 (reunindo Joly Braga Santos e Benjamin Britten) e para a presente década, que juntará a música de Louis Andriessen com a de Luís Tinoco. Que critérios seguiu para agrupar estes três pares de músicos, portugueses e estrangeiros?
Construí este programa em conversa com o Luís Tinoco, a quem manifestei a vontade de ligar três períodos da música: início do século XX, meados do século XX, e o princípio do século XXI. Fomos falando e fechámos os três momentos do programa. Ele fez-me descobrir algumas peças de Ravel e de Freitas Branco. Neste ano de 2025 não seguirei a ordem cronológica do programa: começarei com o início do seculo XX, em seguida apresentarei a peça que diz respeito ao século XXI, com uma composição original do Luís Tinoco e música do Louis Andriessen, que será estreada no Festival de Dança de Cannes, com a Orquestra de Cannes. Só depois concluirei com os anos de 1960.
O compromisso para a criação destes três trabalhos coreográficos sugere que a Companhia Paulo Ribeiro se encontra num período de estabilidade relativamente aos seus parceiros no mecenato. A Companhia ressentiu-se de alguma forma no período em que deixou a direção artística da mesma para abraçar outros projetos [Companhia Nacional de Bailado (CNB) e, depois a Casa da Dança, em Almada]?
A Companhia ressentiu-se muito, porque tratando-se de uma companhia de autor, o meu trabalho deveria ter estado mais presente. Foi muito tempo. Na CNB só estive dois anos, porque demiti-me. A São Castro e o António M Cabrita faziam, na Companhia Paulo Ribeiro, enquanto diretores artísticos, um mandato DGArtes de quatro anos, tendo ambos ficado de 2016 a 2021. Nesses cinco anos não fiz praticamente nada na minha Companhia. Em 2021, criei uma peça para assinalar os 26 anos, mas com recurso a coprodutores à parte. Seguiu-se a minha saída de Viseu, a instalação da Companhia em Cascais, e sinto que estamos, agora, a ganhar um outro fôlego.
O eixo franco-belga ainda representa o vetor mais relevante da criação contemporânea na dança europeia, ou outros países vieram juntar-se-lhes ou assumir uma posição de maior importância?
Penso que não. O que acontece em França é que hoje temos o Festival de Avignon a ser dirigido por um português [Tiago Rodrigues], tal como sucede com a Maison de la Danse de Lyon [Tiago Guedes], que são estruturas com uma importância enorme no país. Sobre a questão do olhar que os programadores têm em relação a nós, criadores, diria que os franceses são os mais operantes, os que mantém uma curiosidade e uma relação mais profícua com Portugal. A Bélgica parece ter-se apagado um pouco, mesmo os seus criadores que de algum modo desapareceram: o Alain Platel do [les ballets] C de la B parece ter parado; o Jan Fabre foi interditado de coreografar; a Anne Teresa De Keersmaeker parece ter-se fixado em reposições das suas peças. Quanto a Portugal, temos uma nova geração de coreógrafos fantásticos, da nova e da novíssima dança, de uma criatividade e de uma linguagem muito fortes, que são de facto incontornáveis. Está a acontecer a mesma coisa em África, com coreógrafos africanos que estão a descolar, e no Brasil também, o que faz descentralizar o fenómeno da Dança.