Perpetuar Carlos Paredes

Testemunhos a celebrar o músico em ano de centenário

Perpetuar Carlos Paredes

Mestre da guitarra portuguesa e músico incomparável, Carlos Paredes deixou um legado que inspirou várias gerações – não só de músicos, mas de artistas das mais diversas áreas. No arranque das celebrações do centenário de Paredes, um coreógrafo, um músico, dois realizadores, uma artista visual e um escritor dão o seu testemunho sobre o grande responsável pela divulgação e pela popularidade da guitarra portuguesa.

O coreógrafo Vasco Wellencamp, o músico Bernardo Moreira, a dupla de cineastas João Pedro Rodrigues/ João Rui Guerra da Mata, a artista visual Susana Anágua e o jornalista e escritor Luís Osório celebram a genialidade de Carlos Paredes nas suas próprias artes.

Vasco Wellencamp

Coreógrafo e antigo bailarino

“O Carlos era um homem bom”. É assim que Vasco Wellencamp recorda o mítico guitarrista, com quem trabalhou na peça Danças para uma Guitarra, em 1982, que estreou na Fundação Gulbenkian. O bailado era coreografado por Wellencamp e musicado ao vivo por Carlos Paredes: “ele foi o primeiro músico popular a atuar na Gulbenkian. Tivemos os espetáculos sempre esgotados”.

Passaram mais de 40 anos, mas o coreógrafo lembra-se bem: “era uma pessoa muito marcante. Era encantador, os bailarinos adoravam-no”, recorda. Habituado a trabalhar com rigor e precisão, o antigo bailarino rapidamente percebeu que, com Paredes, seria também um desafio: “ele improvisava muito e a dada altura tivemos de pôr alguma ordem”, diz com um sorriso. “Ele ‘viajava’ enquanto tocava, não cumpria os tempos. É muito difícil dançar com música ao vivo por causa dos tempos, mas os bailarinos adaptaram-se muito bem”.

Wellencamp conta que o músico encontrou um método para não se perder: “tinha uma cartolina com a ordem das peças e cada uma correspondia a uma janela, que ele ia fechando. Um dia, estávamos a apresentar o espetáculo no Brasil e uma das janelas fechou-se e abriu outra vez e ele não parava de tocar a mesma peça, o que provocou grande confusão entre os bailarinos. Eu estava na plateia e fiquei muito nervoso, mas felizmente o público não deu por nada”, conta entre risos.

Vasco Wellencamp continua a coreografar para a Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo, que fundou em 1998 com Graça Barroso, e ocupa os seus dias a ler e a pintar.

Bernardo Moreira

Contrabaixista

Bernardo Moreira era muito novo quando, por mero acaso, tocou com Carlos Paredes: “no início dos anos [19]90 conheci-o num concerto no Teatro Rivoli, no Porto. Ele tocou na primeira parte e o quarteto do Mário Laginha, onde eu estava, na segunda. Por sugestão dele tocámos todos juntos no final. Ele era de uma amabilidade extrema”. Na altura, Bernardo era um jovem contrabaixista obcecado por Miles Davis, mas esta “experiência maravilhosa e inesquecível” viria a dar frutos anos mais tarde com o álbum Ao Paredes confesso (2002), “um diálogo imaginário que estabeleci com ele através da música, uma espécie de primeira viagem”, afirma.

Em 2021, gravou Entre Paredes, que viria a receber, no ano seguinte, o Prémio Carlos Paredes. “Sempre soube que, mais tarde ou mais cedo, iria fazer esse regresso a casa. Este disco é uma espécie de conclusão do meu namoro com Carlos Paredes – que dura há 30 anos – e remete mais para o universo da música portuguesa, enquanto o primeiro é mais assumidamente de jazz. O desafio foi, sem desvirtuar a música dele, criar uma espécie de diálogo entre nós”.

O ano ainda vai no início e a agenda de Bernardo Moreira já se prevê preenchida: este mês irá gravar o segundo volume do projeto Sul (que partilha com Luís Figueiredo e Bernardo Couto) e está a preparar um disco seu. Tem também vários concertos marcados: “nunca me farto. Ora estou a tocar com a Cristina Branco algures no mundo, ora com o Mário Laginha, ou com os meus próprios projetos. Isso dá-me o prazer de estar sempre a fazer coisas sem a monotonia da repetição”, conclui.

João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata

Realizadores

Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes Nem Depois (2022) é uma celebração de Os Verdes Anos (1963), mítica obra de Paulo Rocha com banda sonora de Carlos Paredes. “Um dos décors do filme fica abaixo da casa onde vivemos”, conta João Pedro Rodrigues. O realizador herdou o apartamento dos avós – que viviam ali à altura das filmagens – mas nunca lhes perguntou se se lembravam desse processo. “Essa foi a semente de onde partiu o filme”, explica. A ideia foi responder à questão “o que fica quando retiramos os atores e o enredo, mas apontamos a câmara seguindo, de forma rigorosa, os mesmos planos, movimentos e tempos?”

Os cineastas decidiram então voltar aos locais onde Paulo Rocha tinha filmado, mas esvaziá-los de ficção. “Não se trata de um remake, quisemos olhar para Lisboa como ela é hoje”. A obra conta com a lendária Isabel Ruth (Ilda no filme de Rocha), “a única atriz viva do elenco. Não queríamos que ela fizesse de Ilda, mas sim de Isabel no presente”.

Para a banda sonora, trabalharam com a violoncelista Séverine Ballon: “quisemos ir buscar um instrumento acústico sem manipulações eletrónicas, para manter a ideia do Paulo Rocha e da música do Carlos Paredes. No fundo, ela faz música contemporânea, à semelhança do que o Paredes fez na época com a guitarra portuguesa. Essa foi, talvez, a grande importância que ele teve: pegou num instrumento tradicional e deu-lhe uma vida própria e um pensamento completamente diferente”, explica Guerra da Mata.

Este ano, João Pedro Rodrigues vai começar a trabalhar numa longa-metragem chamada O sorriso de Afonso. Os dois realizadores vão ainda trabalhar juntos numa curta.

Susana Anágua

Artista visual

Em 2004, a associação Movimentos Perpétuos organizou, na Cordoaria Nacional, a exposição Arte para Carlos Paredes, que mostrava a relação da comunidade artística com a obra do mítico guitarrista. A iniciativa contou com o trabalho de vários artistas plásticos, mas também de músicos, escritores e cineastas, entre outras personalidades. Uma dessas artistas era Susana Anágua, cuja participação surgiu de um convite da curadora Carla Mendes. “Algumas peças foram feitas propositadamente para a exposição, outras foram empréstimos que os curadores acharam que estavam relacionadas com a ideia de movimentos perpétuos”, explica.

Susana Anágua apresentou um vídeo chamado HACCP-23, em que mostrava o processo de formação de gelo numa máquina industrial: “uma metáfora para ‘congelar’ um determinado momento que depois volta ao ciclo novamente, já que o gelo permite fixar e desfazer logo a seguir”. A artista tinha acesso facilitado às máquinas industriais do McDonald’s, onde tinha trabalhado durante os seus tempos de estudante. “Passei uma noite inteira a desmontar a máquina até ao núcleo para filmar o processo e voltar a montar tudo novamente”.

Recorda a artista: “a água corria, levava um choque térmico e congelava imediatamente. Em segundos, as pessoas podiam ver água transformar-se em gelo branco. É uma filmagem pura, sem edição, que dura exatamente o tempo que leva a fazer o gelo”. O vídeo foi gravado sem som “para reforçar a ideia de estar sozinha com a máquina, tal como o Carlos Paredes e a sua relação com a guitarra”.

Atualmente, a artista está a preparar uma exposição em Leiria e a trabalhar numa individual que pretende apresentar este ano.

Luís Osório

Jornalista e escritor

“O Carlos que eu conheci nunca me pareceu que era vivo como nós. Dentro do seu universo, existia a música, esse mundo próprio que só a ele pertencia”. Luís Osório conta que conheceu o guitarrista ainda em criança: “o meu pai [José Manuel Osório] fundou a associação Cantar Abril, onde o Carlos Paredes tocava regularmente”, recorda. “Era uma figura absolutamente genial. Não apenas por aquilo que tocava, mas por aquilo que era. Não tinha nenhuma noção de que era genial, a consequência daquilo que fazia transcendia o seu entendimento”.

Em 2003, o jornalista e escritor foi um dos autores convidados a participar na obra Textos para Carlos Paredes. Mais recentemente, dedicou-lhe um dos seus Postais do Dia, crónica que mantém na Antena 1. “O Postal do Dia é um espaço onde muitas vezes recordo pessoas que, por um motivo qualquer, vamos esquecendo e deixam de ter o lugar que merecem. O Carlos era incrível, representa o país na sua identidade mais profunda e misteriosa”, afirma.

O autor era muito jovem quando o visitou no lar “na sua fase desprotegida. Há uma altura em que a Amália o vai ver e ele tapa a cara, porque não queria que ela o visse. E ela diz: ‘Carlos, por favor destapa a cara porque eu preciso de ver os teus olhos’. É um momento muito bonito: ali estão aqueles dois mitos, uma diva e um homem especial”, partilha.

Em 2025, o escritor vai continuar com o Postal do Dia. Em março, apresenta um espetáculo com João Gil, Que vento são estes?, no Auditório Carlos Paredes, que depois levará em digressão pelo país. Tem ainda dois livros em andamento, um da coleção A última lição de (Contraponto), bem como um novo romance.