Os livros de fevereiro

Oito sugestões de leitura

Os livros de fevereiro

Na feliz expressão de Han Kang, autora sul-coreana galardoada com o Prémio Nobel de Literatura no ano passado, o labor do escritor consiste em “espreitar para o coração das palavras”. No mês de fevereiro, elegemos oito novos livros de diversos géneros, privilegiando as vozes femininas. Obras que permitem aos leitores o acesso ao “coração” de uma infinidade de palavras.

Han Kang

O Livro Branco

O historiador francês Michel Pastoureau, um dos maiores especialistas na simbólica das cores, escreve em Branco – História de uma Cor (ed. Orfeu Negro):na sua maioria, as ideias associadas ao branco são virtudes ou qualidades: pureza, inocência, sabedoria, paz, beleza, higiene. (…) Foi também, durante muito tempo, a cor do sagrado e da sua encenação”. Simbólica poderosamente expressada neste belíssimo livro de Han Kang, autora sul-coreana galardoada com o Prémio Nobel de Literatura 2024. A obra, dedicada à memória da irmã mais velha que morreu com apenas duas horas de vida, é o livro mais autobiográfico da escritora, a história de como nasceu e cresceu no “lugar dessa morte”. A autora sul-coreana evoca tal memória escrevendo apenas sobre coisas brancas, criando um texto encantatório e fantasmático, situado entre a vida e a morte, num “intervalo em que o sono aflora junto à vigília”, num sítio invadido pela neve, “aquela fragilidade efémera, aquela beleza tão pesada e opressiva”, ou pelo sal “onde, por muito branco que seja o seu brilho, a sombra preserva sempre um certo calafrio”. Meditação dolorosa sobre o luto, busca do sagrado e da beleza, romagem “em direção à luz”. LAE Dom Quixote

Cristina Carvalho

António Gedeão, Príncipe Perfeito

Evocando a figura materna, escreve Rómulo de Carvalho em Memórias: “A minha mãe foi uma pessoa admirável. (…) O que me enleva nela não é a minha mãe mas a pessoa dela, a qual, acidentalmente, foi minha mãe”. A escritora Cristina Carvalho, autora da biografia de seu pai, podia repetir estas palavras a seu respeito. E há tanto para admirar em Rómulo de Carvalho: o professor, o historiador, o investigador e divulgador científico, o poeta (sob o pseudónimo de António Gedeão, “entidade que o duplicou por quase metade da sua vida”). “Um Homem do Renascimento. De um outro Renascimento, o do século XX”, considera-o a autora neste livro que não pretende ser uma “biografia exaustiva” nem “objeto de estudo, mas sim um espreitar documentado, embora simples, da sua longa vida”. Homem notável que, entre muitas outras, tinha a paixão pelo ensino, de “ensinar a aprender”, num país em que, como escreveu, “as coisas do ensino” suscitavam “pouco interesse”, “a não ser na exaltação de satisfazer necessidades imediatas”. Grande poeta que uniu vocação lírica e conhecimento científico: “Todo o tempo é de poesia // Desde a arrumação do caos / à confusão da harmonia.” LAE Relógio D’Água

Leonora Carrington

A Corneta Acústica

Marian Leatherby, nonagenária dura de ouvido recebe de presente uma corneta acústica a que atribui “todas as possibilidades revolucionárias”. Usando-a, apercebe-se dos planos da família: interná-la num lar. Aí, rodeada de personagens excêntricas, numa intriga que alia trama policial e cenário apocalíptico, numa era pós-atómica de crise climática, vai assumir uma atitude de rebeldia. Leonora Carrington (1917- 2011), nascida numa família abastada do norte de Inglaterra, insurge-se contra a sua classe social e abraça, aos 20 anos, o surrealismo (foi companheira de um dos seus expoentes: o pintor Max Ernst) dedicando-se à pintura, à escultura e à escrita. A Corneta Acústica, romance admirado por Luis Buñuel e Olga Tokarczuk, é uma obra singular, simultaneamente absurda e visionária, que Ali Smith, no prefácio da presente edição, caracteriza do seguinte modo: “uma visão transcendental profunda, mágica (…), uma rejeição da autoridade social e espiritual mais convencional; e uma colisão de símbolos misteriosos e por vezes teimosamente não interpretáveis, alguns oriundos da alquimia e do tarot, uma série de diferentes mitologias e tradições medicinais, juntamente com o budismo, o catolicismo romano, o folclore irlandês, a cabala e a astrologia.” LAE Antígona

Valério Romão

Mais uma desilusão

Em entrevista recente, Valério Romão refere-se ao seu livro de estreia na poesia, comparando-o à realização de um filme. Foi sendo escrito sem preocupação com o resultado, mas depois exigiu um trabalho cuidado na seleção do que ficaria no livro e fora dele, costurando, como na fase da montagem cinematográfica, este longo poema cuja separação dos versos se faz na horizontal, e indicada pelo maior espaçamento entre palavras. A ser um filme, como classificaríamos Mais Uma Desilusão? Existe no seu fluxo experimental e expressionista o vislumbre de uma narrativa, episódios de adolescência quase sem pingo de nostalgia, e de vida adulta marcada pela mesma desencanto com o país, com a gente que o habita e que o visita. Mais Uma Desilusão lê-se como a catarse de um homem branco, heterossexual, espécie acossada pelas reivindicações do puritanismo woke, que discorre em voo arrasante “qual genial pássaro / príncipe mais puro da incessante voragem.” Provavelmente para bater asas e voar para outro local fora dali. Mais Uma Desilusão é um desabafo vernacular que desarruma qualquer ideia que tenhamos da poesia, apresentada ainda como “uma caixa com as cinzas da infância”. Literatura em autocombustão. RG Abysmo

Donatella di Pietrantonio

A Idade Frágil

A Idade Frágil, da escritora italiana Donatella di Pietrantonio, explora, numa prosa económica e elegante, o clássico tema do “fosso de gerações”. Num mundo mudado, o da pós-pandemia, em Abruzzo, terra natal da autora, a jovem Amanda regressa a casa da mãe depois de uma experiência universitária mal sucedida na cidade de Milão. O clima entre mãe e filha é de total incomunicabilidade, uma relação que “devolve silêncio ao silêncio”. Amanda fecha-se no quarto e não fala. Porém, a dolorosa memória de dois acontecimentos traumáticos vai uni-las. Amanda foi violentamente atacada à noite, numa rua de Milão sem que ninguém a socorresse. A sua mãe carrega, há quase 30 anos, a recordação de um trágico crime em Dente del Lupo, num dos terrenos da família nos Montes Apeninos, que vitimou três raparigas, uma delas a sua melhor amiga. Só quando, juntas, se mobilizam por um objetivo em prol da comunidade – impedir a construção de um projeto turístico de grande escala nesses terrenos -, conseguem combater a força brutal da memória e do medo. Afinal, até “a Natureza esquece. Volta a crescer sobre por cima de tragédias e desastres”. Inspirada num crime real que abalou a Itália nos anos 1990, a obra venceu o Prémio Strega, o mais importante galardão literário italiano. LAE ASA

João Pinharanda e Filipa Lowndes Vicente

48 Artistas, 48 Anos de Liberdade

O primeiro 10 de Junho do Portugal democrático (1974) deu origem a uma das mais singulares e relevantes manifestações artísticas desse período: a realização, no Mercado do Povo, em Belém, de uma enorme pintura coletiva. Reunidos no intitulado Movimento Democrático dos Artistas Plásticos, 48 artistas (número simbólico de 48 anos de fascismo) colaboraram nessa obra. Sobre esta iniciativa, escreveu Filipa Lowndes Vicente: “Ser artista passou a ser agir, intervir, partilhar, sair à rua, participar, e fazê-lo em conjunto.” Esse notável painel, lamentavelmente destruído num incendio em 1981, foi reinterpretado 48 anos depois, a 10 de junho de 2022, no exterior do MAAT, também em Belém, por igual número de criadores, alguns deles envolvidos na obra original. A primeira pintura coletiva assinalou o fim de 48 anos de ditadura, a segunda celebrou 48 anos de democracia. Com fotografias tiradas em 1974 e 2022, este belíssimo álbum inclui ensaios de João Pinharanda e Filipa Lowndes Vicente sobre as obras, e depoimentos e entrevistas aos artistas que trabalharam nas duas pinturas. LAE Tinta da China

Rosario Raro

Proibida na Normandia

Dizia Sun Tzu que “A guerra é a arte do engano”. A partir de factos verídicos, em Proibida na Normandia, Rosario Raro dá-nos a conhecer a viagem épica de Martha Gellhorn, a única mulher que acompanhou o desembarque dos primeiros soldados na Normandia, em plena Segunda Guerra Mundial. Desafiando a ordem militar que impedia a presença de mulheres nos desembarques, a correspondente de guerra trava conhecimento com uma enfermeira, de quem se vem a tornar amiga, e consegue esconder-se num navio-hospital, chegando assim à Normandia. “Tirou a primeira fotografia aos que caíram ao mar sem chegarem a pisar a areia. Depois, ficou agachada, como se a morte só lhe pudesse passar por cima, até que a instaram a desembarcar com os demais. A primeira coisa que viu enquanto descia pela rampa foram vários jovens a explodir no ar. Sentiu uma pontada nas vísceras. Tinham viajado de muito longe só para morrer.” Casada com Ernest Hemingway, também ele na altura jornalista, Martha pede-lhe ajuda para tratar do passe de imprensa dos dois, mas só ele o obtém. Como não conseguiu autorização para estar presente no desembarque, os textos de Martha não são publicados, nem o seu trabalho reconhecido. Mais do que uma emocionante história de guerra, em que acompanhamos a queda de Hitler e as manobras de distração do “Exército Fantasma” (unidade móvel norte-americana, de dissimulação tática, concebida para enganar as tropas nazis), o livro é também um relato vigoroso da luta das mulheres pela igualdade de direitos. SS Porto Editora

p. feijó

Episódios de Fantasia & Violência

Episódios de Fantasia e Violência é um livro pequeno, que, expondo as fragilidades de quem o escreve, traz dentro uma incrível força. Escritora, investigadora e “militante da monstruosidade”, como se apelida, P. Feijó conta-nos, de peito aberto, a sua experiência de pessoa não binária. Fala de si, mas fala também de nós, os outros, que a agridem ou que não a compreendem – alguns intencionalmente, com violência gratuita, outros “sem ser por mal”, mas destruindo. Um testemunho carregado de dor, narrativa autobiográfica sobre um corpo que não encaixa na imagem de masculinidade dominante e que, procurando o seu lugar, também o afirma. “eu, feita de vulnerável. eu, toda veia e carne. eu, apneia da dor”, escreve. Com uma linguagem ao mesmo tempo poética e crua, relata como diariamente a sua existência é posta em causa e como a fantasia se torna modo de sobrevivência. “Não me peçam mais calma. Não dou mais a outra face. Não combato ódio com amor.” GL Orfeu Negro