O último ‘show’ em Paris

Andreia Bento interpreta "A Love Supreme" na Karnart

O último ‘show’ em Paris

Depois de ter feito "à volta de 250 mil shows", Bianca é despedida do peep show do bairro de Pigalle, em Paris, onde trabalha há 32 anos. A partir do seu camarim, a stripper em final de carreira oferece o último espetáculo: uma viagem intima à sua vida e ao mundo da noite. A Love Supreme, de Xavier Durringer, é a nova criação dos Artistas Unidos, em cena no Gabinete Curiosidade Karnart, a partir de 6 de fevereiro.

Na galeria principal do Gabinete Curiosidades Karnart (GCK), pouco mais de uma dezena de pequenas cabines individuais em círculo cercam o camarim de Bianca, uma dançarina de strip tease do Quartier Pigalle acabada de ultrapassar os 50. Quando cada espectador se instala na sua cabine, já Bianca está em frente ao espelho, vertendo lágrimas: os novos donos do Love Supreme, o peep show onde trabalha desde os 18 anos, acabam de a despedir – “esta adoração estúpida pela juventude, eles queriam era miúdas novas. Aliás, parece que neste negócio atinges o auge entre os 18 e os 25 anos, depois é tarde demais, dizem eles”, nota a dado momento Bianca.

Antes de abandonar definitivamente o lugar que roubou nome ao mais mítico álbum de John Coltrane – e que nem as mais jovens dançarinas nem os novos donos eslavos sabem quem é (“Não conhecemos o John Coltrane, estamos a cagar-nos para esse gajo, e se nós não conhecemos, os outros também não conhecem!”, cita-os Bianca) -, a dançarina despe-se uma última vez. Contudo, agora já não é o corpo, considerado noutro tempo “objeto de desejo”, mas a própria identidade e a memória que são postas a nu, a par do olhar pessoal sobre o mundo da noite, que mudou numa cidade também ela distante daquela que outrora terá sido.

“É muito interessante nesta peça o modo como o lugar da mulher na sociedade patriarcal é abordado, desde o objeto de desejo sexual ao eventual potencial maternal”, sublinha Andreia Bento que, além de dar corpo e alma a Bianca, assina com Nuno Gonçalo Rodrigues a encenação deste texto escrito em 2018 pelo dramaturgo francês Xavier Durringer.

Para Andreia Bento, a identificação com a protagonista de A Love Supreme foi imediatamente reforçada por partilhar com a personagem a mesma idade. “A Bianca é vítima desta ideia de que as mulheres de uma determinada idade se tornam invisíveis e descartáveis, que deixam de ser válidas”, aponta.

Para além desse olhar sobre o envelhecimento da mulher, A Love Supreme aborda questões culturais e sociais a partir das histórias e das referências culturais que vão sendo partilhadas. Com uma grande paixão pela música – com os Joy Divison e os Clash à cabeça, ao lado (claro) de Coltrane – e pelo cinema, Bianca usa a iconografia que capta através de uma cinefilia esclarecida para a sua arte – são incontáveis as menções a filmes como O importante é amar, Uma mulher sob influência e Paris, Texas, e às suas estrelas: Romy Schneider, Gena Rowlands e Nastassja Kinski.

“Independentemente das experiências de vida da personagem serem muito diferentes das minhas, a peça fala de um mundo que, de certo modo, também foi o meu. Há a memória algo glamorosa da noite de Pigalle de que ela fala e faz lembrar o Bairro Alto de quando eu era nova, com as noites do Frágil”, refere a atriz e encenadora.

“Um tour de force da Andreia”

A peça A Love Supreme chegou às mãos de Andreia Bento através da editora francesa de textos de teatro independente Éditions Théâtrales. “Por saberem dos nossos Livrinhos de Teatro [coleção de textos dramatúrgicos editados pelos Artistas Unidos, atualmente com a chancela da SNOB], enviaram-nos uma lista com peças de alguns autores franceses para saber se tínhamos interesse em publicar. Uma das peças era esta, do Xavier Durringer, de quem encenámos em 2001, ainda n’ A Capital, Bal-Trap”, lembra.

“Ao ler a sinopse, que referia qualquer coisa como Bianca, bailarina de peep show de 50 anos, despedida por não ser já considerada atraente, rentável…, disse para mim mesma ‘quero ler isto'”. Na altura, Andreia tinha completado 49 anos e quando acabou de ler a peça, confessa, “estava apaixonada pela personagem e senti que tinha de a fazer.”

Interpretar Bianca começou por comportar, desde logo, um primeiro desafio para a atriz: “Esta proximidade muito grande com o público, esta necessidade de o fazer no limite, com um elevado grau de exposição, é algo que nunca tinha experienciado na minha carreira. Acho que aos 20 anos era incapaz de fazer algo deste género, aos 30 não teria coragem para o fazer de todo, mas agora, aos 50 anos, sinto-me no melhor momento, mais consciente de mim mesma, a passar pela fase mais plena e segura da minha vida.”

Ao mesmo tempo, este é o primeiro monólogo de Andreia Bento, e logo com “um texto muito longo e exigente, tanto do ponto de vista emocional como físico”. “Para estar uma hora e meia sozinha em cena, iria precisar de quem me ajudasse criativamente na ideia do espetáculo” – e assim a atriz estendeu o desafio a Nuno Gonçalo Rodrigues, com quem havia encenado, em 2023, a peça de Frances Poet Adam.

“Eu e a Andreia somos muito cúmplices, mesmo quando não concordamos ou temos visões um bocadinho diferentes das coisas”, aponta Nuno Gonçalo Rodrigues. Sobre A Love Supreme, o também ator faz suas as palavras do autor da peça: “é quase como se fosse uma improvisação de jazz para uma atriz”. Por isso, o seu trabalho com Andreia passou por “guiar um bocadinho” a atriz “na forma como os objetos e o som se podem tornar gatilhos para a memória. A escrita do Durranger é muito real, muito crua e orgânica, o que convida a uma série de flutuações do discurso e mudanças súbitas de ambiente”, atenta.

Voltando à imagem da improvisação de jazz, Andreia acredita que, inevitavelmente, cada récita será sempre diferente, como “um caminho em construção”. Nuno crê que o grau de exigência de A Love Supreme é “um verdadeiro tour de force para a Andreia”, mas ao qual, dizemos nós, a atriz corresponde desafiando-se, minuto a minuto, neste peep show que os Artistas Unidos levam ao GCK até 15 de março.