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13 mulheres em palco pelo fim desta tragédia
“O Fim Foi Visto” chega ao Teatro do Bairro Alto
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No espetáculo O Fim Foi Visto, Teresa Coutinho tenta perceber por que razão a violência contra as mulheres sobrevive há tantos séculos. O texto que escreveu como uma distopia é, no entanto, cada vez mais atual. Ainda vamos a tempo de contrariar a História?
Não há homens à vista, apenas mulheres. São 13 e estão vestidas de preto: botas, sapatos, camisolas, calças, vestidos, todas diferentes e, no entanto, todas uma só. Um coro em uníssono, capaz de se multiplicar em 13 vozes, 13 corpos, 13 mulheres. Das suas bocas começam por sair frases-feitas que já tantas vezes ouvimos: “A mulher e a mula com um pau se cura”, “deve temer-se mais o amor de uma mulher do que o ódio de um homem”, “da mulher e do mar não há que fiar”, “do marido, a praça; da mulher, a casa”… Há gritos calados, amordaçados. E as frases continuam, quase como se fossem uma ladainha: “Dor de mulher só dura até à porta”, “mulher honrada, mulher calada”…
Teresa Coutinho juntou 13 atrizes em O Fim Foi Visto, peça que escreveu e encena, e que está no Teatro do Bairro Alto entre 25 de fevereiro e 1 de março, depois de se ter estreado no Teatro do Campo Alegre, no Porto. O texto inspira-se no livro Cassandra, de Christa Wolf, sobre o papel da mulher na História, e também no movimento da Caça às Bruxas entre os séculos XV e XVIII e na vivência das mulheres pelo mundo ao longo dos tempos. “Quando comecei a ler sobre as perseguições da Caça às Bruxas percebi como teve tanta influência na forma como hoje nos comportamos em sociedade”, conta a atriz e encenadora, “até na forma como, por exemplo, o aborto foi proibido. Essa proibição chegou aos dias de hoje, pela influência do capitalismo e do poder da Igreja, que não conseguia controlar as mulheres e os seus lugares de cumplicidade. Foi um abanão para mim e, depois desta epifania, comecei a escrever a peça. Quis perceber o que significa a Caça às Bruxas hoje e o que ficou daquela época”.
O tempo neste espetáculo é, aliás, difuso e pouco definido. Não sabemos em que altura nos situamos, porque, na verdade, em todas elas se repetem acusações, agressões, perseguições, opressões. Podia ser ontem, mas também pode ser hoje e, infelizmente, pode também ser amanhã. Teresa Coutinho quis entender, não só como chegámos onde fomos chegando (uma e outra vez), como porque chegámos aí – que força é essa tão temível, a das mulheres, que leva os homens a querer aniquilá-la? Que medo é esse? De onde vem esta cultura machista que resiste há séculos como dominante? O que pode, afinal, “o descontrolo de uma mulher”, como se diz em cena? O que levou, desde a Grécia Antiga, homens a escreverem tragédias em que a elas apenas cabiam os papéis de ousarem, traírem e desafiarem (Aristóteles escreveu que “a fêmea é um macho mutilado”)? “Enquanto a ousadia se mantiver no palco não extravia para a vida”, ouve-se a certa altura. Será essa a justificação da misoginia?
Um coro de sororidade
Que esta é uma tragédia fica logo enunciado no início do espetáculo. “O final vai acabar mal”, anunciam. “Nós somos o coro. E, se somos o coro, então esta é uma tragédia.” Mais do que fazer o paralelo com o teatro, Teresa Coutinho interessou-se por enaltecer a ideia de coletivo, explica. “A ideia do coro vem da tragédia grega, claro que aqui tem uma encenação muito livre, mas queria mesmo ter um grupo de mulheres e contrariar a ideia de que muitas mulheres juntas nunca têm um bom resultado. E 13, o número do azar, foi para ir ainda mais contra o preconceito.”
Juntou atrizes bem diferentes e com experiências distintas: Ana Baptista, Ana Sampaio e Maia, Ana Valente, Cláudia Semedo, Lucia Pires, Maria Duarte, Siobhan Fernandes, Mariana Guarda, Rita Cruz, Sara de Castro, Sara Ribeiro, Tânia Alves e Tanya Ruivo – algumas delas que nunca se cruzariam de outra forma, provavelmente. “Pode soar a cliché, mas houve, neste processo de trabalho, muita sororidade, sentido de união e respeito”, acrescenta.
A força que vem desse coletivo é também a força que Teresa Coutinho quer sublinhar neste espetáculo. “A violência que as mulheres sofreram ao longo dos tempos tem a ver com a sua capacidade de resistência. Há qualquer coisa muito estoica nas mulheres, há qualquer coisa que as mantém de pé”, aponta. Por isso, em reunião ali se juntam em cena e, em reunião, nos mostram a opressão constante de que são vítimas. “Sobrevivemos a quase tudo e essa é a nossa maldição”, há de afirmar uma delas, depois de outra delas instigar, dançando sem parar: “Dancemos. Até não dançar nenhuma”.
Em palco, fala-se de resistência mas também de passividade, de força mas também de fraquezas. Conta-se como à mulher lhe resta, muitas vezes, apenas a alternativa de ser Maria, a casta e obediente ao homem, ou Eva, a pecaminosa, que acaba posta de lado, acusada, agredida. Uma “caça às bruxas e a todas as metamorfoses do feminino”, sussurram. Há cabelos puxados, expressões de pânico, gestos fortes. Há uma mulher presa e condenada, há uma candidata a presidente de um partido contra o aborto que decide abortar, há uma professora que quer pôr os alunos a pensar e passa a ser olhada de lado, há mulheres constantemente julgadas e bruxas constantemente malvistas. Há, sobretudo, desumanidade – seja na violência, seja na inércia ou na complacência para com ela.
A força da utopia
Nesta narrativa, que começa pelo fim para depois voltar ao início, é o coro que manda. Aqui, as mulheres que nos falam são sujeito e não objeto. Como defende Christa Wolf, em Cassandra, torna-se importante a memória e necessária esta “escrita para a paz”. Teresa Coutinho encena contra a invisibilidade e o silenciamento da experiência feminina – e há uma certa esperança nisso, sim.
“Acredito que cabe às mulheres a arte que vem restaurar a paz”, diz. “Falta cumprir essa possibilidade que não conhecemos: e se as mulheres tomassem efetivamente conta do poder? Como seria um sistema e uma política pensados por mulheres? Tem mesmo de ser assim como é?”
Em cena, ouve-se: “O tempo que passou e que afinal nos apanhou, o terrível tempo que veio sussurrar ao ouvido deste tempo”. Passam anos e séculos e continuamos a ter notícia de violências domésticas, feminicídios e toda a espécie de agressões a mulheres. Como nota Teresa Coutinho, “o modo de interagir é igual ao longo dos tempos, o tipo de perseguição é reconhecível”. E, no entanto, continuamos a trilhar os mesmos caminhos. “O mundo está feio. Vivemos mesmo na altura da banalidade do mal, do insulto, da crueldade. Quando comecei, queria escrever um texto distópico. E, neste momento, a violência deste espetáculo é ele falar de coisas tão atuais. Há um ano e pouco, quando nos encontrámos todas numa primeira residência artística, isto ainda era uma distopia. Hoje já o é muito menos… E pensamos: será que daqui a um ano poderemos fazer este espetáculo?” O Fim Foi Visto, já sabemos como acaba a história – evitemos “um desfecho trágico, uma ditadura futura”.