entrevista
Capicua
"A palavra é a base de tudo o que faço"

A insubmissa Capicua (nome artístico de Ana Matos Fernandes) é a maior referência feminina do hip hop nacional. Depois de um hiato de cinco anos, a artista portuense está de volta aos discos com Um Gelado Antes do Fim do Mundo, com lançamento previsto para 21 de março. No dia anterior, sobe ao palco do Teatro Tivoli BBVA para apresentar ao vivo o novo trabalho ao público lisboeta.
O novo disco chama-se Um Gelado Antes do Fim do Mundo. Porquê este título?
É uma frase que resume o espírito do disco, que tem um lado emocional, mas que também fala sobre as grandes questões que nos atormentam, sobretudo a nossa incapacidade de imaginar um futuro, de criar alternativas, de cultivar as utopias. A ideia do fim do mundo acaba por ser uma espécie de guarda-chuva que tem muitos subtemas, desde as alterações climáticas, à escalada da extrema-direita, à questão do adormecimento e da alienação das pessoas a partir das redes sociais. Como contraponto, a ideia do gelado é uma metáfora para o que também é a proposta do disco, que é cultivar o lado poético, do encantamento com a arte, com a natureza, aquilo que nos recarrega as baterias para lidar com estas angústias que assolam a nossa civilização. É um bocadinho isso: um pé no encantamento e um pé no fim do mundo – esta espécie de apocalipse que vivemos.
Este disco sai cinco anos depois de Madrepérola (2020), que foi muito marcado pela experiência da maternidade…
O Madrepérola foi feito durante a gestação e no pós-parto. Depois, veio a pandemia e também alguns embates com o cansaço da gestão da vida de uma artista que também é mãe e que também tem de conseguir tempo para a criação num mercado tão pequeno como o nosso e com tantos desafios. Houve um período de pousio em que pensei que nunca mais ia fazer um disco. Entretanto, fiz o segundo disco Mão Verde (o meu projeto de música para crianças com o Pedro Geraldes, o António Serginho e a Francisca Cortesão), depois escrevi um disco com a Aldina Duarte e a minha vontade de escrever foi começando a surgir… Há um ano fiz, com o Luís Montenegro, uma versão da canção Que força é essa amiga?, do Sérgio Godinho, e foi daí que nasceu a centelha que me fez gravar este novo disco, que não é tão otimista e tão solar como o anterior (que, por ter sido feito durante uma gravidez, estava cheio de esperança no futuro). O novo disco já veio numa fase pós-pandemia, de reconstrução da minha vontade de criar, mas também numa altura em que o mundo está muito complexo. Se calhar foi preciso este hiato de cinco anos para eu perceber o que queria dizer e também para me redescobrir enquanto artista e ser criativo, depois dos impactos dessas experiências todas.
Quando lançaste o Madrepérola, disseste que não sabias se era o teu último disco. Manténs essa ideia?
Acho que essa ideia está sempre presente. Quando saiu o outro disco as pessoas perguntavam-me muito isso, quase como se fosse uma ameaça. Mas não é, porque acho mesmo que o formato do disco está em vias de extinção. Não sei até quando terei o romantismo de me meter nestas grandes aventuras, porque isto é uma maratona e exige muito investimento financeiro, mas também muito investimento de tempo e de trabalho, para depois as pessoas ouvirem durante uma semana e passarem à próxima novidade. É um bocadinho ingrato, porque o tempo da arte e da criação está cada vez mais distante do tempo do mercado.
Achas que é um sintoma dos tempos?
Não. Sempre foi, mas atualmente é uma distância quase irreconciliável. E depois também como nos sobram muito poucos meios para divulgar o nosso trabalho, estamos a competir nas redes sociais com um prato de sushi ou umas férias nas Maldivas e é um bocado injusto… Percebo, por isso, que as pessoas desistam do formato. Quando faço um disco faz-me sempre sentido que seja um corpo de trabalho que tenha um conceito, um espírito. As canções têm um parentesco entre elas, há ali um sentido que une aquelas canções e, portanto, para mim fez todo o sentido manter este formato para esta proposta do Um gelado antes do fim do mundo. Não sei se o vou continuar a fazer, se calhar ou lançar mais EPs, coisas mais pequenas, conjuntos de músicas mais soltos, mas não consigo prometer que continuarei com este formato.
Nestes tempos tão conturbados que estamos a viver e com a desinformação toda que há nas redes sociais, a caneta e o microfone ainda são uma boa forma de combate?
Não sei se é o meu romantismo a falar, mas acho que as canções, sobretudo nas fases mais conturbadas – historicamente isso está documentado – têm essa capacidade de criar um espírito de identificação, um sentido de pertença e alguma mobilização. Não é à toa que há hinos de gerações, de movimentos sociais, de países, de lutas, porque a música tem uma capacidade não só de conter o espírito da época, como de mobilizar as pessoas. Isso não é algo palpável, mas, sobretudo num momento em que há tanta toxicidade no debate público, tanta desidentificação com as instituições e com aquilo que são os nossos representantes, a cultura tem um papel fundamental. É o último reduto da humanização no sentido em que é a ler, a ouvir música e a ver filmes que nós imaginamos o que é estar no lugar do outro. Isso é uma coisa muito simples, mas contém tudo aquilo que nos define enquanto humanos, essa capacidade de empatizar. A música (mais concretamente a escrita) é a minha ferramenta e, portanto, o meu contributo para comunicar com as pessoas e falar sobre as causas que acho urgentes, mas também para trazer algum encantamento, algum amparo.
O primeiro single do disco, Making teenage Ana proud, tem uma mensagem muito forte e empoderada. A Ana adolescente está orgulhosa do sítio onde chegou?
Making teenage Ana proud é uma espécie de lema pessoal. Penso muitas vezes se as minhas decisões artísticas ou se as minhas escolhas profissionais orgulhariam a Ana adolescente. Quis celebrar um bocadinho o espírito aguerrido dessa Ana, que era muito contestatária, tinha convicções férreas e um espírito insubmisso. Penso que é uma boa referência para manter viva essa capacidade de me revoltar contra aquilo que acho injusto. E este disco também tem muito esse espírito insubmisso, e eu quis celebrá-lo. Penso que a adolescente que fui ia orgulhar-se e surpreender-se bastante por eu ainda estar a fazer música e por ter feito do rap profissão, que foi uma coisa muito inesperada. Acho que ela ia ficar orgulhosa de mim e dizer “superaste as minhas expectativas”.

O disco anterior tinha muitas colaborações. O novo álbum também?
Tenho três participações, mas para já só vou revelar uma delas, que é a Gisela João, que vai ser minha convidada no concerto do Tivoli. Colaborei com a Gisela muitas vezes nos discos dela, já escrevi muitas letras para ela e ela também entrou numa das minhas canções do Sereia Louca [2014]. A voz dela está sempre no meu imaginário. Quando escrevi o refrão da canção em que ela participa imaginei logo que ficaria incrivelmente bem na voz dela. Esta canção fala sobre a escalada da extrema-direita de uma forma muito poética, aludindo a uma notícia de 2023 em que as águas do Danúbio baixaram tanto com a seca que vieram à tona os navios nazis que estavam afundados desde a Segunda Guerra Mundial e que tinham sido afundados propositadamente cheios de explosivos para tornar o rio inavegável. Achei que era uma ideia muito interessante porque era quase como se a seca e a escassez trouxessem à tona os monstros do passado. A partir dessa metáfora, falo sobre a escalada da extrema-direita um pouco por todo o mundo, e a Gisela canta o refrão com a sua voz grave, numa toada de fado.
O universo do hip hop ainda é maioritariamente masculino. O que falta para haver mais mulheres nessa área?
Falta destruir o patriarcado, mas não só no rap. Também em muitas outras esferas da nossa vida: na política, no desporto de alta competição, nas grandes empresas, no rock, na música eletrónica… O hip hop é um boys club mas há muitos outros meios em que as mulheres também são minoritárias e nos quais as características essenciais para competir com os nossos pares não são muito estimuladas na socialização das mulheres, como ter espírito competitivo, ser desbocado, investir nos nossos talentos… Temos de nos focar na nossa cultura como um todo, que ainda é muito desigual, muito misógina e em que as mulheres são todos os dias condicionadas, desencorajadas e relegadas para segundo plano e não conseguem vingar em muitas esferas em que, se vivêssemos numa sociedade mais igualitária, poderiam ter tanta ou mais visibilidade que os seus pares.
O caminho que fizeste, com todo o mérito e reconhecimento que tens, ajudou a abrir portas para outras mulheres no rap?
Gostava de acreditar que sim, mas acho que isso ainda não é muito óbvio. Às vezes criam-se quase bolsas de exceção a uma regra, que não abrem espaço à mudança por si só. Tem de haver muitas outras coisas a contribuir para a mudança ser estrutural. Também não quero fazer da minha história individual de sucesso, ou de exceção, uma prova de que é possível, porque as minhas companheiras de rap podem não estar nas mesmas circunstâncias que eu ou eu estar num lugar de privilégio. Não quero que o facto de ter conseguido criar uma carreira no rap sendo mulher em Portugal seja a prova de que é possível. Penso que é um contributo para que as coisas mudem, mas era preciso muito mais e não estou a ver uma mudança assim tão profunda no rap como vejo, por exemplo, no contexto da música portuguesa como um todo onde, cada vez mais, há mulheres a gerirem as suas próprias carreiras, a escreverem as suas próprias letras, em lugares de topo nas editoras ou nas agências.
Tens uma relação muito forte com a escrita, seja nas crónicas ou nas músicas que escreves – para ti e para outros. Imaginas-te a viver só da escrita?
Poderia deixar de fazer música, mas nunca poderia deixar de escrever. Desde que aprendi a escrever que a escrita (sobretudo a poesia) se tornou uma espécie de, não só superpoder, mas também uma espécie de higiene do pensamento, um lado confessional, que me organiza e me reconecta. Nos últimos anos tive a oportunidade de desdobrar a minha escrita em muitos registos: nas crónicas, nas letras, na literatura e na música para a infância, na poesia, na formação de escrita de letras de canções. A palavra é a base de tudo o que eu faço. Acho mesmo que é esse o meu superpoder.
O que é que podemos fazer, enquanto educadoras de rapazes, para que se acabe com esse machismo tão latente na nossa sociedade?
Acho que há duas coisas importantes: uma é saber que eles estão mais atentos ao que nós fazemos do que ao que dizemos, por isso temos de ter relações saudáveis, partilhar as tarefas domésticas, projetar uma imagem de força, de orgulho em nós próprias, não sermos sempre autocríticas, não sermos submissas, não nos desvalorizarmos, não sermos críticas com o nosso corpo, celebrarmos as mulheres. Acho que isso é muito importante. Depois acho que temos de criar homens que sejam sensíveis e que não tenham medo da sua vulnerabilidade. Falar sobre emoções e deixá-los conectar com as suas vulnerabilidades, porque acho que isso é o que o patriarcado rouba dos rapazes – a oportunidade de serem seres vulneráveis. Isso traz um lado tóxico e muitas vezes autodestrutivo e violento às relações humanas, que depois inquina tudo em redor. Se criarmos rapazes que sejam capazes de dizer que estão tristes e explicar porquê, se lhes ensinarmos que eles podem ser péssimos a jogar à bola e que não é por aí que deixam de ter valor perante os seus pares, se lhes permitimos ter outros interesses que não sejam só condicionados por essa lógica muito competitiva e muito viril que a nossa cultura alimenta, acho que também temos meio caminho andado. E ensinar a importância do consentimento, pô-los a fazer tarefas domésticas desde pequeninos, tantas coisas que nós podemos fazer… Quando estava grávida, pensei que, se tivesse uma menina, seria mais fácil, porque era só dar-lhe autoestima. Os rapazes, de certa forma, já vêm para o mundo numa situação de poder. Percebi que empodero muito mais o meu filho se permitir que ele seja uma pessoa vulnerável e conectada com as suas emoções, validando-as.
Dia 8 deste mês celebra-se o Dia Internacional da Mulher. Por que é tão importante continuarmos a celebrar este dia?
Vivemos num país em que os números da violência doméstica são assustadores, é uma autêntica epidemia. O gap salarial também é pornográfico e agrava-se à medida que vamos subindo nas hierarquias. Isto é ainda mais incompreensível num país onde a maior parte das pessoas licenciadas são mulheres, portanto nem sequer é uma questão de mérito ou de falta de preparação. As mulheres portuguesas estão muito sobrecarregadas, trabalham muito mais horas por dia na chamada economia do cuidado. Se não falarmos, se não exigirmos políticas públicas, se não reivindicarmos mudanças legislativas e na própria gestão das empresas, mesmo dentro das nossas casas e nas nossas relações, vai demorar centenas ou milhares de anos, se é que vai evoluir positivamente até haver igualdade. E nada nos garante que isso venha a acontecer quando vemos que, com a escalada da extrema-direita um pouco por todo o mundo, a prioridade é fazer retroceder os direitos das mulheres e das minorias. Todos os estudos de mentalidades apontam para que os homens das próximas gerações sejam mais conservadores e mais machistas do que os homens da nossa geração. Se nós ainda não conseguimos a igualdade e não podemos dormir à sombra dos direitos adquiridos, perante estes sinais devemos estar ainda mais alerta e mais empenhadas em relembrar todos os dias do ano – não só o 8 de março – de que temos muito trabalho pela frente. Cá estaremos para resistir até ao fim por tudo o que conquistámos nestes quase 51 anos de democracia.