Adelaide Ginga

"A coleção [de arte] de Armando Martins faz o retrato de alguém que não tem medo de arriscar"

Adelaide Ginga

Diretora do MACAM - Museu de Arte Contemporânea Armando Martins, prestes a inaugurar, Adelaide Ginga fala-nos da importante coleção, da originalidade conceptual deste Museu-Hotel, das valências e dos seus principais desígnios: mostrar coleções privadas de arte contemporânea (do seu fundador e de outros) e expor, a título permanente, um conjunto de obras que dê a conhecer a evolução da arte portuguesa do século XX.

O MACAM nasce da vontade do empresário Armando Martins de mostrar a sua coleção de arte. Que retrato é que esta coleção traça do seu colecionador?

Essa foi uma pergunta que lhe fiz e a resposta dada foi “nenhum”. Acho que faz o retrato de uma pessoa que se apaixonou muito cedo pela arte, e que foi surpreendido pela arte contemporânea, que desconhecia. O Armando Martins (nascido no concelho de Penamacor, em 1949) veio para Lisboa sem nunca ter tido nenhum contacto com o mundo da arte. O primeiro museu que visitou foi o Museu Nacional de Arte Antiga, mas não ficou nada conquistado, antes pelo contrário. Depois, acabou por ir sendo surpreendido pela arte contemporânea. Inicialmente começou a comprar serigrafias com um amigo e, ao fim de um tempo, achou que aquilo não era suficiente. Foi quando decidiu comprar a primeira obra original para se oferecer a si próprio no aniversário dos 25 anos. E, portanto, acho que a coleção faz o retrato de alguém que não tem medo de arriscar; que, não conhecendo um determinado mundo, não tem medo de entrar nele. O Armando Martins tem esse lado arrojado de enveredar por caminhos que não lhe são conhecidos e de sair da sua zona de conforto. É uma pessoa com um espírito muito curioso, muito atento e muito desperto para aquilo que o pode levar para horizontes que desconhece. Foi o que aconteceu com a arte: surpreendeu-o e levou-o para um mundo que não lhe era minimamente conhecido e que ele descobriu sem ter estrutura para tal, sem ter tido formação para o fazer, de forma totalmente autodidata.

Que obra foi essa com que ele se auto-presenteou no seu 25º. aniversário?

Esse primeiro quadro original que ele comprou, da autoria de Rogério Ribeiro, é uma obra de 1970, que ele compra em 74. É uma pintura abstrata. Seria fácil comprar um primeiro quadro figurativo, porque há sempre pontos de referência, da analogia com o real, mas o primeiro quadro que compra é um quadro abstrato. Portanto, há assim um mergulho, uma imersão direta num mundo que é de outra dimensão.

Qual é o horizonte temporal desta coleção?

A obra mais antiga é um Malhoa, datada de 1895. Em relação à mais recente, há várias de 2024, e até de 2025.

Que critério presidiu à formação desta coleção: o exclusivo gosto pessoal do colecionador ou a procura de nela representar os artistas e os movimentos mais relevantes das últimas cinco décadas?

Numa primeira fase, foi por gosto pessoal. Tanto que ele começou a comprar de 1970 para a frente e só depois recuou. Não houve aqui uma orientação curatorial da coleção. Ele foi comprando por instinto, por gosto. Sem dúvida que começou a compreender que havia uma cronologia, havia uma ordem e preocupou-se em ter aqui um caminho cronológico. Acima de tudo, ele teve uma preocupação sempre muito presente nesta coleção: a ambição de ter um determinado nome, mas não uma qualquer obra desse nome. Portanto, ele sempre se preocupou em ter uma obra digna, representativa do artista, que considerava como sendo um artista importante para a coleção. Não lhe bastava comprar. Por exemplo, pode ter comprado inicialmente um desenho pequenino do Amadeo [Sousa Cardoso], mas sentia que aquilo não era representativo do Amadeo. Enquanto não comprou uma boa pintura do Amadeo, não descansou. Portanto, há, de facto, uma preocupação nesse sentido, não só de ir criando uma estrutura colmatando com artistas que são importantes e que fazem um percurso, como ter obras representativas desses artistas. Depois, a partir dos anos 2000, ele sai mais do mundo português e começa a ir visitar feiras internacionais, e apercebe-se de que era importante ter arte internacional, manter esse diálogo também de atualização da relação da arte que se fazia em Portugal com a arte que se faz lá fora. Ele estava consciente de que os artistas portugueses ganhariam com esse diálogo internacional.

Se tivesse que escolher uma ou mais obras icónicas que melhor caracterizassem esta exposição, qual ou quais seriam?

Esta é uma coleção a dois tempos. Tem uma orientação contemporânea e, portanto, há uma série de obras contemporâneas que acho que que ilustram bem aquilo que é o core da coleção. Mas, depois há um núcleo primário inicial, que é extraordinário e que faz uma grande paridade com outras coleções nacionais que são exemplares daquilo que é a história da arte, essencialmente do século XX em Portugal. Portanto, se tivesse que escolher, sem dúvida que o Amadeo é um ex-líbris, tal como o Santa Rita, o Eduardo Viana ou a Vieira da Silva. Obviamente que a pintura do Pessoa pelo Pomar é uma pintura emblemática, também. E, eu sei, que A mulher da laranja, do Eduardo Viana, é a pintura preferida do Armando Martins. Já eu acho que O Rapaz das Louças, também do Viana, é uma obra muito representativa deste primeiro núcleo. No segundo núcleo também há muitas. É difícil escolher uma, porque há tantas obras emblemáticas, mas eu talvez escolhesse a da Marina Abramović, que considero uma peça extraordinária. A coleção tem várias obras de mulheres, o que é uma coisa que me agradou bastante quando comecei a conhecer o espólio. E tem obras bastante arrojadas, também…

“A coleção tem várias obras de mulheres, o que é uma coisa que me agradou muito quando comecei a conhecer o espólio. E tem obras bastante arrojadas, também.”

O espaço expositivo prolonga-se pelo hotel, dado que existem obras de arte expostas nas zonas sociais, nos corredores e nos quartos. Como surgiu esta ideia?

Quando o Armando me deu a conhecer a coleção e me perguntou se eu estaria interessada em trabalhá-la e criar um projeto museológico, perguntei-lhe como é que ele pensava sustentar um museu, porque os museus não são lucrativos. Ele disse-me que já tinha pensado numa solução: ter um hotel associado ao museu que pudesse dar estabilidade financeira, que fosse um motor de sustentabilidade. Como sei como é angustiante estar dependente do Estado e de fundos públicos, e ao saber que podemos ter, aqui no MACAM, um grau de autonomia, fiquei conquistada. Depois, preocupava-me que a vertente “hotel” se sobrepusesse à vertente cultural do museu. Eu já tinha tido a experiência de colocar obras de arte originais em quartos de hotel e foi isso mesmo que lhe propus, pegar em peças que dificilmente entrariam na exposição, por haver outras mais significativas do mesmo artista, e colocá-las nos quartos. Os quartos da ala nova têm obras de artistas portugueses do pós-25 de Abril, os quartos do primeiro piso do palácio têm obras de artistas portugueses e os do segundo piso têm peças de artistas estrangeiros. Quanto aos corredores, o primeiro piso do palácio tem, por exemplo, várias obras do modernismo. O objetivo é que as pessoas tenham uma experiência diferente, que sintam que estão a dormir num museu e que estão a privar com obras da coleção do museu.

Isso faz com que os hóspedes do hotel se interessem por arte moderna portuguesa…

Exatamente. De um modo geral, penso que a grande expectativa dos visitantes estrangeiros e de muitas das famílias é conhecerem a arte portuguesa. Eles vêm para ver a arte portuguesa, portanto, eles querem um sítio onde possam ver arte portuguesa. E a nossa aposta foi muito essa. Embora no último piso tenhamos um núcleo de arte estrangeira, apostamos em dar a conhecer a arte portuguesa. Faz uma falta enorme em Lisboa haver uma exposição permanente de arte moderna. Na verdade, nem a Gulbenkian nem o MNAC [Museu do Chiado] têm exposições em permanência. Há um certo preconceito, um certo tabu com a ideia do permanente. As pessoas acham que tem que haver dinâmica e uma rotação de exposições, e é óbvio que tem, porque nós precisamos de conquistar os públicos e precisamos de atraí-los com novas ofertas. Mas tendo o MACAM quatro galerias, então vale a pena dedicar duas delas a uma permanente, onde as  pessoas sabem que podem encontrar uma oferta que lhes permite conhecer a arte portuguesa e a arte contemporânea. Porque é muito bom as pessoas saberem que determinado museu tem um conjunto de obras emblemáticas e significativas e depois ter, de facto, acesso a elas. Para mim era muito óbvio que esse era o caminho para este museu.

The House of Private Collections (A Casa das Coleções Privadas);  este é o mote do MACAM. O que é que isto significa exatamente?

Significa que o MACAM não mostrará apenas a coleção de arte do seu fundador, mas convidará também outros colecionadores privados a mostrar as suas coleções, reforçando a nossa missão de as tornar visíveis ao público. Isto irá acontecer na extensão contemporânea do palácio, dedicado às exposições temporárias, que conta com duas salas que permitem mostrar obras de maior escala.

O MACAM situa-se num eixo geográfico compreendido pelo MAAT e pelo MAC/CCB, entre outros. Que mais valia pode este museu acrescentar às dinâmicas desta área?

Uma enorme mais valia. Estamos aqui num art district crescente. Somos muito complementares, porque, no fundo, conseguimos manter um diálogo de contemporaneidade com o MAAT e com o CCB. Temos obras diferentes, mesmo havendo, obviamente, artistas que se repetem nas várias coleções, mas a nossa coleção de arte portuguesa está estruturada desde o final do século XIX, o que não acontece nos outros locais. O MAC/CCB tem toda uma coleção essencialmente internacional, e depois portuguesa, também da contemporaneidade, mas desta fase inicial do século XX. Portanto, nós temos a arte portuguesa que o MAAT também não apresenta, dai achar que é complementar, porque as pessoas sabem que podem vir aqui ter uma ideia genérica daquilo que é a arte portuguesa, moderna e contemporânea, e arte internacional contemporânea. E depois, indo visitar o MAAT, têm novas perspetivas de exposições temporárias. O MAC/CCB tem uma coleção permanente, alternativa internacional, com obras também de artistas portugueses contemporâneos que farão um diálogo com aqueles que nós temos aqui. E isso reforça o conhecimento dos públicos. A oferta nesta área é muito rica, mas acho que nós nos distinguimos perfeitamente.