literatura
Retratos Camilianos
Seis personagens para celebrar Camilo Castelo Branco nos 200 anos do seu nascimento

Celebra-se, a 16 de março, o bicentenário do nascimento de Camilo Castelo Branco. Evocando o escritor, traçámos um breve retrato de seis dos seus personagens, escolhidos, entre tantos outros, do seu impressionante universo romanesco. Procurando, nesta tão difícil seleção, um justo equilíbrio entre livros mais e menos conhecidos do grande público, estes textos, acompanhados das respetivas ilustrações, pretendem contribuir para suscitar o interesse na leitura da extraordinária obra do autor.
“Picado de génio e das bexigas”, lê-se como legenda da caricatura de Camilo Castelo Branco no Álbum das Glórias de Rafael Bordalo Pinheiro. O génio do escritor deu origem a uma obra torrencial com duas tendências essenciais: a novela satírica de costumes e a novela passional. As bexigas que lhe desfeavam o rosto não impediram uma acidentada vida sentimental que foi a mais importante fonte da novela camiliana. Após vários amores tumultuosos, apaixona-se por Ana Plácido (esposa do negociante Manuel Pinheiro Alves), que seduz e rapta. Capturados e presos na Cadeia da Relação do Porto, são julgados e absolvidos do crime de adultério. Depois de vários anos de vida em comum, Camilo casa finalmente com Ana Plácido em 1888. Atormentado pela morte do filho predileto e pela progressiva e crescente cegueira, suicida-se em 1890.
A 16 de março celebra-se o bicentenário do nascimento de Camilo Castelo Branco. Evocando o grande escritor, traçámos um breve retrato de seis dos seus personagens, escolhidos, entre tantos outros, do seu impressionante universo romanesco. Procurando, nesta tão difícil seleção, um justo equilíbrio entre livros mais e menos conhecidos do grande público, estes textos, acompanhados das respetivas ilustrações de Inês do Carmo, pretendem contribuir para suscitar o interesse na leitura da extraordinária obra do autor. Porque, como escreveu Camilo, com o seu humor característico, “a mocidade ou não lê nada, ou lê livros moderníssimos e detesta os clássicos, porque estes os ensinam a escrever corretamente.”
“A verdade na novela é a minha religião;
e aposto eu que muitas religiões
são menos verdadeiras que as minhas novelas.”
Mariana
“Ninguém o amará como eu: ninguém lhe adoçará as penas
tão desinteresseiramente como eu fiz.”
Amor de Perdição (1862)
Escrito na Cadeia da Relação do Porto, em 15 dias, Amor de Perdição é o mais célebre dos romances de Camilo. Obra que o filósofo Miguel de Unamuno considerava “a novela de paixão amorosa mais intensa e mais profunda que se escreveu na Península e um dos poucos livros representativos da nossa comum alma ibérica”.
A intriga centra-se nos amores contrariados dos jovens Simão Botelho e de Teresa de Albuquerque, vítimas da rivalidade entre famílias fidalgas. O facto do título em tudo corresponder à situação do autor e da sua amante Ana Plácido, à época encarcerados pelo crime de adultério, não passou despercebido, estimulando a curiosidade dos leitores.
Num golpe de génio, Camilo introduz uma terceira personagem, Mariana, filha do ferrador João da Cruz, “formosa rapariga da aldeia”. Símbolo eloquente do amor-renúncia, Mariana é a amante silenciosa, abnegada e fiel. Camilo salienta a formusura da “gentil criatura”, dos seus “grandes olhos azuis” e do seu “sorriso triste” e qualifica-a de “nobre rapariga”, apesar da sua condição popular. Confidente apaixonada de Simão, serve generosamente de intermediária entre ele e Teresa, acompanha-o na prisão e sacrifica-se para o seguir no degredo. Após a morte de Simão no decurso da viagem, suicida-se abraçando o seu cadáver lançado ao mar, morrendo “sem ter ouvido ‘amor’ dos lábios que escassamente balbuciavam frias palavras de gratidão”.
Silvestre da Silva
“Ao terceiro ano de casado,
Silvestre formava com o peito e abdómen um arco.”
Coração, Cabeça e Estômago (1862)
Silvestre da Silva, o herói de Coração, Cabeça e Estômago, motivado pela experiência acumulada ao longo da vida, decide dedicar os seus últimos anos exclusivamente aos prazeres da gastronomia, desiludido com as inconstâncias amorosas e com a futilidade do combate das ideias.
Camilo constrói a narrativa como uma pretensa autobiografia que descreve a vida do herói nas três fases que correspondem ao título da obra. Na primeira fase (Coração), relata os sete amores desafortunados do protagonista. Na segunda fase (Cabeça), dá conta dos seus infortúnios no meio intelectual e jornalístico. Por fim, na terceira fase (Estômago), descreve o seu retiro no campo, a sua estreia na carreira política, o seu casamento com uma morgada e a sua entrega aos prazeres da boa mesa.
O herói sintetiza a sua existência terrena num delicioso soneto de despedida: “(…) Cabeça e coração senti sem vida, / No estômago busquei uma alma nova (…) / E por muito comer eu desço à cova!” Apesar do tom jocoso, a obra narra a constante procura do protagonista de um sentido e propósito para a vida.
As suas contradições e perplexidades perante um mundo em transformação refletem, afinal, as do seu criador que, consciente do momento de transição literária em que vivia, adivinhava no esgotamento da fórmula romântica a possibilidade do surgimento de algo novo. Por isso, Abel Barros Baptista considera esta obra “uma experimentação pioneira na irrisão do sentimentalismo a partir de dentro. E também de fora, claro”.
Calisto Elói
“Não sou homem de salvas e rodeios;
digo as coisas à moda velha.”
A Queda de um Anjo (1865)
Divertidíssima sátira política sobre a vacuidade da oratória parlamentar e a indiferença governativa aos grandes problemas da maioria. O inesquecível protagonista, Calisto Elói de Silos Benevides de Barbuda, um fidalgo transmontano, austero e conservador, é uma encarnação paródica do país: eleito deputado, Calisto vem viver para Lisboa, onde se deixa corromper pelo luxo e pelo prazer que imperam na capital.
Na composição e definição do personagem, Camilo é minucioso na descrição dos detalhes do seu trajar arcaico e conservador (“o chapéu armado, calção de tafetá”, “gola e portinholas da casaca eram sérias demais e calças rematando em polainas abotoadas de madrepérola”). Aliás, a contaminação da personagem e os indícios da sua queda expressam-se exteriormente através da primeira visita a um alfaiate lisboeta. Esta transfiguração exterior representa, por um lado, a forma como as roupas refletem as normas sociais, a superficialidade da vida e a importância dada às aparências e, por outro, traduz a metamorfose moral e as alterações no discurso e comportamento do deputado (que transita da oposição miguelista para o partido liberal no governo).
A Queda de um Anjo retoma um dos temas constantes na novelística camiliana, o conflito entre a cidade o campo. É, segundo Alexandre Cabral, autor do Dicionário de Camilo Castelo Branco, um romance jocoso em que o escritor se diverte e “aproveita para dar uns bons sopapos nos peralvilhas da cidade”.
Rui Gomes de Azevedo
“O moço é que era
a pureza e estreme honra.”
O Senhor do Paço de Ninães (1867)
Romance histórico que tem como pano de fundo as lutas de D. António, Prior do Crato e a ação dos portugueses na Índia. Apesar da trama decorrer no Minho no século XVI (“Estamos no Minho, o leitor e eu”, assim se inicia a narrativa), algumas das personagens vão percorrer o mundo (Espanha, França, Inglaterra e Oriente) pela pena de um escritor que nunca saiu de Portugal, mas que evidencia assinalável conhecimento dos ambientes, costumes e comportamentos da época.
A obra tem por base um (inevitável?) amor contrariado. Rejeitado pelo pai da noiva, o jovem Rui Gomes de Azevedo deixa o Minho, vem para Lisboa, combate no norte de África em Alcácer Quibir e toma partido por D. António, Prior do Crato, na sucessão ao trono. Desiludido, parte para a Índia, onde assiste às rapacidades e atrocidades dos seus compatriotas. Rui surge na sua “inocência genuína” como personificação idealizada dos valores e costumes austeros dos antepassados (“da casta dos nossos avós”), postos em causa com o movimento da expansão e pelas novas gerações que os “trocaram pela glória da Índia”.
O herói assume uma perspetiva que lembra a do Velho do Restelo revelando o lado negro da expansão ultramarina: os vícios, a crueldade e a ganância do colonialismo português. Camões referiu-se à Goa portuguesa, por experiência própria, como “mãe de vilões ruins e madrasta de homens honrados”; Camilo, por intermédio do seu herói ficcional, reitera essa visão, escrevendo: “A honra aqui é planta que se mirra e fenece”.
Angélica Florinda
“Tanta razão tem o povo em me chamar
bruxa como santa.”
A Bruxa do Monte Córdova (1867)
Ambientada durante o período da guerra civil que ocorreu entre 1831 e 1834, e opôs liberais a absolutistas, a novela relata uma história de amor trágico que reflete a época conturbada que se vivia.
Angélica Florinda, “a mais formosa da sua aldeia”, a quem todos cortejam, envolve-se numa relação proibida com Tomás de Aquino. Amores contrariados que acompanham e se entrelaçam com os eventos históricos da guerra civil. Depois da morte do amante, no campo de batalha, Angélica, entretanto mãe solteira, acaba por enfrentar sozinha o estigma da exclusão social e da intriga. Refugiada num convento, guiada espiritualmente por Frei Silvestre, é acometida por culpas e fervores religiosos, responsabilizada pela morte de Tomás (por com ele se ter unido em pecado) e forçada a repudiar o filho ilegítimo. Angélica Florinda vive um processo longo e tormentoso de penitência até que, aos “quarenta e cinco anos, com parecenças de sessenta” se refugia numa choupana na serra, a um quarto de légua da aldeia de Caparães, onde granjeia fama de exorcista. A bruxa de Monte Córdova passa a atrair “não só homens, mulheres e crianças endemoinhadas, mas também o gado (…), para a todos estes irracionais curar de enfermidades excedentes do alcance das ciências médicas”.
Através do destino trágico da comovente Angélica, Camilo acusa o fanatismo religioso, a pregação fradesca e a intolerância política, da influência que exerceram na carnificina da guerra civil.
Ângela
“Aquilo é mulher finória e soberba.”
Os Brilhantes do Brasileiro (1869)
A narrativa questiona a fidelidade de uma mulher, posta em causa por vender alguns dos seus brilhantes sem dar conhecimento ao marido. A fidalga Ângela de Noronha de Antas vive um amor contrariado pelo plebeu Francisco José da Costa. Aos 20 anos de idade, forçada pelo pai em difícil situação económica, aceita com relutância casar com o brasileiro Hermenegildo Fialho, 26 anos mais velho. Porém, nunca esquece o seu primeiro e único amor. Descoberta a vender cinco brilhantes da pulseira, prenda de noivado, recusa-se com altiva dignidade a dar qualquer esclarecimento ao marido e abandona o lar conjugal sem nada, recusando até o dote que o noivo lhe fizera.
Diferente das protagonistas habituais de Camilo, a fascinante personagem de Ângela recusa submeter-se à autoridade patriarcal e às convenções socias e morais vigentes, agindo unicamente de acordo com a sua consciência e assumindo inteira responsabilidade dos seus atos. O escritor denuncia uma sociedade machista que submetia a mulher, ao longo da sua vida, à total obediência perante as figuras masculinas, primeiro o pai, depois o marido. “Você sabe bem que nós, os homens, não somos mulheres. Elas têm outra casta de obrigações. Se a mulher for igual ao marido, então não há honra nem vergonha neste mundo”, profere Hermenegildo.
Confirmando que há muito da biografia de Camilo nas suas ficções, Alexandre Cabral considera que “o autor, ao descrever Ângela, está a imprimir-lhe a altiva rebeldia de Ana Plácido”.