Camões no século XXI a abrir novo teatro

"Auto das Anfitriãs", de Inês Vaz e Pedro Baptista, na Sala Estúdio Valentim de Barros

Camões no século XXI a abrir novo teatro

Há quase 500 anos, Camões intitulou de Auto Chamado dos Enfatriões a "derivação" que fez da peça clássica de Plauto, Anfitrião. Agora, Inês Vaz e Pedro Baptista "derivam" do poeta para contar a história de Anfitrião e Alcmena, mas com mulheres empoderadas e ao ritmo do TikTok. Auto das Anfitriãs é o espetáculo de estreia de um novo teatro de Lisboa: a Sala Estúdio Valentim de Barros.

Se motivos não faltam em Lisboa para celebrar o Dia Mundial do Teatro, a 27 de março, este ano impõe-se uma razão maior: abre ao público uma nova sala de teatro em Lisboa por iniciativa da cooperativa cultural Largo Residências, que ocupa atualmente parte do antigo hospital psiquiátrico Miguel Bombarda com um centro cultural e comunitário nomeado Jardins do Bombarda. O parceiro residente para a programação deste ano é o Teatro Nacional D. Maria II que, enquanto o edifício do Rossio é reabilitado, vai mantendo a sua atividade noutras salas desta e doutras cidades do país.

A abrir a sala que leva o nome do bailarino Valentim de Barros, um espetáculo inédito assinado por Inês Vaz e Pedro Baptista, a partir de uma das três peças de teatro atribuídas a Luís Vaz de Camões, Auto Chamado dos Enfatriões. Em bom rigor, explicam os criadores, este Auto das Anfitriãs é, tal como a peça de Camões, “uma derivação” do clássico Anfitrião, do comediógrafo latino Plauto, que por sua vez partia do episódio mitológico de Júpiter se passar por Anfitrião para usufruir de uma noite com a mulher deste, Alcmena.

“Ao reescrevermos a peça procurámos mudar alguns eixos da história que tanto Plauto como Camões contaram, repensando a Alcmena e a Bromia [a criada de Alcmena], as personagens femininas”, aqui interpretadas por Cire Ndiaye e pela própria Inês Vaz, respetivamente. Embora aqui sejam sempre personagens profundamente afirmativas, tal como no episódio mitológico, ambas acabam por ser vítimas do poder patriarcal, perpetrado tanto por deuses como por homens. Por isso mesmo, sublinha Inês Vaz, “alterámos o final da história, de modo a fazer justiça a Alcmena”, e consequentemente, dizemos nós, a todas as mulheres. Mas, para saber como poderão Alcmena e Bromia levar a melhor sobre Anfitrião/Jupiter (José Neves) e Sósia/ Mercúrio (João Grosso), só mesmo entrando na “festa”…

Entre Lena d’Água e o TikTok, há Camões

O espetáculo nasceu de um desafio de Pedro Penim, diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II, por ocasião dos 500 anos do nascimento do poeta maior da língua portuguesa. “A peça de Camões foi-nos dada como objeto de trabalho”, explica Pedro Baptista, acrescentando que nunca foi intenção adaptar literalmente o Auto Chamado dos Enfatriões.

“Começámos, precisamente, por subverter o título”, recorda ao lembrar que, agora, o protagonismo está nas “anfitriãs”. Ao mesmo tempo, foram também a Plauto “para perceber como o próprio Camões tinha derivado daquela que foi a primeira tragicomédia do teatro ocidental” e imaginar como é que o poeta “pensaria hoje o nosso país”.

“Ao trazer a peça para os dias de hoje, acabámos por fazer uma mescla temporal, onde referentes aos quinhentos nos trazem uma certa ideia de Portugal e nos levam a questionar vários símbolos de uma ideia de portugalidade aos olhos do presente”, explica. Camões é assim convocado a vir à “festa”: não só estão lá dois sonetos do poeta, como há um tal de Luís Vaz a corresponder-se com a mística Bromia através de mensagens no telemóvel (entre as mais belas das palavras que evocam o amor, um ou outro emoji marcam presença). Como diz Inês Vaz, em palco “Camões é um personagem ausente, mas interveniente”.

Com a pop de Lena d’Água a abrir “a festa” (“porque nós somos um bocadinho gente da farra”, confessa divertida Inês Vaz) e canções originais d’As Docinhas e Tita Maravilha a darem som ao ritmo TikTok em que se desenrola a ação, Auto das Anfitriãs varia entre o entretenimento popular e a erudição, usando o humor para questionar assuntos sérios, como o amor e a sedução, o abuso e o consentimento, a guerra e as desigualdades.

Não esquecer que este é um espetáculo apresentado no âmbito do programa Próxima Cena, indo viajar pelo país ao encontro de novos públicos em Beja, Celorico da Beira, Fafe, Gouveia, Lagoa, Miranda do Corvo, Mirandela, Paredes de Coura, Pombal, Santarém, Sines e Vale de Cambra, destacando nestes concelhos uma série de récitas para o público escolar do 3.º Ciclo e Ensino Secundário. Razão pela qual, assume Inês Vaz, “procurámos responder com uma festa àquela ideia de que os jovens de hoje só quererem coisas rápidas. Diz-se que não há tempo para pensar muito sobre o estado do mundo, mas porque não tentar mudar isso através do teatro que é e sempre foi um lugar de questionamento?”

Auto das Anfitriãs fica em cena, em Lisboa, até 13 de abril, estando agendadas récitas para escolas a 2 e 3 de abril, mediante marcação. De 28 a 30 de março, o espetáculo tem entrada livre, sujeita a levantamento prévio de bilhetes na bilheteira do Teatro Nacional D. Maria II nos Jardins do Bombarda.