Maria João

"A música exige tudo de nós, mas de volta dá-nos o mundo inteiro"

Maria João

A inigualável Maria João lançou, recentemente, o seu 31.º álbum. Abundância celebra a sua ascendência moçambicana, e conta, para além dos parceiros habituais, com a colaboração de vários músicos moçambicanos. O novo disco é apresentado a 22 de abril no Teatro da Trindade Inatel, num espetáculo onde celebra 40 anos de uma carreira abundante e original.

A música surgiu por acaso na sua vida. Se não tivesse seguido esse caminho, o que acha que estaria a fazer profissionalmente?

Esse caminho surgiu há muitos anos, quando abriram as inscrições para a escola do Hot Clube [de Portugal]. Na altura, fui desafiada por um amigo músico, o Carlos Rouco, a inscrever-me. Depois de assistir a alguns festivais do Cascais Jazz (que se chamava assim) fiquei completamente apaixonada por aquela música da qual não percebia nada. Quando o Carlos Rouco me disse que havia uma escola que ensinava aquelas coisas, fui. Isso coincidiu com uma fase em que o meu pai – que era piloto da TAP – estava a tentar arranjar maneira de eu ser hospedeira, portanto, se a música não tivesse aparecido no meu caminho, provavelmente seria hospedeira de bordo.

Quando é que se apercebeu que tinha talento para cantar?

Quando tirei o curso de nadadora-salvadora. Eu e duas amigas fomos as primeiras mulheres a tirar o curso, mas ninguém nos deu emprego, exatamente por sermos mulheres, mas foi aí que tive a primeira consciência de ter voz física. Durante esse curso, quando estávamos nos balneários da piscina do Inatel, onde fizemos os exames, a minha amiga Cândida cantava e eu cantarolava também e reparei que berrava mais alto do que ela [risos]. Já antes disso, na escola, se houvesse uma peça de teatro, dizia que queria participar. Uma das frases que tem persistido ao longo da minha vida é esta: “eu também quero!”. Queria fazer tudo e mais alguma coisa que estivesse ligado à arte, à música, à representação.

O jazz foi paixão imediata?

Logo. Se calhar até poderia ter abraçado outro género de música, mas não me representaria. O jazz e a música improvisada têm tudo a ver comigo. Tem a ver com improvisação, com invenção, com imaginação, com a aventura, que são as coisas mais importantes para mim e que reconheço na música que faço.

Não se imagina a abraçar outro género de música?

Tenho cantado outras coisas também. Gravei dois discos com os Budda Power Blues em que cantávamos rock and roll e blues, e também cantei num disco com música do Nuno Corte Real, que é a minha música mais contemporânea e que me exigia outro tipo de postura na música, outra forma de gerir a voz. E canto outras coisas também.

Mas o jazz é a sua casa…

É a minha casa, a minha praia, a minha alma, o meu coração.

40 anos de carreira é um número impressionante. Que emoções é que isso lhe desperta?

Estou a meio caminho, ainda me falta fazer muita coisa. Durante este tempo todo, apesar de me considerar muito desorganizada e frenética, tenho noção de que para ser cantora foi preciso uma disciplina férrea: cuidar da voz, do meu instrumento, do meu corpo. É por isso que continuo a ter uma voz muito saudável e versátil. Se tivesse andado aí a fazer asneiras não seria assim. Lembro-me de uma das vezes que mais me custou foi no festival de jazz do Funchal [Funchal Jazz]. Depois do concerto os músicos foram sair, e eu, como no dia a seguir ia para Itália cantar com o Egberto Gismonti, fui obedientemente para o quarto. Nem era para ir dormir cedo, mas sim para estar calada, porque eu falo pelos cotovelos e estar em silêncio é a melhor forma de descansar a voz.

Ao longo da sua carreira, tem procurado sair da zona de conforto, arriscando e experimentando novos caminhos. De onde vem essa energia?

Adoro praticar desporto, faço-o desde miúda. A minha mãe foi nadadora do Algés e Dafundo. Quando era pequena fazia ginástica e natação no Sporting. Hoje continuo a fazer exercício físico diariamente e isso ajuda muito. Não fumo, não bebo, sou vegetariana e tento focar a minha energia na música. Mas é verdade que sou muito curiosa e que mantenho aquela hiperatividade que tinha quando era miúda.

“O jazz é a minha casa, a minha praia, a minha alma, o meu coração”

Abundância é o nome do seu 31.º álbum. É uma referência a 40 anos de uma carreira abundante?

Olhando para o que tem sido a minha vida, acho que ela está repleta de muita coisa. É uma abundância tão grande… A minha mãe é moçambicana, o meu pai é português, portanto há aqui uma mistura gloriosa. E também as coisas que me foram acontecendo, a abundância de música que fui cantando e que foi uma felicidade total, um privilégio. Tudo isto é muito abundante, por isso achei que era o nome perfeito para o disco.

O disco celebra a fusão da música eletrónica com a tradição moçambicana. Como foi fazer esse casamento?

Os meus parceiros, com quem faço música há 14 anos, João Farinha – meu parceiro principal – e André Nascimento fazem verdadeira magia com a música eletrónica (que amo apaixonadamente, mas não percebo nada). Atualmente a minha curiosidade está virada para esta forma de fazer música. As músicas são quase todas minhas e do João, mas também há algumas de autores moçambicanos. Fomos juntando estas duas facetas: a música eletrónica com a world music que fazem os moçambicanos, e soa tão bem, porque verdadeiramente a música é só uma e engloba e abraça vários estilos, as pessoas é que gostam de colocar tudo em categorias. Acho que a música é uma divindade. Ela exige tudo de nós: tempo, lealdade, amor e dedicação, mas de volta dá-nos o mundo inteiro. Acho que temos de respeitar isso, temos de amar isso verdadeiramente. A música é só uma que abraça todos os géneros.

A Maria João escreveu alguns temas do disco. O que a inspira quando escreve?

Tudo, mas sobretudo o som. Antes do significado da palavra, gosto do som das palavras. É a primeira coisa que me chega. Inspiro-me em tudo: alguém que diz uma coisa, alguém que se ri, uma coisa que ouço aqui e outra acolá, o ritmo dos passos no chão, a melodia e o ritmo da voz das pessoas… Sou muito curiosa e fico muito atenta aos sons que me aparecem.

O disco conta com colaboração de diversos músicos e cantores moçambicanos. Sabia com quem queria trabalhar?

São todos meus amigos e fazem parte do grupo incrível do António Prista, que se chama TP50. O grupo tem uma atividade brutal, faz muitos espetáculos e convida-me várias vezes para participar. Passámos uma semana metidos num estúdio, foi trabalho duro. As pessoas conferem um romantismo aos músicos. Acham que andamos sempre cheios de glamour, mas não é assim. O único glamour que existe é naquela pirâmide lá no topo que brilha resplandecente ao sol, que é quando vamos para o palco. O resto é tudo trabalho duro. Todos a dormir uns por cima dos outros nos aviões e nos comboios. A luta para que possamos ter concertos, para que possamos gravar música e continuar a fazer aquilo que amamos e ganhar algum dinheiro com isso.

O concerto de dia 22, no Trindade, vai ser uma celebração dos 40 anos de carreira?

Vai ser um concerto onde vamos pôr ao vivo, finalmente, aquilo que gravámos, que é sempre uma aventura. Os concertos são uma coisa muito diferente das gravações. Quando vamos para o palco abrem-se outras possibilidades de fazer música, outros espaços em que podemos improvisar, em que podemos inventar; então vai ser uma curiosidade. Os primeiros concertos são sempre incríveis, estou sempre com uma adrenalina total.

Que feedback tem tido das pessoas?

As pessoas têm amado este disco, o que me deixa muito feliz, porque mistura world music com eletrónica e é um disco de canções. É um disco simples de certa maneira, tem canções que saíram de improviso e tem poetas e músicos moçambicanos.

Depois deste concerto, vai apresentar o disco pelo país e pelo mundo?

Faço sempre várias coisas. Depois do espetáculo em Lisboa tenho um concerto com uma orquestra em Águeda, e depois vou para o Brasil dar concertos. Depois vou a Moçambique lançar o disco, e também tenho concertos na Noruega e na Macedónia. É muito bom levar esta mistura de uma pessoa portuguesa com toda esta abundância de influências. É um privilégio inacreditável que me aconteceu e que poderia não ter acontecido. Isto caiu no meu colo, foi por acaso.