Memória de Peixe

O álbum 'III' "aborda a reconciliação com os nossos fantasmas do passado"

Memória de Peixe

No próximo dia 16, os Memória de Peixe levam à Culturgest o mais recente disco, III. Conhecidos pelos seus loops intrincados de guitarra e ritmos dinâmicos, misturam elementos de indie, rock, jazz e hip-hop, que alternam com momentos de improvisação. Miguel Nicolau, fundador do projeto, esteve à conversa com a Agenda.

Porquê o nome Memória de Peixe?

O nome remete para quando o projeto foi criado, em 2011. A ideia começou com a premissa de criar canções com loops de guitarra de oito segundos. Portanto, daí a memória de peixe, loops de curta duração, para fazer canções acompanhadas à bateria.

Desde o início do projeto, em 2011, já houve várias alterações na formação da banda. Isso alterou a sonoridade do projeto?

Sim, altera sempre. São as pessoas que fazem a música, por isso há um lado muito humano nesse processo. As pessoas trazem as suas influências e as suas referências. A sua forma de pensar altera sempre o produto final e, ainda bem que é assim, porque ganha-se sempre em ter essa visão. No entanto, a alteração de membros não é algo premeditado, mas sim algo que faz parte da vida. Se há coisa que caracteriza esta nova formação é o facto de termos encontrado uma nova vida. Isso só foi possível com o Pedro Melo Alves e o Filipe Louro, que trouxeram a sua identidade e que deram tudo para que Memória de Peixe pudesse ser a banda que é atualmente.

Isso explica o hiato de nove anos entre o disco anterior e este?

Não é o tempo ideal, é certo, mas às vezes os hiatos são importantes para percebermos o que queremos dizer. A vida aconteceu: estive envolvido em muitos outros projetos enquanto produtor musical, houve uma pandemia… Nessa altura, já existiam alguns dos temas que depois vieram a fazer parte deste disco, porque era suposto continuarmos com a formação que tínhamos. Mas, muitas vezes as pessoas que estão a trabalhar connosco – como o Marco Franco e o Nuno Oliveira na altura – acabam por seguir o seu rumo. E quando vemos que a vida começa a seguir outros rumos, apesar de sermos amigos como dantes, às vezes questionamo-nos se vale a pena continuar. Nesse sentido, diria que este disco reflete também essa resiliência, dessa vontade de encontrarmos novos objetivos. Acabou por trazer não só a vontade de fazer o projeto voltar à vida, como também de passar por um processo de consciencialização interna que conduzirá idealmente para uma maior ação coletiva. É um disco que aborda, de uma forma esperançosa, estes temas de superação e de reconciliação com os nossos fantasmas do passado. Há aqui todo um leque de coisas que só é possível porque a vida também acontece e pensamos nela.

Achas que Portugal acolhe bem o jazz?

Penso que há um crescendo cada vez maior e uma vontade cada vez maior em ter música de todos os géneros e estilos, mais particularmente nos últimos tempos. Há cada vez mais festivais diferentes, com cada vez mais bandas portuguesas que têm estas junções, estas fusões de género. E acho que as pessoas estão com muita vontade de ouvir este tipo de música.

Quando crias um álbum há a preocupação de respitar todo um conceito ou vais compondo temas de forma aleatória?

É muito uma mistura dos dois. O processo é às vezes consciente e inconsciente, ou seja, há uma premissa neste disco que foi claramente encontrar essa paz, essa esperança, essa vontade de encontrar um novo sentido para as coisas, e isso também tem a ver com quem nós somos enquanto pessoas e a fase por que estamos a passar. Sem querer, isso transborda para todos os temas: uns mais eufóricos, outros mais contemplativos. Mas, acho que, de uma forma geral, este período e esta formação – que espero que seja definitiva desta vez – partilha desta visão e quis também ser parte ativa no processo de criação. Portanto, tem de haver uma premissa que una as pessoas numa variedade estilística muito grande de referências, vindas do jazz, do pop, da canção, e que confluem todas na mesma forma de pensar.

Norberto Lobo faz uma participação na canção Under the Sea. Como foi esta colaboração?

Foi muito giro. O Norberto Lobo é nosso colaborador pontual e fez parte do início da terceira vida deste projeto. Foi um momento belíssimo de improvisação em que o Norberto, ao primeiro take, criou um convite mágico às pessoas: o de mergulharem no mundo encantado e aquático do que é estar apaixonado, do que é o amor, e era exatamente esse o espírito que estávamos à procura e isso aconteceu em estúdio. Este disco tem estes momentos muito felizes de cristalização de coisas que só acontecem uma vez. A música do Norberto nasce desta vontade, desta boa onda que nós temos todos em conjunto. Deu-se o acaso feliz de a música ser uma jam, enquanto instrumental, que depois foi trabalhada, mas o take que está no álbum foi o primeiro. Estávamos todos no estúdio, parvos com o que estava a acontecer. O disco tem muito esta magia. E há também outras músicas onde isto aconteceu. Tudo isso será muito explorado no concerto da Culturgest. Vai ser um espetáculo especial que aborda a questão das transmissões do passado e do futuro, como se estivéssemos a captar memórias.

“Enquanto projeto independente, temos vontade de fazer as coisas com muitos amigos, mas pouco dinheiro”

Estão a preparar um espetáculo com recurso a vídeo, uma espécie de cine-concerto…

Sim, o projeto tem esse lado multidisciplinar. Talvez por sermos uma banda mais instrumental, temos essa vontade de explorar o lado multidisciplinar das canções, de apresentar vídeos, apresentar imagens às pessoas. Enquanto compositores e criadores, também estávamos a pensar nessas imagens. Este concerto vai ser um concerto único e especial, que vai usar a imagem, a cenografia, e ter som espacializado, que só a Culturgest oferece. Vamos criar uma experiência imersiva a partir das canções do álbum, mas com um tema central: mensagens e fragmentos de memórias que são transmitidas e que não se sabe de onde vêm, podem ser do passado, podem ser do futuro. Portanto, há um lado vintage sci-fi.

A identidade visual é muito importante no vosso projeto. Dirias que é um prolongamento do universo musical?

É uma coisa que nos caracteriza, não só enquanto projeto, mas também individualmente. Gostamos muito do lado do cinema, do lado visual, de espetáculos que cruzam várias disciplinas. Acho que este projeto tem essa gênese, portanto temos vontade, sempre que possível, de tornar as coisas ainda mais sugestivas.

Estão nomeados para os PLAY – Prémios da Música Portuguesa na categoria de Melhor Videoclipe, com o vídeo de Good Morning… ficaram surpreendidos?

Somos uma banda que muitas vezes não consegue ter os meios que ambiciona. Em relação aos Prémios Play, acho que a nossa grande vitória não é a nomeação em si. Não vemos a música assim, mas claro que é um privilégio podermos mostrar a nossa música e o nosso trabalho, muitas vezes num contexto onde só está quem tem grandes meios. Isso prova que, enquanto projeto independente, temos muita vontade de fazer as coisas com muitos amigos, mas pouco dinheiro. No entanto, tenho de fazer um parêntesis porque, apesar de haver pouco dinheiro, fomos apoiados pelo GDA (Gestão dos Direitos dos Artistas) e pela SPA (Sociedade Portuguesa de Autores) que são pilares e instituições importantíssimas para a proliferação da criatividade e da arte em Portugal. Quem nos dera que houvesse mais instituições assim e acho que o caminho só pode ser esse, o de investir mais na Cultura.

Este ano atuam no Festival Paredes de Coura. Qual é a diferença entre atuar num festival ou numa sala como a Culturgest?

O objetivo da banda é fazer música sem precisar de muitos adereços. A música tem de funcionar por si e o festival tem esse lado de mostrar às pessoas que somos esta banda que tem esta música para tocar. Antes deste disco sair, fizemos uma pré-tour, uma pré-apresentação do álbum e tocámos em clubes mais pequenos. Quisemos sentir a energia das pessoas. Foi muito bom porque as salas esgotaram quase todas e o nosso projeto estava inativo há muito tempo. Ou seja, foi uma experiência totalmente diferente do que será atuar em Paredes de Coura num festival onde sempre sonhei estar.

Há algum concerto que estejas com muita vontade de assistir?

King Krule! Já o sigo há muito tempo e adoro as composições dele, tem discos fantásticos. Curiosamente, quando compusemos a Not Tonight estávamos a ouvi-lo. Acabou por ser uma referência não propositada [risos]. Claro que o festival tem bandas incríveis, desde portuguesas, como os Unsafe Space Garden, a nomes como a Capicua… Há um equilíbrio muito bom no cartaz, e prevejo que vai ser incrível.