teatro
O Sagrado e o Político
Pasolini por John Romão
Um ano depois de ter abordado o universo de Pier Paolo Pasolini em Cada Sopro, de Benedict Andrews, o jovem encenador John Romão apresenta duas criações inspiradas em obras do escritor, poeta, cineasta e ensaísta italiano. Em Teorema (Teatro Municipal São Luiz, 27 e 28 de novembro) desafia-se a simbologia do sagrado na contemporaneidade; Pocilga (Culturgest, 15 a 17 de janeiro de 2015) penetra no jogo da política através do conflito entre vícios privados e públicas virtudes.
Quando passam quase 40 anos sobre o assassinato de Pier Paolo Pasolini (1922-1975), a obra deste vulto maior da cultura italiana do século XX vai marcando o panorama teatral português por estes dias. Depois da KARNART ter explorado o romance inacabado Petróleo, ou do Teatro da Cornucópia ter apresentado a “tragédia clássica” Pílades – e, antes disso, ter permeabilizado o “seu” Íon de Eurípedes com um trecho de Pasolini –, John Romão apresenta, nos próximos meses, duas leituras do díptico Teorema e Pocilga, textos que resultaram em filmes, de 1968 e 1969, respetivamente.
No primeiro espetáculo, Romão regressa ao “ambiente” que já havia contaminado a peça Cada Sopro, uma “reapropriação” de Teorema pelo australiano Benedict Andrews, coencenada com Paulo Castro para a edição de 2013 do Festival de Almada. O encenador (e, neste caso, também ator) apresenta no Teatro São Luiz “uma experiência sensorial e de contemplação”, de certo modo mais próxima do filme homónimo e das problemáticas sobre “o sagrado e a linguagem” que rodeavam Pasolini à época em que o dirigiu.
“A função de ver é essencial no filme, que praticamente não tem palavra”, sublinha Romão. Em Teorema, o espetáculo, respeita-se a tese pasoliniana da “linguagem da ação” associada ao cinema enquanto “realidade tout court” (o espetáculo integra, a propósito, o Festival Temps d’Images). Assim, a cena torna-se “cinematográfica, apesar de a cortina subir e descer recorrentemente”. Dispensa-se praticamente a “língua escrita-falada”, buscando-se uma procura do sagrado (na contemplação do movimento) aqui encarnada por 12 skaters que assumem o papel de “estrangeiros invasores” do conforto e segurança do “palácio burguês”.
Em Teorema “busco uma experiência de sacralização que encontre a graça na suspensão, no salto, na queda”, sublinha o encenador. “Os skaters [que nesta leitura substituem o enigmático ‘visitante’ que surge para colocar em causa a “ordem” burguesa que “perdeu o sentido do sagrado”] funcionam como figuras profanas, móbil para a captação do desejo, representando enquanto grupo, ícones da sociedade capitalista de hoje. Isso dá-lhe um estatuto de entidade divina, iconográfica e fetichista”. Simultaneamente, “procuro neste grupo algum paralelismo com o subproletariado que Pasolini não se cansou de filmar. Também os skaters são marginais, embora filhos da sociedade de consumo e representem, hoje, uma marginalidade que se tornou ‘estilo’, logo assimilada pelos padrões sociais em que vivemos.”
Num espetáculo para skaters e ator (esteve para ser um bailarino, por sinal o antigo colaborador de Pina Bausch, Damiano Ottavio Bigi, que Romão conheceu em 2012, em residência artística na Bienal de Veneza) há ainda outro elemento preponderante em palco: um músico – que está para o filme como a personagem do ‘mensageiro’. O acordeonista Fábio Palma interpreta, ao longo do espetáculo, a peça “religiosa, quase barroca mas muito experimental” Et exspecto da compositora russa Sofia Gubaidulina. “Agradava-me ter a presença do acordeão, um instrumento conotado com a música de raiz popular; e essa sonata de Sofia tem muito ar, esse ar que ela trabalha exemplarmente e que eleva os protagonistas em cena”, frisa.
Em janeiro, Pocilga
Se Teorema é “uma peça visual e sonora, feita em função do movimento”, Pocilga é uma peça para atores com a palavra no epicentro da ação. Aos olhos do desfecho dessa vida violenta que Pasolini viveu, reforça-se a ideia de os dois textos/filmes formarem um díptico. “Ambas parecem antecipar a morte do autor. O modo como leio Teorema sublinha, dentro das suas múltiplas camadas, as circunstâncias em que morreu; Pocilga era assumido pelo próprio como um texto autobiográfico, no sentido em que as práticas privadas do protagonista eram tão reprovadas socialmente como a homossexualidade do autor. Mas, o final vai ainda mais longe e olha sobre o modo como o desejo devora o homem”, sublinha Romão.
Na sua aparente simplicidade, Pocilga é uma peça sobre identidade e política. O encenador conjuga elementos saídos das duas narrativas paralelas do filme (uma ambientada numa comunidade canibal do século XVI e a outra na Alemanha dos anos 60 do século passado) para contar a história do filho de um candidato a primeiro-ministro que tem como segredo as visitas regulares à pocilga para manter relações sexuais com porcos. Quando o pai descobre que o seu adversário político teve um importante papel nos crimes do nazismo, é confrontado com o vício privado do filho, e enceta um jogo de ocultação que culmina num desfecho trágico.
Pela primeira vez encenada em Portugal, a peça conta com atuações de Albano Jerónimo, João Lagarto, Ana Bustorf, Cláudio da Silva, Pedro Lacerda, Mariana Tengner Barros e Paulo Pinto, no papel de Espinoza, o filósofo, encarnado num porco. Como diria Pasolini, “a burguesia é só verborreia” e Pocilga, nesta versão de John Romão, faz-lhe efetiva justiça.
Pasolini, 40 anos depois
Crime político, ou “o desejo que devora o homem”? Pasolini foi assassinado a 2 de novembro de 1975, na praia de Ostia, a alguns quilómetros de Roma. As circunstâncias da morte permanecem até hoje por esclarecer, sabendo-se que terá sido espancado e, depois, atropelado com o seu próprio carro. As rodas de skate que rolam em palco no Teorema de Romão cercam o protagonista (o próprio Romão). Projetam essa morte, mas ao mesmo tempo parecem fazer viver uma obra e um pensamento que parecem irresistíveis aos dias de hoje. Será pelo teor anticonformista? Será pela importância de voltarmos ao político?
Romão confessa ter sido absolutamente casual esta aproximação a Pasolini. “Terá acontecido em 2012 esta fixação na sua obra. Começou, penso, numa sugestão do Jorge Silva Melo que selecionou algumas peças enquadráveis no trabalho que vinha desenvolvendo, nomeadamente uma de Genet e, precisamente, a Pocilga, de Pasolini”. Mas, compreende “o fenómeno que alguém designou como Pasolini renaissance”, e que até tem filme a estrear brevemente [Pasolini, de Abel Ferrara, com Willem Dafoe no papel principal]. “Fazer Pasolini é inevitavelmente um ato político, e a sua obra e pensamento, até porque era um marxista empenhado e envolvido, mantêm-se profundamente atuais e urgentes”. Porém, nestes dois espetáculos, confessa, “não senti a necessidade de ser tão político quanto Pasolini foi.”
Como justificar então este apelo? “Sinto um eco constante de Pasolini. Encontro-me enquanto criador no trabalho dele, que é complexo e desafiante. Há muito, mesmo muito para descodificar…” E estas duas peças são isso: “nada do que se diz é, tão só, aquilo que se disse”. Tal qual a realidade que Pasolini fixou, pensou e legou aos vindouros.