A tragédia das almas corrompidas

João Mota dirige "A Troca", de Paul Claudel

A tragédia das almas corrompidas

No final do século XIX, o dramaturgo e poeta francês Paul Claudel iniciava a sua carreira diplomática nos Estados Unidos da América. Por essa altura escreveu A Troca, peça reescrita meio século depois, sublinhando-lhe um caráter ainda mais pessimista sobre a América. É essa última versão que João Mota encena no mais recente espetáculo da Comuna, interpretado por Maria Jorge, Hugo Franco, Rogério Vale e Maria Ana Filipe.

“Esta peça é completamente anticapitalista”, frisa o encenador João Mota, lembrando que Paul Claudel, vulto da literatura francesa e figura de múltiplas controvérsias, católico convicto e militante desde os 18 anos, abraçou a carreira diplomática na última década do século XIX, tendo desempenhado o cargo de vice-cônsul em Nova Iorque e Boston. Embora haja uma dimensão universal no modo como as personagens encarnam vários aspetos da existência humana – Mota considera mesmo que “elas se completam” –, o seu olhar sobre os Estados Unidos da América (EUA) marca indelevelmente a peça de teatro L’Échange, datada de 1894 e reescrita quase 60 anos depois.

A ação de A Troca decorre algures na costa leste dos EUA, na propriedade de um rico e poderoso empresário, Thomas Pollock (Hugo Franco), que mantém uma relação com a atriz Lechy Elbernon (Maria Ana Filipe). Esse local tranquilo à beira mar emprega os recém-casados Louis (Rogério Vale), um jovem mestiço de origem indígena, e Marthe (Maria Jorge), uma camponesa francesa que partiu para a América por amor ao marido.

A paz em que vive o casal é abalada com o regresso inesperado dos ausentes Thomas e Lechy. Tentado pelos seus sonhos e ambições desmedidas, Louis trai Marthe, envolvendo-se com Lechy. Por sua vez, o poder manipulatório de Thomas, para quem “o dinheiro é a única coisa que vale a pena”, abate-se sobre as mais profundas convicções de Marthe.

O olhar cáustico do europeu Claudel sobre a América torna-se evidente, desde logo, no personagem de Thomas Pollock. “Ele é uma representação evidente daquilo que são os EUA”, nota o fundador da Comuna. “A vida para ele é negócio, tudo é troca, e não é só o capital; são as almas, são os corpos”. O encenador não deixa de transportar esta imagem para a conjuntura internacional, lembrando o poder que os EUA exercem sobre a América Latina, subjugando-a desde há longas décadas aos seus interesses, e para aquilo que se está a passar na Ucrânia. “Odeio o Putin, mas é cada vez mais evidente que os EUA têm todo o interesse na guerra porque o negócio é o armamento.”

É quase impossível não ver em Thomas Pollock a encarnação mefistofélica que corrompe as almas de todas as outras personagens, comprando-as ou “propondo-lhes uma troca”. Tudo é, pois, transacionável no mundo concebido pelo capitalista (na primeira versão, é um proprietário rural; na segunda, pode muito bem ser um especulador de Wall Street), e só Martha, através do seu ascetismo, resiste e não cede, embora isso implique a via sacrificial. Louis é presa fácil pela sua ansia de liberdade e ambição pessoal; e Leche já foi capturada há muito tempo, restando deixar-se habitar pelas personagens que encarnou no teatro para se reencontrar com a verdade.

Esse encontro com a verdade através da arte de representar é um dos aspetos que fascinou Mota nesta incursão pela peça de Claudel. “A dada altura, a Leche clama pela sua nudez de atriz para se mostrar com toda a transparência. Ela diz que só é verdadeira quando representa num palco. Isso diz muito sobre o ator e sobre aquilo que é o teatro.”

Para além de ser “uma peça extraordinária e atual”, o encenador, recentemente homenageado pelo Festival de Almada pelos 65 anos de carreira, gosta de lembrar Claudel como “um grande poeta e, em A Troca, encontra-se uma musicalidade da palavra que é rara e que tentámos manter o melhor possível na tradução” [de Luís Vasco]. Até porque, “é essa musicalidade que leva à emoção”, amiúde tão avassaladora, “que há até quem chore com esta peça”, conclui.

Com estreia agendada para dia 12, A Troca está em cena até final de julho, sendo a temporada do espetáculo retomada em setembro, em datas ainda a anunciar.