entrevista
Miguel Loureiro
O novo diretor artístico do Teatro São Luiz
Actor e encenador, Miguel Loureiro é um dos artistas mais requisitados do teatro português da atualidade. Distinguido com o Globo de Ouro SIC/Caras em 2018, pelo seu papel na peça Esquecer, e com o Prémio Autores da SPA para melhor ator, em 2019, por Timão de Atenas, Loureiro foi o nome escolhido pela empresa municipal EGEAC para assumir, a partir da temporada 2023/2024, a direção artística do Teatro São Luiz. Neste novo e desafiante papel, o também dramaturgo promete aos lisboetas um teatro cada vez mais aberto à cidade e sob a égide de uma ideia permanente de celebração.
Pela primeira vez, a direção artística do São Luiz Teatro Municipal é assumida por um artista no ativo. Acha que isso é por si só razão para haver uma mudança substantiva no modo como se vê e se pensa este teatro?
Não gosto de grandes mudanças, não gosto de tábuas rasas e muito menos de revoluções. Sou por natureza alguém que gosta de conservar o que está bem, o que tem dado frutos e, neste caso, aquilo que tem promovido uma ideia de teatro municipal. Sendo um artista, tenho naturalmente uma visão artística para este teatro, como o Jorge Salavisa teve, embora quando o dirigiu não estivesse no “ativo”. E mesmo os meus antecessores, o José Luís Ferreira e a Aida Tavares, não sendo artistas, pelo seu tempo de convívio com eles adquiriram uma linguagem que facilitava a comunicação nesse sentido. Eles compreendiam o artista, não se limitando a uma visão administrativa ou burocrática.
Teremos, portanto, uma continuidade…
Digamos antes que estou a procurar melhorar aquilo que pode ser melhorado dentro do padrão anteriormente estabelecido pela Aida Tavares, numa aproximação suave, numa mudança aos poucos. Como sublinhei, não gosto de mudanças bruscas. Acho que na maior parte das vezes servem apenas para coincidir com a imagem que alguém tem de nós e, daí decorrente, de sentirmos a necessidade de fazer diferente.
A Aida Tavares esteve oito anos à frente do Teatro São Luiz. Há algum traço que gostaria de destacar nos seus mandatos e que, seguramente, terão continuidade no seu?
Reconheço que as aproximações que a Aida fazia ao tecido cultural do país através do São Luiz sempre me pareceram muito acertadas, e nesse sentido, aplicarei a minha visão, embora com posições diferentes acerca de um conjunto de coisas. Contudo, há uma trama que é comum: como dirigir um teatro com esta amplitude, responsabilidade e pergaminhos na cidade de Lisboa. Aí é que me devo pôr sempre, abdicando muitas vezes da minha personalidade.
Isto leva-me a perguntar como é que a personalidade do artista vai lidar com a missão do diretor artístico?
São, antes de mais, papéis diferentes. Estou à frente de um equipamento que faz parte da EGEAC, empresa que tem como missão gerir um conjunto de equipamentos culturais municipais e, portanto, desde logo é necessário responder à missão do São Luiz no conjunto do património gerido pela empresa. O que procurarei aplicar é um carisma próprio, um carisma no sentido religioso e que não tem a ver com personalidade. Ou seja, não estou aqui para impor, mas para dialogar no intuito de articular a herança desta casa com uma, duas ou três aberturas que proponho. Depois, veremos se isso tem acolhimento no que está estabelecido e no acordo que este teatro tem com a cidade.
Assumiu funções a 1 de junho. Qual foi o primeiro desafio que se lhe colocou?
O primeiro desafio foi dizer “estou aqui”. Comecei por chamar todos os artistas programados para esta temporada para lhes comunicar que, apesar de esta programação ser maioritariamente da responsabilidade da anterior direção artística, eu estou com eles. Um a um, tentei perceber a natureza de cada proposta e a partir daí estabelecemos cumplicidades, contrapomos ideias, etc. Com isto, procuro constituir diálogo, lastro e património na minha relação com os artistas. Naturalmente, tenho inclinações para determinadas linhas artísticas, mas enquanto diretor desta casa tenho que me abstrair…
E essas conversas têm sido importantes para o diretor artístico?
Claro que sim. Tenho falado com artistas com quem nunca pensei cruzar-me enquanto artista, e é nesse sentido que estou a considerar esta experiência muito enriquecedora, capaz de quebrar preconceitos que poderia ter em relação a determinadas propostas das quais me distanciaria de uma forma natural. Esta função está a obrigar-me a implicar com cada visão para perceber como podemos trabalhar para um bem comum.
Há pouco referia a importância de situar a missão do São Luiz no contexto da EGEAC, e uma vez que falamos de um teatro, e existindo outros dois teatros municipais naquele universo (o LU.CA e o TBA-Teatro do Bairro Alto), não seria proveitoso para a cidade um diálogo mais efetivo entre eles e, naturalmente, mais percetível pelos públicos?
Como artista coloquei várias vezes essa questão, até porque ao longo dos anos apresentei propostas tanto ao São Luiz como ao TBA. Aquilo que tenho notado é que há um ajuste de visões muito salutar e que vamos procurando estar em contacto para saber onde cada um de nós se encontra e qual é o sítio onde mais nos potenciamos. Tive recentemente uma reunião com a Susana Menezes [diretora artística do LU.CA, teatro municipal vocacionado para a infância] para clarificar a minha posição de não retomar o serviço educativo do São Luiz, isto é, de não programar para idades inferiores ao 9.º ano de escolaridade. Procurarei, isso sim, ter projetos vocacionados para a idade pré-adulta.
Quanto ao TBA…
Ainda não consegui reunir pessoalmente com o Francisco Frazão [diretor artístico], mas o TBA tem uma programação muito específica, que dialoga com determinadas franjas de público. Há uma diferença histórica para o São Luiz, que eu sempre vi como um teatro mais popular, desenhado assim pela própria memória histórica. Pisaram este palco grandes estrelas como Eleonora Duce ou Sarah Bernhardt, e isso leva-me a acreditar que o São Luiz – até porque tem uma sala, a Luís Miguel Cintra, com uma lotação de 600 lugares –, deve ser um teatro para receber espetáculos de grande dimensão e de grande apelo popular, sem com isso dizer que exclua os artistas novos. Terão é de ser artistas que não estejam necessariamente numa fase embrionária da pesquisa, que tenham já um discurso consubstanciado e afirmado.
Embora o São Luiz tenha ainda mais duas salas, a Mário Viegas e a Bernardo Sassetti…
Cada sala deste teatro permite aproximações diferentes, contudo pode haver uma proposta teatral, coreográfica ou musical que, embora não tenha ainda a sedimentação de público de grande escala, deva, pela natureza do projeto, ser apresentada na Sala Luís Miguel [Cintra] e não noutra. Ou seja, não há nenhuma regra que diga que o artista mais conhecido tenha necessariamente de ir para a sala maior e o não tão conhecido para a sala estúdio. Aliás, quero que isso se sinta na Sala Luís Miguel com um maior ecletismo de propostas…
Pode explicar?
Pretendo aumentar naquela sala a participação de outras disciplinas que não o teatro, ou seja, procurar uma maior paridade entre teatro, dança e música, e neste campo específico a música clássica e o jazz. No fundo, quero que o São Luiz seja menos uma sala de repertório e mais um palco municipal para os grandes concertos, para os grandes coreógrafos…
Por falar em concertos, a abertura da temporada faz-se com música, e tem já a sua assinatura…
É algo que quero que aconteça sempre na abertura de cada temporada: uma festa a assinalar o início das atividades. Já no dia 2, vamos ter na sala principal Suzie and the Boys com um espetáculo chamado A boémia de um cabaret sonoro. A Miss Suzie é uma artista que sempre habitou entre a performance e a música e surge aqui acompanhada de uma orquestra de músicos provenientes de bandas como Ena Pá 2000 ou Cais Sodre Funk Connection. Logo a seguir, subimos à Sala Bernardo Sassetti para escutar o projeto Zabra Soundscapes, do João Pedro Fonseca e do Manuel Bogalheiro. Este momento de celebração resume uma ideia de festa que desejo. Acho que o ato de ver um espetáculo, espetáculo esse que comporta uma visão artística do mundo, não se deve esgotar aí. Ir ao teatro deve ser um momento para estarmos com os outros, com os amigos. Uma celebração que traga consigo um sentido de festa, de nos expandirmos como que dionisiacamente, embora dentro das possibilidades daquilo que é um teatro municipal [risos].
Os primeiros meses desta temporada são muito marcados pelas escolhas da anterior direção artística. Quando começaremos a ver e a perceber a entrada em cena do Miguel Loureiro?
Embora o grosso da programação seja da Aida, há alguns espaços onde posso intervir. Para já, em outubro, há um ciclo de cinema sobre Lisboa, com curadoria da Ilda Teresa Castro, feito em parceria com o Arquivo Municipal de Lisboa, intitulado Topografias Imaginárias; e, em dezembro, teremos uma coreografia de início de carreira do Miguel Pereira, d´O Rumo do Fumo, estreada num Alkantara Festival há uns bons anos, Miguel Meets Karima. Para o ano, prevemos projetos com o MPMP-Movimento Patrimonial da Música Portuguesa e com a Orquestra Metropolitana de Lisboa; uma homenagem à Maria da Fé, que estamos a preparar com o Museu do Fado; um festival de jazz ao ar livre, que irá ocorrer em junho, aqui no Largo do Picadeiro; ou um ciclo de cinco, seis espetáculos, disseminados ao longo do último semestre, que pretendo realizar todos os anos, com foco num maestro, e que se iniciará com o Martim Sousa Tavares. Para além disto, tenho idealizado um espetáculo para assinalar o Dia Mundial do Refugiado, e que deverá envolver outros equipamentos municipais, e ainda um ciclo de pensamento que contará com nomes como Bragança de Miranda e Thomas Piketty. Mas, sobre tudo isto, falaremos mais tarde.
De certo modo, e embora esteja neste papel há tão pouco tempo, sente que o programador é também um autor?
Devo dizer que, como encenador, os meus últimos trabalhos tendiam a apagar essa coisa da autoria. O importante era criar as melhores condições para desenvolver os projetos e trabalhar com a comunidade de artistas que me acompanhavam. Enquanto diretor artístico, quero integrar a visão que tinha enquanto criador. Sabendo que este é o sítio de desenvolvimento das linguagens artísticas, e que estas são sempre implicadas e engajadas, é aos artistas que aqui se apresentarem que cabe intervir, colocar os problemas e filtrá-los através da arte. O meu papel é ser o anfitrião da “festa”.
Quando voltaremos a ver uma criação ou uma atuação em palco do Miguel Loureiro?
Neste momento, não sei. Uma coisa é certa, estatutariamente estou impedido de o fazer aqui. Agora, o meu compromisso é com a direção artística do São Luiz, no sentido de construir uma linha de programação e pensamento que continue a inscrever este teatro na cidade, neste preciso local que é o Chiado, procurando fazer sítio do sítio.