teatro
Natália em diálogo com Natália
"O Dever de Deslumbrar" no Clube Estefânia
Ana Rocha de Sousa, realizadora do aclamado Listen, estreia-se na encenação com O Dever de Deslumbrar, um original de Filipa Martins a partir da sua biografia de Natália Correia. Depois de ter subido ao palco do Centro Cultural da Malaposta, no âmbito do último LEFFEST, o espetáculo chega a Lisboa para uma curta temporada no Clube Estefânia.
Em ano de centenário daquela que foi uma das figuras mais marcantes da vida intelectual portuguesa do século XX, multiplicam-se as homenagens e eventos artísticos em torno de Natália Correia. Amplamente citada tem sido a extraordinária biografia assinada pela escritora Filipa Martins, O Dever de Deslumbrar, publicada em março deste ano pela editora Contraponto. A chegada do espetáculo homónimo ao palco acabou por surgir da vontade expressa da autora e da atriz Teresa Tavares em desafiar Ana Rocha de Sousa, realizadora consagrada pela aclamada longa-metragem Listen (2020), que assim se estreia na encenação com uma peça onde o teatro se cruza com a linguagem da dança e com o vídeo.
Em cena, estão duas Natálias: uma mais jovem (Teresa Tavares), outra mais velha (Paula Mora) – e, de certo modo, há uma terceira, silenciosa na palavra, mas presente no gesto e no movimento, a “Natália onírica” interpretada pela bailarina Ana Jezabel. Segundo Filipa Martins, a ideia de colocar “uma Natália em diálogo com a outra Natália permite dar perspetiva, quer sobre a evolução da vida dela, quer sobre a evolução do seu pensamento”, numa conversa onde passado e presente se entrelaçam com o próprio futuro. “Neste diálogo, está a própria Natália a lançar um repto aos dias de hoje e a inquietar-nos”, refere, ao apontar que “o texto faz pontes com a contemporaneidade, abordando temas como a violência doméstica, crime que ainda hoje é dos mais frequentes em Portugal, ou a censura da palavra, que verificamos neste constante julgamento entre pares, nomeadamente nas redes sociais.”
Embora esteja a passar por um período de “muitas solicitações”, Ana Rocha de Sousa assume a escolha assertiva que fez ao aceitar o desafio de encenar O Dever de Deslumbrar. “Mergulhar no pensamento de Natália Correia foi vibrante. Ao fazê-lo, descobri uma mulher que é muito responsável pela liberdade de todas nós, por mulheres como eu ou a Filipa estarmos aqui, hoje, a fazer o que fazemos. Por tudo isso, somos todas Natálias.”
Personalidade absolutamente impar, da obra escrita, que percorreu os mais variados géneros literários – do romance à poesia, passando pelo teatro e pela filosofia -, à intervenção pública e política, a riqueza múltipla do legado de Natália Correia acaba por estar também presente no desenho do espetáculo, não só através do trabalho de dramaturgia de Filipa Martins, que cruza as suas próprias palavras com excertos da obra, como na encenação de uma artista multidisciplinar como Ana Rocha de Sousa. “Sendo Natália tão multidisciplinar, ela que até pintora foi, faria todo o sentido que este espetáculo também o fosse,” assume a encenadora.
E, como isto é teatro, a inesgotável Natália Correia, com toda a sua inquietação e irreverência, com toda a sua dor e fragilidade, com todas as facetas que surpreendentemente ainda hoje se descobrem, surge em cena como figura teatral de excelência. “Isso está no constante manifesto que lhe parecia ser tão natural, mesmo na vida privada, e que a colocava sempre como que à boca de cena”, lembra Filipa Martins. Assim, “é perfeitamente normal associá-la ao teatral”, pelo que é impossível não perceber em Natália o potencial de uma grande personagem dramática.
A confirmar em O Dever de Deslumbrar, no Clube Estefânia, entre 30 de novembro e 3 de dezembro.