entrevista
Teresinha Landeiro
"A palavra é a coisa mais forte que a música tem. É o que manda na música, mais do que as melodias"
Os pais não ouviam fado em casa, mas quis o destino que Teresinha Landeiro fosse parar às casas de fados ainda criança. Com apenas 27 anos é considerada uma das maiores fadistas da sua geração, fazendo parte do elenco fixo da Mesa de Frades, onde canta semanalmente. Apesar de muito jovem, conta com três discos na bagagem: Namoro (2018), Agora (2021) e o mais recente Para Dançar e para Chorar, que apresenta a 26 de março no Teatro Maria Matos.
De onde vem a sua ligação ao fado?
Quando era pequena estava sempre a cantar. Cantava músicas do Festival da Canção e outras. O meu avô cantava-me folclore, e acho que isso também me influenciou. Um dia, uma amiga da minha mãe – que era sobrinha do António Melo Correia – ouviu-me e disse que eu devia cantar fado. Tinha uns 11 anos. Então, ela levou-me uns discos de fado e comecei a ouvir. Quando fiz 12 anos, foi a minha mãe que me levou a uma casa de fados no meu aniversário para ir ouvir a Ana Moura. E pronto, nunca mais parei.
E a sua mãe reagiu bem?
No início não, achava estranho. Dizia-me: “porque é que uma criança de 11 anos vem da escola, faz os trabalhos e depois vai ouvir fados? Isto é tão esquisito. Vai fazer outra coisa”. E eu só queria ouvir fados…
Também surgiu, desde muito cedo, vontade de escrever…
Sim, já em pequenina gostava de escrever em verso e a rimar. Reencontrei alguns textos da primária, e já nessa altura os fazia em verso. Todos com métricas meio confusas, mas escrevia muito a rimar, mais até do que em prosa. Quando comecei a cantar, comecei também a ter vontade de escrever os meus textos. Mas sempre com vergonha, não assumia que os escrevia. Até que um dia, o Pedro Castro [dono da Mesa de Frades] pediu-me para lhe mostrar as minhas quadras. Incentivou-me a cantá-las e comecei a escrever assim.
Existe uma ideia generalizada de que, para se ser fadista, é preciso ter alguma experiência de vida. É o exemplo perfeito de que isso não é verdade…
Quando comecei a cantar, havia muito poucas crianças nas casas de fado. Muita gente não gostava de me ouvir porque eu era uma miúda, e ainda hoje isso acontece. Por vezes ainda me perguntam o que é que tenho para dizer. A verdade é que vamos crescendo e vamos vivendo. E o fado é sobre a vida e qualquer pessoa vive, não é? Independentemente da idade que tenha. Claro que, se eu cantar uma história de amor aos 12 anos, não vou perceber bem o que estou a dizer. E se aos 16 tiver um desgosto amoroso vou achar que o mundo vai acabar. E depois com 20, vou olhar para trás e dizer “que parvoíce, claro que a vida continua”. E agora, com quase 28, olho para trás e vejo que, aos 20 anos, também não sabia nada. Portanto, acho que isto também faz parte dessa construção.
Como é que caracteriza o seu fado?
Venho de uma escola muito tradicional e ainda faço parte das casas de fado, o que torna o meu percurso mais tradicional. No entanto, à medida que vou gravando os meus discos e vou conhecendo outros compositores, sinto que me vou desviando um bocadinho daquilo que é o fado tradicional. Quem gosta de fado, mas não está bem por dentro do assunto, ouve os meus discos e diz que é fado de princípio ao fim. Mas, para o público fadista, aquilo que faço – mais até neste último disco – já é um bocadinho desviado. Trago toda a jovialidade que tenho, não sou uma pessoa pesada nem depressiva, canto coisas que me aliviam, mas também canto coisas mais densas, mais introspetivas. Porque o fado é sobre a vida, e a vida tem estes dois lados. Não estamos sempre bem, nem estamos sempre tristes. Acho que tem de haver um equilíbrio em qualquer estilo musical. O fado é tendencialmente mais melancólico e mais dramático, mas também precisa de ter um bocadinho do outro lado.
Sente-se mais exposta numa casa de fados ou no palco de uma sala de concertos?
Num palco. Sei que isto parece contraditório, mas se perguntarmos a um fadista que começou pelos palcos e só mais tarde passou a atuar em casas de fados, a resposta será ao contrário da minha, porque dizem que nas casas de fados as pessoas estão muito perto. Para mim isso é maravilhoso. Quando estou num palco, as pessoas estão longe, não consigo lê-las, perceber o que estão a sentir. Numa casa de fados estou colada às pessoas, sei se estão a gostar ou não, enquanto o palco é muito mais impessoal. Cresci nas casas de fados, foi ali que aprendi tudo. É ali que faço as minhas experiências e se não correr bem no dia a seguir vou fazer melhor. Num palco, não sei quando voltarei a ter a oportunidade de fazer melhor…
Sente que tem muita coisa para dizer?
Não gosto de estar parada e gosto mesmo de cantar. Sou tão feliz a cantar e a fazer discos, que espero que as outras pessoas também sejam felizes a ouvi-los. É nesse sentido que trabalho. Este disco acaba por não ser tanto escrito por mim (embora metade dele o seja), há convites a outros compositores, que é algo que sempre quis fazer: cantar outras pessoas minhas contemporâneas. Este disco nasceu desta vontade de trazer outras pessoas para a minha ilha musical. Sinto que tenho de estar sempre a fazer qualquer coisa. Há sempre esta necessidade de cantar e de produzir.
O novo disco chama-se Para Dançar e Chorar. Isto quer dizer que há músicas para todos os estados de espírito?
Quero que as pessoas se sintam confortáveis para chorar e para desabafar a alma, mas que também estejam à vontade para dançar e para se identificarem com momentos de euforia. Este nome também é uma justificação para eu poder cantar folclore, que é uma coisa que adoro, e que há muito tempo faz parte do repertório dos fados. Foi um excelente pretexto para o fazer.
Quis passar alguma mensagem específica?
Tenho andado a fugir um bocadinho de uma temática que é muito comum nas minhas canções mais antigas, que são as histórias de amor. É importante falar de amor, mas acho interessante usar a música para falar de outras questões que são relevantes para mim e que me inquietam. Tenho dois temas neste disco que falam sobre isso. Um é sobre o Alzheimer (inspirado num livro do Afonso Cruz, em que uma das personagens tem demência). Esta é uma das doenças que mais me assusta porque há uma perda de identidade gigantesca. O que é que nós somos sem memória? Será que existimos sem ela? Outro dos temas fala sobre o medo, que não é preciso ter medo de ter medo. O lado amoroso da minha vida está tão estável que não sinto motivação para escrever sobre isso. Acho que os compositores vivem dos dramas para conseguirem compor, e quando não há um drama evidente, preocupamo-nos com o resto. E isso eu acho interessante: não falar só de amor porque é uma tendência, mas falar sobre outras coisas.
Em relação aos compositores que convidou para este álbum, já tinha trabalhado com algum?
Conhecia a Maro porque ela foi à Mesa de Frades ouvir-me e um dia convidou-me para cantar com ela no CCB, para fazer a vez da Silvia Pérez-Cruz numa canção. A Beatriz Pessoa conheço também há algum tempo, das minhas incursões pelo jazz. O Jorge Cruz não conhecia pessoalmente, foi um pedido arrojado que lhe fiz porque adoro as composições dele. O Francisco Guimarães é um grande amigo que se está a revelar na escrita para o fado, e que desafiei a escrever uma letra. A Milhanas vai muito aos fados, portanto criámos uma relação muito próxima. Não nasceu nos fados, mas tem alma fadista. O Mário Laginha é uma referência desde pequena, está num pedestal. Então, desafiei-o com uma letra muito especial para mim e ficou um tema muito bonito. A Rita Dias fez uma letra muito bem-disposta para dançar e que aborda temas fraturantes do dia-a-dia.
É muito disciplinada a trabalhar?
Sim, estou sempre a pensar em coisas, sempre a compor. Agora um bocadinho menos porque a pressão de pôr um disco cá fora me rouba um bocadinho a criatividade. Há nervosismo e ansiedade. É muita energia focada numa coisa. Mas há pessoas a pedirem-me letras e eu tenho que entregar trabalho com quem me comprometo. Há muita gente nos fados que começou a convidar-me para escrever…
E é mais difícil compor para si própria ou para os outros?
Para os outros é horrível [risos]. A Cristina Branco convidou-me para escrever para o último disco dela. Entreguei-lhe três letras, sendo que uma delas eu já tinha escrito, ela leu e identificou-se. Foi um desafio porque estou sempre a pesar as palavras que vou usar e a pensar “será que ela quer dizer isto? Será que gosta desta palavra? Será que a estou a expor?” Então é uma confusão na minha cabeça. Mas faço um grande trabalho de pesquisa. Sou um bocado stalker, vejo o que as pessoas põem no Instagram, as descrições das fotografias… Converso muito com elas, faço muitas perguntas. Sou um bocado chata porque gostava que fizessem o mesmo comigo. Quando me entregam alguma coisa gosto de olhar e rever-me, por isso tento fazer isso com outras pessoas. Escrever para mim é muito mais simples porque sei o que estou disposta a dizer e como é que quero falar das coisas.
Segue uma linha tradicional no fado. Isso pode ser impedimento para um dia gravar um disco com uma sonoridade totalmente diferente?
Penso que não, porque acima de tudo sou intérprete. Quando somos apaixonados por música é fácil derrapar para outros caminhos e para outros estilos musicais, fazer parcerias com outros artistas. Mas há uma coisa sempre que me assusta: que um dia me digam que desvirtuei o fado. Acredito mesmo no fado como ele é. Não acho que seja necessário fundi-lo com outros instrumentos ou estilos musicais. O fado vive da forma como nasceu e como foi feito. Acho que o que inova são as letras que colocamos nos fados tradicionais. E essa é a magia: pegar numa melodia que tem 60 anos e cantar uma música que foi escrita hoje, usar melodias e estilos musicais antigos e torná-los atuais através das palavras. Na minha ótica, a palavra é a coisa mais forte que a música tem. É o que manda na música, mais do que a melodia. Canto fados tradicionais neste disco, mas há uma viagem para outro mundo. Tenho noção que as pessoas vão ouvir e vão dizer que isto é fado. E eu vou ter de responder continuamente “não é, são canções tocadas por um trio de fado, que eu escolhi cantar assim”. A estrutura não respeita, não encaixa no fado, mas não vejo problema nisso. É assim que me apetece fazer agora. Porém, quando canto fado é fado.
Como é lidar com a crítica?
É muito difícil. Não porque me ache intocável, mas desde muito pequena que tenho essa dificuldade. O nosso trabalho é uma coisa muito pessoal e quando o pomos cá fora é com muito carinho, por isso uma crítica custa sempre, mas temos de saber aceitar. Aliás, tive uma aprendizagem nos fados muito dura, muito rígida: comecei muito nova numa ‘escola’ em que não há grande pudor em dizer aquilo que se pensa e em que ainda há muito pouco elogio. Neste meio, acredita-se que o elogio pode deslumbrar o artista, portanto quando nos enaltecem acaba por ter mais valor. É difícil, mas também faz parte do crescimento e é essencial.
Dia 26 apresenta o disco novo no Maria Matos. O que está a preparar?
Vamos começar agora a preparar o palco e a pensar no que vai acontecer. É uma apresentação de novo disco, por isso quero que seja uma coisa especial e que consiga ter esta dualidade: para dançar e para chorar. Quero que isso seja bem marcado, para que as pessoas consigam sentir este contraste.