Justiça e abuso na barra de tribunal

Margarida Vila-Nova interpreta "À primeira vista", a peça-sensação de Suzie Miller

Justiça e abuso na barra de tribunal

Uma situação de abuso sexual coloca em causa todas as convicções de uma promissora advogada penalista, até aí implacável na defesa dos seus clientes. Tiago Guedes dirige a versão portuguesa de Prima Facie - À primeira vista, o premiado monólogo de Suzie Miller, com Margarida Vila-Nova num dos papéis mais desafiantes da sua carreira.

Não é fácil a uma mulher de origem modesta, sem lastro familiar na profissão, vingar no mundo da advocacia e destacar-se entre pares que ostentam apelidos com notoriedade na praça. Teresa Correia conseguiu-o a pulso, com uma invulgar capacidade de trabalho e especial mérito. E até com uma polémica dose de amoralidade, uma vez que, segundo ela, não cabe ao advogado lutar pela verdade, mas proporcionar a melhor defesa, mesmo que o cliente esteja a ser levado à justiça pelos piores motivos.

Imbatível nas barras de tribunal, interpretando o sistema judicial como um jogo onde só os mais astutos podem vingar, Teresa age em nome do direito universal à defesa, ostentando que a regra de ouro da sua profissão é a mesma que a de um motorista de táxi: aceitar seja qual for a “corrida” e não escolher o cliente.

Assim, nunca se deixa envolver emocionalmente e tem sempre presente a máxima de que o “bom advogado se limita a contar a melhor versão da história do seu cliente. Nem mais, nem menos”. Mesmo quando uma testemunha, mulher como ela, a olha nos olhos e lhe transmite a possibilidade de algum dia poder ser ela mesma a vítima, a mais do que promissora advogada não vacila.

Até ao dia em que um acontecimento terrível põe em causa todas as crenças e o modo como, até aí, Teresa encara o sistema. Agora, o jogo que tantas vezes jogou corre contra si.

Multipremiada, grande sucesso de público e de crítica, À primeira vista é a peça-sensação que consagrou a dramaturga (e advogada) australiana Suzie Miller. Da estreia em Sidney, em 2019, ao triunfo no West End e na Broadway nos últimos anos (que valeu à atriz Jodie Comer, da série Killing Eve, o Tony Award para melhor atriz em 2023), Margarida Vila-Nova descobriu a peça através de uma amiga, psicóloga, e, “em conversas”, achou-a tão pertinente que acabaram por ir a Londres ver o espetáculo.

Muito mais do que um thriller jurídico

“Era um texto não só desafiante, como inquietante pelo tema: o abuso sexual e a violência sobre as mulheres, a justiça que reflete a sociedade patriarcal, com uma visão machista e misógina”, sublinha a atriz após o notável tour de force que é vestir a pele de Teresa, ou Tessa Ensler, no original. “Penso sempre numa atleta de alta competição. É um papel muito intenso, que exige uma total disponibilidade e entrega física e emocional”. Para o ensaio a que assistimos, conta a atriz, “foram precisas mais de três horas de preparação”.

Embora a vontade de fazer a peça tenha ficado “em banho maria” depois da ida a Londres, por coincidência, Sandra Faria, da Força de Produção, já havia sinalizado o texto, pelo que, quando Margarida Vila-Nova lhe falou nele, conjugou-se com alguma celeridade a vontade de o estrear em palcos portugueses. Imediatamente a atriz pensou em Tiago Guedes, encenador e realizador, para o dirigir, seguindo-se a conciliação de agendas para levar avante a versão portuguesa de Prima Facie – título original em latim, que significa, literalmente, “à primeira vista”.

“Antes de aceitar o convite, pedi à Margarida para me deixar ler o texto, de modo a perceber se encontrava pontos que me interessassem. E encontrei, precisamente, um assunto que me interessa bastante, demasiadas vezes tratado de forma muito leviana, que é esta questão das linhas ténues do abuso dentro das relações”, lembra Tiago Guedes. “À questão do consentimento, e da falta dele”, a peça junta pistas para debater como a mulher continua a perder, “no confronto com os homens, no que diz respeito à lei e à justiça.”

Enquanto encenador, À primeira vista teve para Guedes dois particulares atrativos: “foi a primeira vez que encenei um monólogo”, logo, “quando estamos habituados a distribuir o jogo por mais do que uma pessoa, é aliciante perceber como fazê-lo só com uma”; e “depois, há o desafio de fazer um monólogo numa sala como o Teatro Maria Matos, com 400 lugares, sem grande proximidade ao ator. Foi necessário construir todo um dispositivo que ocupasse o espaço e que ajudasse à possibilidade do jogo” entre a atriz e a audiência.

Outra inquietação imediata que o encenador teve com o texto foi sentir que, muito provavelmente, seria mais interessante ter uma mulher a encená-lo. “Mas, logo percebi que isso não era importante”, por ser fundamental “convocar os homens para assuntos que geralmente se diz serem lutas das mulheres. Não, não são. São lutas da sociedade, lutas por uma noção de humanidade, e eu quero viver num mundo em que todas as pessoas, independentemente do sexo, sejam iguais.”

Entre o drama social e o thriller jurídico, é fácil perceber o sucesso de À primeira vista que, para além dos países anglo-saxónicos, tem marcado temporadas teatrais por toda a Europa e Brasil. A peça é um convite ao debate sobre assuntos que nos interessam a todos enquanto cidadãos. Sem estabelecer veredictos, mas abrindo caminhos para o debate, a versão portuguesa do texto de Suzie Miller convida a uma reflexão profunda a propósito da violência sobre as mulheres (e Portugal, como se sabe, é um país com números muito pouco abonatórios nesta matéria), sobre o abuso sexual e, claro, sobre a justiça. Como lembra Tiago Guedes, “sabemos que é impossível haver uma justiça imaculada, mas estamos todos de acordo que devemos ter uma justiça melhor.”

À primeira vista estreia a 24 de julho, no Teatro Maria Matos.