Os livros de setembro

Oito leituras para o início do outono

Os livros de setembro

“Camões é a gramática literária e histórica de Portugal”, escreve Carlos Maria Bobone na biografia Camões – Vida e Obra, publicada nos 500 anos do nascimento do “Príncipe dos Poetas”. O fim das férias marca o regresso ao trabalho e aos múltiplos hábitos quotidianos, incluindo a leitura. No mês de setembro, (re)leia Camões e acompanhe outras sete sugestões de leitura aqui propostas.

Carlos Maria Bobone

Camões – Vida e Obra

“Camões encheu de si próprio a História do seu tempo”, escreve Carlos Maria Bobone. Contudo, o autor depara-se com o facto de que “há (…) muito poucas fontes sobre Camões. As referências coevas de Camões são escassíssimas”. Por isso, este livro não será “certamente uma biografia e só num sentido muito lato poderá ser considerado um trabalho de critica literária. Haverá alturas em que se aproximará da História das mentalidades, outras em que se assemelhará a um estudo psicológico e outras em que o foco estará na beleza a que só com grande cinismo poderíamos retirar valor como ideia independente, de um verso ou de uma passagem”. A obra, exigente e de grande erudição, não pretende “acrescentar nada sobre Camões”. Pretende “purgá-lo, mostrar os acrescentos, as especulações que os entusiasmos naturalmente suscitam,” para que se possa fazer justiça quer à crítica capaz de “vislumbrar em Camões os esteios para mil e um desenvolvimentos do pensamento, da arte e da cultura, quer aos poemas de Camões, postos apenas como aquilo que são: não códigos biográficos, não intrigas palacianas, não manifestações políticas, apenas poemas, belíssimos poemas”. Porque, “ler Camões é ler o mundo, não só o que ele observou, mas o que nasceu depois dele, e por causa dele.” Dom Quixote

Luigi Pirandello

O Falecido Mattia Pascal

A obra dramática de Luigi Pirandello (1867/1936), Prémio Nobel de Literatura de 1934, questiona a identidade individual, dilui a distinção entre ator e personagem, teatro e realidade, forma e conteúdo, e antecipa o teatro do absurdo de Ionesco, Beckett e outros. Para além disso, expõe a ideia paradoxal de que o ser humano só se revela verdadeiramente quando usa uma máscara ou adota um papel. O seu terceiro romance, O Falecido Mattia Pascal, de 1904, marca uma rutura com o realismo dos seus trabalhos iniciais e traz-lhe a consagração crítica. Narra, com considerável dose de humor negro, a história de um homem que regressa a casa depois de, supostamente, se ter suicidado e que não consegue convencer a família de que está vivo. Mattia encontra-se, assim, nas suas próprias palavras, “Morto? Pior do que morto: (…) os mortos já não têm que morrer, mas eu sim, eu ainda estou vivo para a morte e morto para a vida”. A exploração do tema da identidade e a bizarria das suas premissas antecipam muitas das ideias posteriormente desenvolvidas no seu teatro. Relógio D’Água

Francisco Valente

Espelho Mágico – uma história do cinema

Todo o cinéfilo tem a sua história do/com o cinema, mas poucos são os que mostram disciplina, método e persistência necessários para discorrer sobre ela ao longo de 628 páginas. Há uns anos a residir em Nova Iorque, onde integra o departamento de cinema do Museu de Arte Moderna (MoMA), Francisco Valente lançou-se nesta viagem introspetiva, que visita todos os continentes e décadas aonde o cinema deixou obra, e organizou o itinerário ao sabor de uma cronologia interrompida sempre que lhe parecesse oportuno aproximar filmes de épocas diferentes, também porque o livro obedece a uma organização de certo modo temática. O espaço que Valente dedica a cada filme não excede o curto número de parágrafos, lançando-nos ideias, leituras, interpretações que na simbologia da viagem de comboio que o autor propõe, são como paragens breves numa estação em que por instantes nos é permitido fixarmo-nos sobre o cenário enquadrado por uma janela, conduzidos pelo olhar que o autor dirige a cada filme em particular, e são centenas de apeadeiros aqueles em que nos fixa a leitura. Não é propriamente uma história para iniciados, mas até para esses a curiosidade será recompensada. E, pretexto para que sozinhos façam a sua própria viagem. [Ricardo Gross] Orfeu Negro

James Baldwin

Notas de um Filho da Terra

James Baldwin (1924-1987) nasceu no Harlem, onde cresceu e estudou. Em 1948, partiu para França, fugindo ao racismo e homofobia dos Estado Unidos da América: “Acabei nas ruas de Paris, com quarenta dólares no bolso, mas com a convicção de que nada de pior me podia acontecer do que já me tinha acontecido no meu país”. Romancista, ensaísta, poeta e ativista dos direitos civis, foi, com Gore Vidal, um dos mais lúcidos espíritos críticos que a América produziu no século XX e um dos seus maiores intérpretes. Em 1954, Baldwin regressa inesperadamente ao seu país natal (“Não encontro nenhuma razão objetiva para o meu regresso à América naquele momento – e não estou seguro de conseguir encontrar também uma subjetiva.”). Aí, o editor Sol Stein propõe-lhe a edição de um livro, que viria a intitular-se Notas de um Filho da Terra, composto por dez ensaios de teor memorialístico. Estes textos, produzidos no alvor do movimento dos direitos civis, promovem uma profunda reflexão sobre a negritude e antecipam, de forma quase profética, as intensas transformações sociais que ocorreriam nos EUA, na segunda metade do século XX. Simultaneamente, formam um retrato genuíno e intenso de um autor em busca da sua identidade e liberdade enquanto artista, negro, homossexual e americano. Alfaguara

Sandro William Junqueira

Emídio e Ermelinda

Escreve Sandro William Junqueira, no romance A Sangrada Família: “A família é um lugar perigoso. Uma ode à carnificina. Uma matilha que se come a si mesma”. Emídio e Ermelinda narra a história da sua própria família, centrada na relação dos seus avós. Apesar de configurar “uma história que partiu vidas em pedaços”, não reproduz o mesmo olhar impiedoso sobre a instituição familiar, situando-se algures entre a ternura e a mágoa. Emídio foi um D. Juan, um artista, um demónio, um intrujão em fuga permanente.  Ermelinda “amou aquele homem de tal maneira que não poderia amar mais”. Esta obra tocante é também uma reflexão sobre a memória: “A memória é um lugar estranho. Muitas vezes dá ares de que está organizada, de que se sabe organizar, como uma competente bibliotecária. (…) Só que não. A minha memória trabalha a galope. Tem vontade própria. Não obedece a rédeas nem a toques no lombo”.  E uma interrogação constante sobre a relação entre realidade e ficção: “Talvez seja escritor por causa do meu avô. E insisto neste pouco credível trabalho de tentar contar a grande mentira da melhor maneira possível até que esta se torna na mais bela das verdades.” Caminho

Samuel Johnson

Ensaios sobre a Virtude e a Felicidade

Samuel Johnson (1709-1784) é considerado uma das figuras mais relevantes da literatura inglesa do século XVIII. A sua reputação ficou a dever-se aos ensaios morais e filosóficos publicados no The Rambler, a que se seguiram as sátiras constantes no The Idler que parodiavam tudo e todos, da política ao casamento, até à obsessão dos ingleses com o estado do tempo. A Dictionary of English Language, publicado em 1755, o seu feito literário mais importante e exigente, levou nove anos a completar. A ideia de compilar uma coleção de todas as palavras da língua inglesa não era novidade, porém a obra de Johnson não tem paralelo na profundidade e rigor da pesquisa, na abrangência e no uso de citações de outros autores para ilustrar o sentido dos diferentes vocábulos. Nesta obra monumental, o autor fez jus ao seu próprio aforismo: “O que é escrito sem esforço, em geral é lido sem prazer”. A maior parte dos textos reunidos na presente antologia tem origem nos periódicos The Rambler (1750-52), The Adventurer (1753–54) e The Idler (1758-60), selecionados segundo um critério temático: de um modo ou de outro, todos eles dizem respeito à virtude ou à felicidade. No seu conjunto, atestam um poder de observação da vida humana raras vezes igualado. E-Primatur

Cristina Pratas Cruzeiro

Atitude 74 – Pichagem e Pintura Mural na Revolução de Abril

Investigadora auxiliar no Instituto de História de Arte/NOVA FCSH, Cristina Pratas Cruzeiro começou a desenvolver o trabalho agora editado na sequência do projeto de pós-doutoramento que desenvolveu entre 2017 e 2022. Durante a investigação, a autora percebeu “que o período revolucionário português, em matéria de dinâmicas artísticas, permanecia com territórios extensos por aprofundar”, nomeadamente quanto à “massiva intervenção visual no espaço público”, ou seja, as pichagens e os murais que pontuaram cidades e lugares durante o período revolucionário. Nesta obra, propõe-se um enquadramento que indague sobre “especificidades, modos de produção e objetivos, que identifique características, performatividades e aspetos respeitantes à sua inscrição na memória coletiva do país”, indo além da perspetiva limitativa que encara a pichagem e o muralismo como “um reduto de uma visualidade de uma comunicação política”. Ao longo do livro, a investigadora procura, isso sim, enquadrar esta forma de ativismo – “um ativismo artístico”, como o nomeia – como expressão criativa de centenas de artistas, “cidadãos militantes”, que enquadrados em organizações partidárias, cívicas ou até de forma independente, decidiram “inserir-se no tecido social e ajudar a construir o país novo”, como escreveu Rui Mário Gonçalves. [Frederico Bernardino] Página A Página

Stênio Gardel

A Palavra que Resta

Nascido e criado na roça, Raimundo Gaudêncio de Freitas cedo começou a ajudar o progenitor, cujas pegadas devia ter seguido: ser pai de família e dono de um pedaço de terra. Porém, Raimundo gostava de homens e, ainda jovem, teve um caso amoroso com Cícero, seu amigo de infância. Este envolvimento será a “paisagem que desperta num pássaro preso o desejo de voar”. Depois de dois anos dum relacionamento às escondidas de todos, o pai de Cícero encontra-os. Uma descoberta marcada pela vergonha, pela violência e pela intolerância, que leva ao afastamento dos dois. A pedido da sua mãe que, entretanto, o culpa pelo mal que trouxe à família, Raimundo parte, levando consigo uma carta que Cícero lhe escreveu. Mas Raimundo não sabe ler e não quer que ninguém leia a sua carta. Mais de 50 anos se passam, Raimundo torna-se costureiro e partilha a casa com Suzzanný, um travesti que em tempos agrediu, tal como o pai tinha feito consigo, com medo do que as pessoas poderiam falar sobre ele. É aos 71 anos que Raimundo decide aprender a ler para descobrir o teor da carta que separava e ligava a vida dos dois. Vencedor do National Book Award para a melhor obra traduzida de literatura, A Palavra que Resta é o romance de estreia do escritor brasileiro Stênio Gardel. [Sara Simões] D. Quixote