Miguel Gomes

"O cinema faz-se com o imaginário e faz-se com o mundo"

Miguel Gomes

Depois do triunfo na Croisette, Miguel Gomes é o cineasta português atual que desfruta de maior reconhecimento internacional. A anteceder a estreia portuguesa, Grand Tour (Prémio de Realização no último Festival de Cannes) foi anunciado como o filme que nos representará na corrida aos Oscars da edição 2025. Tudo numa altura em que Gomes, há muito, tem a cabeça no próximo projeto, que promete ser a maior produção da sua carreira: a adaptação do clássico da literatura brasileira, Os Sertões, de Euclides da Cunha, a ser filmado naquele país. A dias de Gran Tour chegar às salas (19 de setembro), o cineasta conversou connosco na Cinemateca Portuguesa.

Algures entre o final da escola de cinema e a primeira curta-metragem que realizou (Entretanto, 1999), fez uma viagem a Macau de que resultou o projeto Macau Farm, levado a cabo por outra pessoa. Essa viagem está na origem do seu interesse pelo continente asiático, explorado agora abundantemente em Grand Tour?

Quando saí da escola de cinema não tinha grandes perspetivas sobre o que havia de fazer à vida, porque tinha tirado o curso de produção e era péssimo a organizar tarefas de produção em cinema, inclusive servir cafés. Ninguém me queria para trabalhar. Naquele momento, um colega da escola de cinema tinha um projeto para filmar em Macau e chamou-me para ser uma espécie de assistente de realização. Passei em Macau entre um e dois meses, e foi o primeiro contacto que tive com a Ásia. Lá, descobri que como em todos os lugares, não haver uma Macau, mas muitas Macaus diferentes, com circuitos distintos. Se elevarmos isto ao território asiático (e não filmei por toda a Ásia; filmei sete países), as diferenças são gigantescas. Dou sempre o exemplo da maneira como filmámos no Japão e como filmámos nas Filipinas. Nas Filipinas, o produtor local perguntou-me se conhecia o conceito de “shoot and run”, porque não se obtinham autorizações nenhumas, e é assim que muitos realizadores fazem filmes nas Filipinas, o que tem a ver com a cultura do país. No Japão, lembro-me da vez em que ia filmar num templo e cheguei ao parque de estacionamento, estava a nevar, vi qualquer coisa que me interessava e pedi para colocarem ali a câmara para filmar. O chefe de produção que nos acompanhava disse que não podia filmar o parque de estacionamento, porque não tinha sido isso o combinado. Por aqui se podem ver as diferenças culturais que existem na Ásia.

Em que circunstâncias descobriu o livro de viagens de Somerset Maugham The Gentleman in the Parlour, e o que resta dele no seu filme?

O livro está editado em português pela Tinta da China e tem por título Um Gentleman na Ásia. Relatos de viagens e de viajantes interessam-me enquanto género literário. Comprei o livro para lazer, numa altura em que estava prestes a casar-me com a Maureen. O livro é constituído por descrições de locais, de rituais, em alguns dos países onde estive, e inclui relatos do que o Somerset Maugham viu, mas também de encontros. O autor encontra alguém e descreve o que aconteceu ou uma história que lhe contaram. Às tantas há duas páginas em que diz que conheceu um britânico que estava em Mandalai, na Birmânia, que lhe contou a história do seu casamento, que é basicamente o ponto de partida deste filme. Ele tinha uma noiva inglesa em Londres com quem, por uma série de contratempos, nunca tinha casado. Então, ela apanha um barco e chega à Birmânia e ele entra em pânico e foge. E ela vai enviando telegramas para os locais por onde ele passa fugindo. Basicamente trata-se de uma anedota de duas páginas sobre homens e mulheres, e duvido mesmo da existência real desse indivíduo.

“É um prémio incrível ser reconhecido como melhor realizador no maior festival do mundo.”

Quando anunciaram em Cannes a distinção que lhe coube de melhor realizador, chegou a pensar que poderia obter ainda o Grand Prix ou a Palma de Ouro, ou ficou inteiramente preenchido com a alegria do momento?

Fiquei mesmo muito contente com o prémio. É um prémio incrível ser reconhecido como melhor realizador no maior festival do mundo. Para além disso, sabia que não poderia receber mais nenhum prémio, porque segundo os regulamentos alguns prémios não são acumuláveis.

Quando se está num festival a promover um filme, que espaço há para ver outros filmes?

Depende do período em que fico no festival. Eu e a Filipa Reis, produtora deste filme e do próximo, decidimos ir o tempo todo e dedicar a primeira parte do festival a fazer encontros relativos ao filme seguinte [Selvajaria, adaptação do livro Os Sertões, do autor brasileiro Euclides da Cunha], o que me deixou algum espaço para ver filmes. Mas, a partir da véspera da estreia do Grand Tour não consegui ver absolutamente mais nada, porque estive a lidar com as entrevistas e tudo o que diz respeito à receção ao filme.

Edward, o diplomata protagonista em Grand Tour, escuta de um monge japonês a seguinte frase: “Abandone-se ao mundo Mr. Abbot, verá que será por ele recompensado.” A frase traduz de algum modo a sua prática do cinema?

O cinema faz-se com o imaginário e faz-se com o mundo. Uma coisa não exclui a outra. Por isso tanto me aborrecem os filmes da Marvel ou do Senhor dos Anéis, porque criam uma bolha onde não existe realidade, uma bolha de fantasia, como também me aborreço quando o cinema rejeita de forma férrea e dogmática qualquer janela para o mundo da imaginação. No caso do Grand Tour isso é levado a um extremo: existe nele um constante vai vem entre o real e o imaginário, sendo que o real por vezes parece mais fantasioso que a ficção.

Procurou jogar com o conceito de found footage no sentido de criar a sensação de que as imagens documentais pudessem pertencer ao tempo histórico do filme (os anos 1910) e ao que as personagens observaram em viagem?

Na larga maioria das imagens filmadas na Ásia , estamos no mesmo sítio em que se passa a ação do filme. Mas, num outro tempo, o de agora. Quando se utilizam imagens de arquivo elas servem para dar um contexto extraficcional daquele tempo. São imagens do passado. Aqui era inverter essa lógica e trabalhar com imagens do presente. A ficção passa-se num tempo e o que vemos são imagens do futuro. O filme é, simultaneamente, feito de descontinuidade e continuidade. Depende muito de cada espectador valorizar mais a continuidade ou a descontinuidade. Há pessoas que integram completamente na ficção as imagens que fizemos na Ásia, e outras que sentem a natureza diferente das imagens de estúdio e das imagens captadas no mundo real. A escolha do preto-e-branco em 16mm, que dá esse lado com mais grão, era uma forma de lidar com materiais tão distintos e criar uma maior homogeneidade. Os choques seriam muito mais violentos utilizando a cor.

Grand Tour conta a história de um homem em fuga da mulher com quem deveria casar. De que é que foge na rodagem de um filme? Da segurança e da rotina do previsível, do pré-estabelecido?

Num certo sentido estou a fugir do meu quotidiano. Começo a perceber, filme após filme, que fazer um filme é partir para outro sítio. A ideia do realizador que faz um filme em casa, como o Alain Cavalier, pode dar grandes resultados, mas não me parece que seja para mim. Preciso de partir à aventura. Não tenho problemas em filmar num território pequeno – no Diários de Otsoga estávamos fechados numa quinta, mas isso também era partir para outro sítio. No caso de Grand Tour isso é bastante assumido e radical. Não fui para tão longe e para tantos locais num só filme, sendo que paradoxalmente também estive confinado num estúdio. O estúdio é um sítio onde se recria o mundo, um mundo que não existe, mas eu precisava de fazer a viagem e de estar presente naqueles lugares.

“No Grand Tour (…) existe um constante vai vem entre o real e o imaginário, sendo que o real por vezes parece mais fantasioso que a ficção.”

Os cineastas de que se sente mais próximo coincidem com os filmes de que mais gosta? Pode dar-nos exemplos desta convergência ou divergência?

Se gosto dos filmes é porque me sinto próximo do olhar do realizador. Para mim não há distinção. Aquilo que vejo num filme tem uma relação com o olhar de alguém, com o seu pensamento artístico, cinematográfico…

A última questão está reservada para o que quiser lembrar do crítico e programador Augusto M. Seabra recentemente desaparecido.

O Augusto foi uma figura central da crítica e da cinefilia em Portugal. Teve o grande mérito de se interessar por um cinema contemporâneo, numa altura em que as coisas não eram tão divulgadas por cá. Foi sempre um interlocutor contemporâneo desse cinema. O exemplo máximo será o cinema asiático dos anos 1980. Era alguém muito curioso. Chegámos a trabalhar juntos no [semanário] onde nos conhecemos um pouco melhor. Tinha um temperamento bem específico e havia períodos em que eu, e muita gente que conheço, ficávamos distantes. Os períodos de reaproximação eram um clássico nas relações do Augusto Seabra. Penso que se perdeu um dos melhores pensadores de cinema que viveram em Portugal.