A beleza do ruído

Sofia Dias e Vítor Roriz apresentam a sua nova criação na Culturgest

A beleza do ruído

A dupla de coreógrafos Sofia Dias e Vítor Roriz convoca o público para um espetáculo que se quer partilhado entre o palco e a plateia. Ruído mostra-nos o “extra poder” da dança e é um convite à imaginação e empatia. Na Culturgest, a partir de 10 de outubro.

No início, há apenas silêncio. Os intérpretes vão entrando e olhando para os espectadores na plateia. De volta, recebem os olhares do público. É dessa relação que se faz Ruído, o espetáculo de Sofia Dias e Vítor Roriz, que está na Culturgest entre esta quinta-feira, 10, e sábado, 12 de outubro. Não será por acaso que não há som nestes primeiros minutos – mesmo que o título nos remeta exatamente para o oposto. “Gosto da ideia de provocar esse choque inicial, acredito que dá mais espaço a quem está a ver para aceitar, para estar no presente”, nota Vítor. “Sim, a partir desse presente, entramos na ficção e damos lugar a um imaginário em conjunto. Este espetáculo acaba por ser também uma ode ao lugar do Teatro, onde cabem muitas ficções e onde cabem muitos gestos e movimentos, onde há mistério, e onde não sabemos o que vamos encontrar, mas onde vamos à mesma porque precisamos de ir e de estar, porque precisamos de nos desdobrar”, acrescenta Sofia.

As primeiras palavras são ditas em inglês: “What do you see?” A tradução chega numas legendas escritas em pequenos papéis e colocadas à mão, uma a uma, num retroprojetor. “O que vês?”, “Um corpo?”… Os bailarinos vão descrevendo os seus gestos e dando várias possibilidades de leitura. “Quantas palavras cabem num gesto?”, interroga-se Sofia, lembrando que um movimento não tem de ter um significado apenas e que o público menos habituado à dança se sente constrangido com a obrigação de explicar o que vê. “Como quebramos isso, como convidar e dar as boas-vindas à multiplicidade da perceção de um movimento?”, continua. Em cena, os bailarinos despojam-se de virtuosismos, de movimentos complicados e de camadas e assumem a presença dos seus corpos e das suas fragilidades frente a um público. “É bom estar num lugar e não saber”, há-de ouvir-se mais à frente durante o espetáculo. Antes disso, já a atenção se virou para a plateia, já a “massa abstrata e difusa” se revelou em caras, sonhos, expressões, gestos, vontades, e se convocaram os espectadores a – metaforicamente – subir ao palco. “É uma sensação de pertença, de que também eles podiam estar aqui em cena, um convite à imaginação, a pensarmos como vivemos o presente e como o vamos preencher. Isso acontece em todos os nossos espetáculos, mas aqui é um assunto”, afirma Vítor. “Aqueles corpos convocam a humanidade, é um apelo à empatia”, resume Sofia.

O extra poder da dança

O que há de ruidoso neste espetáculo, então? O título, explicam, surgiu já a meio do processo de criação, que foi acompanhado por cientistas do Center for the Unknown da Fundação Champalimaud, onde a dupla está em residência artística desde 2023 e até ao final deste ano. “O espetáculo não partiu desses encontros, mas fomos tendo muitas conversas, eles assistiram a ensaios e muitas das ideias que acabámos por desenvolver vieram dessas partilhas”, conta Vítor. “Ao vermos as reações deles voltámos a lembrar-nos de que a dança é uma coisa extraordinária, na qual podemos pôr tanta coisa num movimento só, e que os bailarinos têm tantas competências a que já nem prestamos atenção: a forma como ocupam o espaço, a sincronização, a escuta do outro, a improvisação… É quase um extra poder, há algo de muito especial na dança mesmo e, no palco, estamos num lado mais poético e mais livre do que na investigação científica”, diz Sofia.

O diálogo com a neurociência fez com que percebessem que o ruído é essencial à existência e à aprendizagem. “Precisamos do ruído para acedermos ao sinal. Anular o ruído é anular a nossa capacidade de compreensão”, sublinha Sofia. Tudo depende, então, do lugar para onde viramos a nossa atenção, porque há muito de periférico que é, afinal, essencial. O chiar das cadeiras da plateia, o barulho da porta a abrir e fechar, os sapatos na alcatifa do chão da sala, a presença do outro ali mesmo ao nosso lado – não haverá, enfim, tanta beleza no ruído?